quando em seu bote inflável

Egon Schiele, Danae

Egon Schiele, Danae

quando em seu bote inflável enfim ventanias sopraram e um turbilhão de águas confundiu seu rosto em pavor e pranto ela o filho acolhendo as mãos sobre ele pousou e assim disse: “filho, que dor desabou sobre nós! seu corpo não sabe e você dorme profundamente neste mísero bote de preto látex que sobre o breu-cianuro desliza nesta noite pobre de brilho nem tampouco sente o sal se abater sobre seus cabelos e à voz do vento permanece surdo somente se deita sobre uma sacola um plástico sujo com tão linda tez pois se nosso horror em você causar ainda mais horror cubra os ouvidinhos amor te peço que apenas durma te peço pequeno que também durma o mar e durma o mal que estremeça em brilho toda a mudança vinda de teu gesto e perdoe por favor qualquer pecado em nossa fuga” e contra as rochas se abate à noite quem buscava refúgio enquanto dormimos e o fluxo contínuo das águas de algas o corpo todo cobre e com ânsia da costa os cílios cerrados mantém sem lembrança da mãe não acordem quem longe de casa sobre a areia morre

tudo em volta é só tristeza

tudo em volta é só tristeza
pedras em terra destecem
como tecendo se-fossem
todas tetras faces cíclicas
como tecendo se-fossem
sobre o céu de abril – silentes
cábulas – e a mata em flor  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

um corpo sempre é feito
de ciclo assimilado
daquilo que fizeram
com os tecidos fios
de seus vazios internos: 
um corpo sempre é feito  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

como se tudo só tecesse
as tão brancas margens do sal
ou um deserto nu de nadas
como tecesse tudo só 
um grão de areia entre as próprias
verticais paisagens de morte
ou elementares enigmas
na dita máquina da vida  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

que o tecer não
é nunca só 
de apenas um
fio destecido  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

o que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou
a aparição da arredia face em
úmidas pétalas do negro galho
tudo se acha à meia parte da via
a dura palavra em pedra tecida
que pela escura selva sempre em ciclos
faz levar mas também é conduzida
a essa selva selvagem rude e forte
onde o meio andar refaz-se e não finda  

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

não há fugir não há esperança
tudo é mudo e tudo está deserto
como no fim do voo um pássaro
pro passado ao olhar decompõe
as próprias asas e em círculos caindo
ao profundo dum lago tecendo-se
fosse muda sombra nada 

*

escoar-se

escoar-se pela forma mais básica
passar por fluir cruzar-se
precipitar-se plúvio garoar-se pluvilíneo
manar verter incessantemente
aguar-se envolver encostas encobrir
submergir alastrar-se propagar-se
colonizar perder arrastar perpassar
difundir-se impregnar e repassar
invadir-se penetrar-se dimanar sobre diques
resvalar relvas escorregar mover-se denso
grosseiro trabalhoso demorado moroso
cadenciar-se leve frouxo prolixo gotejante
pingar em chuviscar neblinar-se súbito
cristalizar-se em bruma e cerração
reacender-se pelo gume sangrar
esmar-se pela palavra fazer-se do vazio
volver e desvirar-se e tornar a revolver
escavacar a cercania furar o contorno vazar
assilhuetar-se azulado no perfil do branco
enoitar-se tetro na própria boca da noite
serenar sob o seco ramo sáfaro galho
safirizar o tempo depois do tempo próprio
descujar-se a caveira de fulano florescer
desfiar-se recostar a carne lançar-se de si


Ernesto von Artixzffski é o pseudónimo de Sergio Maciel.

o ser mineral ou forma espelhada

È venuto un momento che tutto si ferma
e matura.

Cesare Pavese 

p/ qualquer um

 

o ser mineral ou forma espelhada
do negro deserto (talhando
sempre
a mesma arquitetura)
indeiscente
contempla (áspera)
as coisas que (inda outra vez) ao chão
consagra (em espinhos empedernidos)
e não medram
como o mistério outrora e
(qual) além
recusado (o ato
próprio seu de amar)
contraindo infinito
o corpo são