Tradução: João Coles
O que é a cultura de uma nação? É crença corrente, também de parte de pessoas cultas, que esta é a cultura dos investigadores, dos políticos, dos professores, dos literatos, dos cineastas, etc.; ou seja, que é a cultura da intelligentsia. Todavia, não é assim. Nem tão-pouco a cultura da classe dominante, que, precisamente através da luta de classes, procura impô-la pelo menos formalmente. Não é tão-pouco, enfim, a cultura da classe dominada, isto é, a cultura popular dos operários e dos camponeses. A cultura de uma nação é o conjunto de todas estas culturas de classe: é a média delas. E seria por conseguinte abstracta se não fosse reconhecível – ou, a bem dizer, visível – na vida vivida e no existencial, e se não tivesse consequentemente uma dimensão prática. Durante muitos séculos em Itália estas culturas eram distinguíveis apesar de historicamente unificadas. Hoje – quase de repente, com uma espécie de Advento – distinção e unificação históricas cederam o lugar a uma homologação que concretiza quase miraculosamente o sonho entre-classista do velho Poder. A que se deve tal homologação? Evidentemente a um novo Poder.
Escrevo “Poder” com maiúscula – coisa que Maurizio Ferrara acusa de irracionalismo em «l'Unità» (12-6-1974) – apenas porque sinceramente não sei em que consiste este novo Poder e quem o representa. Sei simplesmente que existe. Não o reconheço no Vaticano, nem nos poderosos cristãos, nem nas Forças Armadas. Já nem o reconheço na grande indústria porque esta deixou de ser constituída por um número determinado e limitado de grandes industriais: tenho para mim, pelo menos, que esta surge, pelo contrário, como um todo (industrialização total), e, além do mais, como um todo não italiano (transnacional).
Conheço, também porque as vejo e as vivo, algumas das características deste novo Poder ainda sem face: a recusa pelo antigo sanfedismo (1) e pelo antigo clericalismo, a decisão de abandonar a Igreja, a determinação (coroada como triunfo) de transformar camponeses e sub-proletários em pequenos burgueses, e sobretudo a mania, cósmica, por assim dizer, de executar até ao fim o “Progresso”: produzir e consumir.
O retrato deste novo rosto ainda em branco do novo Poder atribui-lhe traços vagamente “moderados”, devidos à tolerância e a uma ideologia hedonista auto-suficiente; mas também traços ferozes e substancialmente repressivos: a tolerância é falsa, pois nunca nenhum homem foi obrigado a ser tão normal e conformista como o consumidor. Quanto ao hedonismo, este esconde evidentemente uma decisão de pré-ordenar tudo com tal impiedade que a história jamais conheceu até hoje. Portanto, este novo Poder ainda sem representantes, que se deve a uma «mutação» da classe dominante, é na verdade – se quisermos preservar a velha terminologia – uma forma total de fascismo. Mas esse Poder também “homologou” culturalmente a Itália: trata-se, portanto, de uma homologação repressiva, apesar de ter sido alcançada através da imposição do hedonismo e da joie de vivre. A estratégia da tensão é um indício, ainda que substancialmente anacrónico, de tudo isto.
Maurizio Ferrara, no artigo citado (tal como Ferrarotti, em « Paese Sera », 14-6-1974), acusa-me de estetismo. E com isto tende a excluir-me, a circunscrever-me. Muito bem: a minha pode ser a óptica de um « artista », isto é, como pretende a boa burguesia, de um louco. Mas o facto que dois representantes do velho Poder (que agora servem, na verdade, ainda que interlocutoriamente, o Poder novo) se tenham chantageado mutuamente a propósito de financiamentos aos partidos e dos caso Montesi, pode ser também um bom motivo para enlouquecer: ou seja, desacreditar totalmente uma classe dirigente e uma sociedade diante dos olhos de um homem, a ponto de o fazer perder o sentido de oportunidade e dos limites, lançando-o num verdadeiro e autêntico estado de «anomia». Vai dito, aliás, que o ponto de vista dos loucos é de tomar em séria consideração: a menos que se queira progredir em tudo salvo no problema dos doidos e limitar-se comodamente a mantê-los à margem.
Há certos loucos que olham para a cara das pessoas e para o seu comportamento. Mas não porque sejam epígonos do positivismo lombrosiano (2) (como grosseiramente insinua Ferrara), mas porque conhecem a semiologia. Sabem que a cultura produz códigos; que os códigos produzem o comportamento; que o comportamento é uma linguagem; e que em determinado momento histórico em que a linguagem verbal é totalmente convencional e estéril (técnica) a linguagem do comportamento (físico e mímico) assume uma importância decisiva.
Voltando assim ao início do nosso discurso, parece-me que temos boas razões para afirmar que a cultura de uma nação (em concreto a Itália) é hoje exprimida sobretudo através da linguagem do comportamento, a linguagem física, mais uma determinada quantidade – completamente convencional e extremamente pobre – de linguagem verbal.
É a este nível de comunicação linguística que se manifestam: a) a mutação antropológica dos italianos; b) a sua completa homologação a um modelo único.
Portanto: decidir deixar crescer o cabelo até às costas, ou mesmo cortar o cabelo e deixar crescer o bigode (numa evocação pré-novecentista); decidir pôr uma banda na cabeça ou enfiar uma boina até aos olhos; decidir sonhar com um Ferrari ou com um Porsche; seguir com atenção os programas televisivos; conhecer os títulos de alguns best-seller; vestir-se com calças e camisolas prepotentemente na moda; ter relações obsessivas com mulheres postas de lado como meros adornos, mas, ao mesmo tempo, com a pretensão de que são «livres» etc. etc. etc.: tudo isto são actos culturais. Hoje, todos os jovens italianos cumprem estes mesmo actos, têm a mesma linguagem física, são permutáveis; uma coisa velha como o mundo, se estiver limitada a uma classe social, a uma categoria: mas o facto é que estes actos culturais e esta linguagem somática são inter-classistas. Numa praça repleta de jovens, já ninguém poderá distinguir, pelo corpo, um operário de um estudante, um fascista de um antifascista; algo que ainda era possível em 1968.
Os problemas de um intelectual pertencente à intelligentsia são diferentes dos de um partido e de um homem político, ainda que a ideologia seja a mesma. Gostaria que os meus actuais opositores de esquerda compreendessem que estou em condições de dar-me conta que, caso o Progresso sofresse detenção e tivesse uma recessão, se os Partidos de Esquerda não apoiassem o Poder vigente, a Itália simplesmente se desmantelaria; se pelo contrário, o Progresso continuasse tal como começou, seria indubitavelmente realista o chamado «compromisso histórico», o único modo para tentar corrigir esse Progresso no sentido indicado por Berlinguer na sua relação com o CC do partido comunista (cfr. «l’Unità », 4-6-1974). Todavia, como a Maurizio Ferrara não competem as «caras», a mim não compete esta manobra de prática política. Aliás, eu tenho, quando muito, o dever de exercitar sobre ela a minha crítica, quixotescamente e talvez de maneira extrema. Quais são, então, os meus problemas?
Eis um, por exemplo. No artigo que suscitou esta polémica («Corriere della sera», 10-6-1974) lia-se que os reais responsáveis pelos atentados de Milão e de Brescia (3) são o governo e a polícia italiana: porque se o governo e a polícia tivessem querido, estes atentados não teriam tomado lugar. É um lugar comum. Pois bem, por esta altura vão fazer pouco de mim se disser que os responsáveis destes atentados somos também nós progressistas, antifascistas, homens de esquerda. De facto, em todos estes anos não fizemos nada:
1) para que falar de «atentados de Estado» não se tornasse num lugar comum e que ficasse por ali;
2) (e mais grave) não fizemos nada para que os fascistas não existissem. Apenas os condenámos gratificando a nossa consciência com a nossa indignação; e quanto mais forte e petulante era a indignação, mais tranquila estava a nossa consciência.
Na verdade, comportámo-nos com os fascistas (falo sobretudo dos jovens) de maneira racista: quisemos apressada e impiedosamente acreditar que eles estavam predestinados racialmente a serem fascistas e, perante esta decisão do destino deles, não havia nada a fazer. E não o escondamos: todos sabíamos, no fundo da nossa consciência, que quando um daqueles jovens tomava a decisão de tornar-se fascista, era puramente casual, não era um gesto desmotivado ou irracional: talvez tivesse bastado uma só palavra para que isso não tivesse acontecido. Mas nenhum de nós falou com eles ou a eles. Aceitámo-los imediatamente como representantes inevitáveis do mal. E talvez fossem rapazes e raparigas adolescentes nos seus dezoito anos, que não sabiam nada de nada, e atiraram-se de cabeça nesta horrenda aventura por simples desespero.
Mas não conseguíamos distingui-los dos outros (não digo dos outros extremistas: mas de todos os outros). É esta a nossa aterradora justificação.
O padre Zósima (a literatura pela literatura!) soube de imediato distinguir, entre todos aqueles que se amontoavam na sua cela, Dimitri Karamazov, o parricida. Então levantou-se da sua cadeira e foi prostrenar-se diante dele. E fê-lo (como diria mais tarde ao Karamazov mais novo) porque Dimitri estava destinado a cometer o mais terrível acto e a suportar a mais desumana dor.
Pensem (se tiverem forças) naquele rapaz ou naqueles rapazes que foram plantar bombas na praça de Brescia. Não era de nos levantarmos e de irmos prosternar-nos diante deles? Mas eram jovens de cabelos compridos, ou com bigodes à século XX, tinham bandas na cabeça ou boinas enfiadas até aos olhos, eram pálidos e presunçosos; o problema deles era vestirem-se à moda e todos da mesma maneira, ter um Porsche ou um Ferrari, ou mesmo motas para as conduzirem como pequenos arcanjos idiotas com mulheres ornamentais atrás, sim, mas modernas, e a favor do divórcio, da libertação da mulher, e em geral do progresso... Eram, enfim, jovens como todos os outros: nada os distinguia fosse como fosse. Mesmo que o tivéssemos pretendido não teríamos sido capazes de nos prosternarmos diante deles. Porque o velho fascismo, ainda que através da degeneração retórica, distinguia: enquanto que o novo fascismo – que é toda outra história – deixou de distinguir: não é humanamente retórico, é americanamente pragmático. O seu objectivo é a reorganização e a homologação brutalmente totalitária do mundo.
(1) O Sanfedismo, cujo nome deriva de “Exército da Santa Fé”, foi um movimento religioso anti-republicano nascido no final do séc. XVIII na Itália meridional quando as monarquias tradicionais foram depostas e substituídas pelas repúblicas napoleónicas. Os sanfedisti eram grupos e associações religiosas que lutavam pela defesa da Santa Fé e das monarquias tradicionais.
(2) Marco Ezechia Lombroso, também conhecido por Cesare Lombroso, um dos expoentes do positivismo, foi o fundador da antropologia da criminalidade. As suas teorias, influenciadas pela fisiognonomia, pelo darwinismo social e pela frenologia, baseavam-se no conceito de “criminoso à nascença”; teorias que defendiam que a criminalidade era hereditária e que partir da identificação de certas características anatómicas à nascença, se poderia deduzir que determinado indivíduo se tornaria num criminoso.
(3) Pasolini refere-se aos atentados de Piazza Fontana em Milão (12/12/1969) e de Piazza della Loggia em Brescia (28/05/1974), dois actos terroristas neofascistas. O primeiro é considerado o ponto de partida e o momento incandescente dos “anos de chumbo” em Itália, que culminou em vários atentados terroristas até ao início dos anos 80; o segundo, foi um atentado terrorista fascista que teve lugar no decurso de uma manifestação contra o terrorismo neofascista, onde uma bomba explodiu e provocou a morte de 8 pessoas e feriu outras 102.
Publicado originalmente no «Corriere della Sera» a 24 de Junho de 1974 com o título "O poder sem rosto”.
In Il fascismo degli antifascisti, Garzanti