Um jogo de absolutos: Ties de Domenico Starnone

 

Há uma entrevista dada por Domenico Starnone ao Book Review, o podcast de livros do The New York Times, em que há um breve momento de embaraço.[1] Uma das primeiras perguntas que Greg Cole, um dos editores, faz ao escritor italiano versa sobre as semelhanças entre o romance escrito por Starnone, Ties (Lacci) e Dias de Abandono de Elena Ferrante, incluindo uma alusão à investigação (imediatamente vista como infame) de Claudio Gatti, que numa das maiores polémicas literárias do ano passado levou à revelação de que Elena Ferrante seria Anita Raja, tradutora de profissão e esposa de Domenico Starnone. O escritor limita-se a comentar, com um sentido de humor tipicamente italiano, que podia apenas garantir, em absoluto, que ele próprio não é Elena Ferrante (embora esses rumores tenham circulado) e que talvez fosse melhor ideia tentar entreter essa discussão com a própria Anita Raja. Na verdade, é difícil encontrar uma crítica ou sinopse a Ties no mundo anglo-saxónico em que Elena Ferrante não seja mencionada.[2] A própria página do livro no site da editora não é a isso imune.[3]

Ties é uma breve novela publicada pela Europa Editions e Starnone é descrito pela crítica como o menos internacionalmente popular dos principais romancistas italianos.[4] Oriundo de Nápoles, o autor escreveu até à data treze romances, em paralelo com a sua carreira de guionista e jornalista, tendo vencido em 2001 o prémio Strega (o prémio literário mais prestigiado de Itália) pelo livro Via Gemito. Apenas um outro dos romances foi publicado em inglês, First Execution, em 2009 (Prima Esecusione (2007). A tradução e a brilhante introdução de Ties ficaram a cargo de Jhumpa Lahiri e isto talvez merecesse uma nota mais pormenorizada. Lahiri mudou-se para Roma com a família e o seu último livro, In altre parole (2015), foi complemente escrito em italiano.[5] Mas nem o facto de Starnone, um autor com pouca carreira internacional,[6] ter sido traduzido pela vencedora de um prémio Pulitzer, parece concentrar os leitores na relevância desta novela enquanto objecto estranho à “polémica Ferrante.” 

De todos as críticas que se concentram nas ligações entre Dias de Abandono e Ties, (e são quase todas e esta também não vai escapar a essa tendência) as que mais eficazmente evitam o kitsch (de que esta nota não é um exemplo), são as que veem os dois romances como um diálogo literário entre dois escritores sobre um tópico que de resto não é, convenhamos, exactamente inédito na história de qualquer literatura que se preze.

Ties, como Dias de Abandono, é uma novela acerca das consequências de um episódio de infidelidade conjugal: Aldo Minori abandona a mulher, Vanda, e os dois filhos menores, para perseguir um romance com uma mulher relativamente mais jovem, Lídia, cortando completamente laços com eles,[7] e regressando quando a sua relação com Lídia chega ao fim.

Aaron Bady na The New Yorker[8] enumera algumas das semelhanças cruciais com Dias de Abandono – os objectos de vidro que em ambos os livros se partem em resposta à infidelidade (a cena na novela de Ferrante é bem mais gráfica e mais ou menos inesquecível), os animais de estimação que sofrem com a desordem doméstica (mais benignamente em Starnone do que em Ferrante), o facto de em ambas as novelas o casal ter dois filhos, de em ambas haver um vizinho mais velho, mas mais decisivamente na estrutura das duas novelas, a descrição pormenorizada das consequências devastadoras do colapso mental de ambas as esposas, o que tem levado os críticos a estabelecer a comparação com o arquétipo clássico da esposa enlouquecida, Medeia[9], mas talvez aqui se devesse acrescentar, válido para ambos os livros, a meu ver, mais Ésquilo do que Eurípides, e por isso mais Clitemnestra do que Medeia. A esta analogia voltaremos mais abaixo.

Não é irrelevante pensar sobre estas duas novelas em conjunto, se por mais nada porque à superfície parece estabelecer-se um contraponto a partir do qual se torna mais fácil falar sobre a novela de Domenico Starnone. Mas onde Dias de Abandono surge como uma espécie de tour de force em monólogo, concentrado no espaço e no tempo, que converge para alguns dias decisivos na vida de uma mulher que se vê trancada numa casa, a partir da perspectiva única dessa personagem solitária, que procura recuperar o controlo sobre a sua própria vida e a vida dos filhos, tudo isto narrado com uma violência e opressão que talvez só tenham paralelo naquele tipo de narrativas que lidam com transgressões criminosamente violentas ocorridas no espaço doméstico (a tensão e atenção que se exigem do leitor são mais ou menos as mesmas que se experimentam ao ver A corda de Hitchcock, um episódio de Bloodline ou uma encenação do Agamémnon). A novela de Starnone divide-se em três partes e é, assim, cuidadosamente estruturada para incluir a perspectiva de todas as personagens envolvidas (a mulher, o marido, os filhos) e o arco temporal é muito mais amplo (abrangendo várias décadas).

 Na crítica da Asymptote, Stiliana Milkova aponta, e bem, que Ties não oferece uma solução para as perguntas que coloca, a novela termina em aberto, o que em parte tem a ver, creio, com o facto de haver um espaço muito maior para a ambivalência moral das duas personagens principais (Aldo e Vanda, o casal no centro da intriga), o que é muito possivelmente uma consequência de as suas motivações não serem claras nem para elas próprias, em parte porque as consequências das suas acções são bem menos definitivas do que se possa imaginar.

Quando Aldo Minori abandona Vanda e os filhos, ele não regressa nem quando ela faz uma tentativa de suicídio. Para quem leu os romances napolitanos é muito difícil não ver o paralelo com o relapso Nino Sarratore. E, no entanto, há que acrescentar que a secção narrada por Aldo é a mais longa em toda a novela e é difícil não sentir empatia pela sua perspectiva. Mas um pouco como no Agamémnon de Ésquilo, não se pode cometer um crime e esperar regressar com impunidade à ordem anterior. A secção narrada por Vanda passa-se em 1974, a de Aldo na actualidade, numa altura em que as crianças há muito saíram de casa e embarcaram nas suas próprias vidas. Mas um assalto ao apartamento, empreendido quando o casal se encontra de férias, espalha pela casa as memórias da infidelidade de Aldo, enquanto ele tenta a todo o custo escondê-las da mulher. Cartas de Vanda escritas naquela altura ressurgem, fotografias de Lídia que Aldo mantivera cuidadosamente guardadas (mas à vista de todos, como transparece), desaparecem misteriosamente. Um tributo à máxima complexidade que este romance alcança envolve o nome do gato doméstico e o significado de um termo num dicionário de latim (sim, eu sei que isto vos faz pensar nas classicistas dos romances de Ferrantes) e nada pode resolver a ambivalência que esta discussão esconde, porque ela assenta afinal no facto de ser impossível definir com toda a certeza as motivações mais íntimas de outra pessoa, se todas as escolhas subsequentes de alguém podem ser lidas à luz de uma decisão só.

Para lá da sombra de Ferrante, Ties é uma novela sobre a fragilidade da felicidade (em geral, não apenas da conjugal, como expresso na trajectória dos dois filhos de Aldo e Vanda) e sobre a força de certos laços. Podíamos até aceitar que o que nos é narrado é deixado em aberto, mas talvez que o isolamento em que estas personagens coexistem, o quão separadas elas estão umas das outras, encerre uma nota sobre uma convenção um pouco mais perigosa, pela qual tentamos viver absurda e absolutamente. Um pouco com a mesma indolência (se não cobardia moral) de Nino Sarratore, Aldo arrasta-se de volta ao lar, para viver durante décadas com uma mulher que nunca lhe irá perdoar a primeira transgressão. A decisão de Aldo, em aporia como surge (o que fazer depois de Lídia o deixar? – a amante abandona-o em parte porque ele sente o dever de regressar a casa para tomar conta dos filhos, mas quem afinal decide por Aldo é Lídia), sugere que esperamos que a racionalidade de certas decisões nos proteja, que acarrete uma legitimidade moral que permita a expiação. Podemos dizer, como se lê na crítica da Asymptote, que Ties deixa as possibilidades do que encena em aberto.

À violência quotidiana que sugere essa abertura, a vingança da paz podre que Vanda afinal impõe, pode bem sobrepor-se outra, a que sugere que enterrar a cabeça na areia não basta. Se, de facto, se quiser ler esta novela à luz de Dias de Abandono, o corte radical sugerido por Ferrante, parece de repente mais tolerável. E a isso talvez não seja alheio o facto de a novela de Ferrante ser afinal também um ensaio sobre a ideia de que estar vivo requer uma certa coragem.

Mas esta é apenas uma das muitas leituras deixadas em aberto pela novela de Starnone, talvez escrita para nos lembrar do outro lado desse argumento, um lado menos absoluto e mais complexo: que nem todas as perguntas têm uma solução e que estar vivo significa que não escapamos às condições contradictórias em que as nossas vidas decorrem. O tempo trai-nos, nota Jhumpa Lahiri na introdução. Deste ponto de vista, não é difícil de entender o quão relevante esta breve novela pode ser, para lá de qualquer polémica literária. Como se lê ainda na introdução:

The novel reckons with messy, uncontrollable urges that threaten to break apart what we hold sacred. It is in fact about what happens when structures – social, familial, ideological, mental, physical – fall apart. It asks why we go out of our way to create structures if only to resent them, to evade them, to dismantle them in the end. It is about our collective, primordial need for order, and about our horror, just as primordial, of closed spaces (p. 12).


[1] https://www.nytimes.com/2017/03/24/books/review/ties-to-ferrante.html

[2] Esta breve sinopse no The Guardian, assinada por Anthony Cummins, é mais ou menos paradigmática. Nas primeiras linhas lê-se: Elena Ferrante’s The Days of Abandonment described a wife’s wrath at the husband who leaves her and their two children for a younger woman. Ties lays out a similar scenario from the betrayer’s point of view, which may be no coincidence, given that Domenico Starnone is married to Anita Raja, aka Elena Ferrante (allegedly).

[3] https://www.europaeditions.co.uk/review/2893 

[4] Veja-se a crítica de Rachel Donadio

[5] A autora fala desta experiência aqui.

[6] De resto uma tendência geral da literatura italiana, pelo menos em relação aos países anglo-saxónicos: https://www.the-tls.co.uk/ferrante-fever-and-other-symptoms/

[7] Não é daí que vem o título. À letra, no italiano, lacci são atacadores.

[8] http://www.newyorker.com/books/page-turner/a-novel-of-infidelity-in-dialogue-with-elena-ferrantes-the-days-of-abandonment

[9] Veja-se, por exemplo, a crítica de Stiliana Milkova para a Asymptote.  

Recensão: É Agora Como Nunca. Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira

1- Adriana Calcanhotto organizou uma antologia de poesia contemporânea brasileira. O resultado é o belíssimo É Agora Como Nunca. Antologia Incompleta da Poesia contemporânea Brasileira. Para o jornal Folha de S. Paulo, pouco antes do lançamento no Brasil, Fevereiro de 2017, pela Companhia das Letras (em Portugal foi editada pela Cotovia), ela que realizou parcerias com nomes como Waly Salomão, Augusto de Campos e Antonio Cicero, consolidando a sua carreira musical imersa na poesia, revela o sentido que tem compor-se uma antologia (“incompleta e autoral”). Reproduzo algumas ideias do artigo: “Leitora de poesia diletante”, quis fazer um livro pessoal, decidido pelo seu gosto pessoal (lembro que, em oposição, os juízos de gosto kantianos são universais), contendo num “único volume” o que queria ler durante as férias. Critérios hedonistas, pois. Para isso reuniu 41 poetas brasileiros nascidos entre 1970 e 1990. Poetas novos, novíssimos, inacabados, obrigando a autora, já durante o processo de compilação, a alterar escolhas porque um poema mais recente se sobrepunha ao mais antigo. Jovens poetas com as mãos amassando o barro linguístico, sem grelhas, onde o “verso livre [flerta] com a crónica”. Claro que há menções a Drummond, Leminski e outros, mas também “à grã-mestra Wikipédia”. É isso que, nas palavras de Adriana Calcanhotto, traz “um desassombro, uma não cerimónia com a poesia, usam palavras que não parecem, em tese, pertencer à poesia, coisas assim”. Finalmente, a autora revela, agora por ausência, outra característica desta antologia: a pouca atenção dada à política (pelo menos nos “enfadonhos sentidos partidário ou panfletário”). Surpreendente, até pelo período conturbado que se vive no Brasil. De qualquer forma, diz-nos Adriana, “Eles vivem no mundo de hoje e escrevem poesia, isso é um acto político. Poderiam estar calados.” Algumas destas ideias são retomadas na breve nota pessoal que abre a obra impressa, onde, além de pequenas indicações sobre a sua construção, acrescenta algo que me parece justo: “Depois do fim das vanguardas, ‘ficou ainda mais difícil’ escrever poesia.” Aumentaram as dificuldade porque, trata-se agora da minha voz, não é possível, sem que isso saiba a déjà vu, continuar a desconstruir os modelos assentes em sentidos reconhecidos como clássicos (ultra-classificações) ou regressar, num suspeito conservadorismo, às velhas fórmulas de codificar a linguagem poética.

É agora como nunca portuguesa.jpg

2- Talvez eu me situe, enquanto leitor, entre T.S. Eliot e Marcel Duchamp: para o primeiro, “a significação de um poema existe nas palavras do poema e apenas nessas palavras”; para o segundo, mutatis mutandis, “São os observadores que fazem o quadro”. Atender às palavras e reconhecer que sou eu que acolho o poema, um eu inscrito num determinado horizonte de expectativas. Talvez não exista o leitor universal, como, em oposição, não é possível relativizar sem qualquer freio a interpretação. Trata-se de um perspectivismo sob controlo, equilíbrio frágil entre objectivismo e subjectivismo. Por isso, vou falar-vos da minha leitura, não sou, nem quero ser, um crítico profissional, que terá, se levar a sério o seu papel, de seguir Kant e a necessidade de escrever coisas que valem universalmente.

2.1- Mesmo assim, sem cair numa contradição estéril, a poesia, mais do que a prosa, faz reverberar em cada leitor atento qualquer coisa de eterno. É verdade que no caso desta antologia, resvalando tantas vezes, como foi dito, para um certo tipo de crónica, nos afastamos da metafísica, mas não irremediavelmente. São exemplos de descrições dentro da história (do tempo e do espaço, os grandes inimigos da metafísica) a “CASA DAS HORAS” de Victor Heringer, a “ANSIEDADE QUANTO A UMA ACADEMIA” de Ismar Tirelli Neto ou a “ZTARATZTARATSZTARATZTARATZTARATZTARATZTARATZ” de Marília Garcia. Em contraste, há uma boa dezena de haikus que aspiram ao a-histórico, mesmo quando se referem ao mundo das coisas e acções prosaicas ou fazem centelhar ideias e sentimentos do quotidiano. Esta ambivalência converge, contudo, para um campo comum: desenhar um método exploratório, investigando objectos e afectos, para revelar e manifestar as parcelas do vivido. A antologia foi, pois, retirada das circunvoluções do real, ainda que pareça haver uma deriva sem finalidade. Hoje, as escatologias assumiram a derradeira condição de ilusões espúrias. É isso que nos diz Leandro Durazzo: “[…] não acho justo / mas é / natural / que as coisas não fluam // nem tudo é rio”.

Porém, constrói-se uma espécie de micropolítica, de mundivisões e sugestões de organização social e mental. Não, como muito bem refere Adriana Calcanhotto, dentro dos habituais enquadramentos ideológicos e partidários, mas trabalhando numa analítica intensa e precisa para aconselhar passagens viáveis de dissensos a consensos (imperfeitos). Reconhecendo a irredutibilidade do mundo (real) e de nós nele. Destaco a quase epopeia de Donny Correia, “KANCER (SOLILÓQUIO)” sobre o compromisso possível entre um organismo e o seu parasita, o cancro (começa com a estrofe: “Quando me convenci / de que eu era imortal / veio o Doutor e disse: – É câncer...). Sem utopismos, pretende-se somente que o vital funcione um pouco melhor, escusando as velhas teodiceias que pretendiam extirpá-lo do mal, de todo o mal (em vão, como sabemos).

Destacaria outra linha de identidade, a de várias vezes haver uma mise e abîme da poesia. Pergunta-se pela poesia na poesia. Ou melhor, os poemas servem também para questionar, em sentido amplo, aquilo que incarnam (a poesia). Uma poética habitada pela metapoética. Velho dispositivo literário, é verdade, mas aqui essa torção sobre si, esse petrificar-se no reflexo de si conjura, mais do que é normal, a rendição ao puro exterior, como por vezes parece estar na moda. E não se vislumbra qualquer decisão forçada, este gesto estético (e político?) encaixa perfeitamente na Stimmung do livro.

Finalmente, sem querer esgotar a complexidade da obra, o uso da linguagem, seguindo Adriana Calcanhotto, parece fora da erudição poética, constroem-se poemas com ferramentas linguísticas simples. Mas busca-se também uma voz própria, cada um dos poetas experimenta uma espécie de idioma privativo feito dos materiais linguísticos reciclados do dia-a-dia (prosseguem, noutros termos, a dissolução da poesia de massas). Todos procuram a sua própria tensão e energia linguística, sabendo que, apesar de vivermos no tempo do desnudamento compulsivo, permanece sempre algo de inviolável, de impenetrável e de decisivo em cada indivíduo, neste caso em cada autor.

O simulacro de execução de Fiódor Dostoiévski

Se existe um romancista onde os termos “sofrimento” e “redenção” fazem sentido, é seguramente em Dostoiévski. Pela sua vida e pela sua escrita, muitas vezes imbricadas, levou até às últimas consequências a velha dicotomia moral bem/mal, daí o choque (fisiológico e não simplesmente estético) que provoca nos seus leitores. Não se sai intacto da sua obra, tornamo-nos outros depois de o ler, se formos verdadeiros leitores, isto é, se entrarmos genuinamente na história que ele conta.[1] Se assim for, múltiplas personagens excepcionais, extremas na bondade ou na maldade, às vezes nas duas, percorrerão a vida connosco (o Príncipe Míchkin, Aliocha Karamazov, Raskólnikov, Stavróguina, Dolgorouki, Valkorskii, Ivan Karamazov...). Dostoiévski reuniu um conjunto de personagens ambiciosas e sentimentais, ateias e crentes, revolucionárias e conservadoras, místicas e materialistas... trazendo-as para o século xx, o mais diabólico, irrisório e vertiginoso de todos os séculos. Apesar de magnéticas, nunca se apanha nelas um traço caricatural, parecem todas enraizadas na vida real, amando, odiando, sofrendo, devendo, trabalhando, equivocando-se, transbordando de filosofia ou reduzindo-se a um senso comum elementar... Suficientemente complexas para se desviarem de um possível pastiche heróico, vivem numa dispersão vital que as mostra torturadas pelas contradições, dúvidas, angústia, quimeras... São, numa palavra, personagens humanas, demasiado humanas.

Filho de um médico alcoólico, parece que o jovem Fiódor sempre desejou secretamente matar esse pai terrível que batia na esposa e nos filhos. O pensamento de poder ter sido um parricida bastou para marcar a ferros a sua consciência moral,[2] tanto mais que ele acabou por reproduzir alguns dos comportamentos do progenitor que odiava. Irascível, pobre, orgulhoso, susceptível, o jovem Fiódor era quase associal (isolando-se no meio dos livros de Shakespeare, Victor Hugo e Schiller)[3], mas a publicação do seu primeiro romance, Gente Pobre (1846), torna-o, aos 24 anos, admirável e invejável, o mundo das letras russas, sobretudo os críticos maiores Belinski e Nikitenko, recebe-o como o novo Gogol.[4] Os dois trabalhos seguintes goram as expectativas, passando subitamente de adulado a desprezado. Será um pouco assim toda a sua vida, uma permanente montanha-russa, elevação e declínio, poder e submissão (conhecia alturas de onde podia cair). Acrescentem-se as terríveis dificuldades económicas que sempre o acompanharam, porque não herdou capital económico, porque se dedicou totalmente à escrita, porque era um jogador inveterado (O Jogador) e, entre outros, porque sofria de epilepsia. Porém, tudo o que de extremo viveu nunca quebrou a sua incomensurável ambição de ser um escritor superior, nem a prisão siberiana, Gulag da época, apesar do trabalho esgotante, do frio e da fome, removeu esse destino auto-fabricado. A glória como retribuição de anos de miséria, uma embriaguez da metamorfose.

Para o que nos interessa aqui, na ressaca do fracasso literário pós Gente Pobre, sem acreditarmos numa simples relação de causa-efeito, Dostoiévski começa a frequentar um grupo de jovens intelectuais contestatários, impregnados de socialismo progressista (o círculo socialista de Petrachevski de São Petersburgo, na verdade bastante heteróclito, com liberais, anarquistas e socialistas), desenvolvimento rizomático do sopro revolucionário que varreu a Europa em 1848. Mas a 23 de Abril de 1949, a polícia prende-os, incluído Fiódor. No seguimento de um julgamento obscuro, vê-se condenado à morte e em 22 de Dezembro do mesmo ano é levado com alguns camaradas para o local da execução. Na verdade, a sentença era um simulacro, depois da encenação perfeita (leitura da condenação falsa, saco de tecido na cabeça, subida para o cadafalso...) acreditou realmente que ia morrer, mas no derradeiro instante ouve dizer que a pena (fictícia) tinha sido comutada, pelo “misericordioso” imperador Nicolau I, em prisão com trabalhos forçados num campo da Sibéria (onde permaneceu quatro anos, activando uma força espiritual sem ressentimentos). Este inimaginável suplício psicológico será retratado pela voz do Príncipe Míchkin no O Idiota (mais no sentido de ingénuo do que de ignorante, uma simplicidade que abre para a mensagem evangélica).[5] O grande biógrafo dostoievskiano Joseph Frank (a quem devo parte destas informações) vê no livro, o mais autobiográfico de todos, a reprodução e imortalização do momento trágico que ele viveu no simulacro de execução.

Este acontecimento, em pleno Inverno russo (estação do trágico frio glaciar), renovado mais tarde, mutatis mutandis, pela morte da esposa do do irmão amado em 1864, “regenerou as suas convicções”. Escreve ao irmão defendendo que a vida é sagrada, que cada minuto contém uma “felicidade eterna”, dispondo-se a “renascer sob uma nova fórmula”. Envolve-o um vitalismo religioso, uma paixão pela vida viva, dom e dádiva de Deus, a vida prova a existência de Deus em cada indivíduo (conversão de Dostoiévski). A confrontação directa, inevitável, com a morte destaca, com uma luz que alucina, a positividade da vida. Pede então uma nova oportunidade, jurando que “transformará cada minuto num século de vida”, como diz em O Idiota. E foi isso que escolheu, o simulacro de execução fê-lo renascer para uma nova relação com a vida, amando o mundo, dando graças por poder olhar para ele, cheirá-lo, tocá-lo, numa espécie de vertigem imanente suportada pela magnificência do transcendente.[6] A ausência de sentido, niilismo que inspirará Nietzsche, alojada na falta de reconhecimento, será substituída pela simplicidade luminosa, entregando-se à totalidade como uma criança fascinada com a existência. Só quem sentiu a morte envolvê-lo com garras infernais pode retornar à inocência que julgava perdida. Mas tudo é frágil e efémero, por isso se invoca o amor cristão, perdoando sem porquê, activando uma partícula da misericórdia divina no indivíduo (como o Príncipe Míchkin).

A pergunta que muitos fazem é sobre a importância do simulacro da execução na vida e obra de Dostoiévski, teria ele sido o mesmo sem essa deriva mortífera? Sabemos pelo menos que o Dostoiévski socialista e revolucionário se esvaneceu nesse dia, dando lugar ao Dostoiévski crente, russófilo[7] e conservador. Em vez da revolução política, propõe uma solução teológica na aceitação do sofrimento e no valor intrínseco da redenção (estoicismo cristão, uma ascese atípica). Sabemos também que sem essa experiência O Idiota, Os Irmãos Karamazov (morre pouco depois da sua publicação, em Janeiro de 1881) e Os Demónios não teriam provavelmente sido escritos. Talvez Raskólnikov não sofresse também os pavorosos e inultrapassáveis problemas de consciência por matar uma usurária, desaparecendo assim o centro metafísico do castigo (que a leitura marxista empobreceu terrivelmente, reduzindo-a à luta de classes espoletada pelo “odioso capitalismo”). Os maiores desvios morais abrem, paradoxalmente, para a redenção, só depois da vertigem do pecado se pode ter consciência da alma e procurar o perdão teológico, o mal parece ser, pois, o meio para chegar a Deus. A esta linha de pensamento, Dostoiévski juntou uma exaltada tendência para a interrogação infinita, hipertrofiando as dúvidas e as contradições. É, aliás, a sua veia inquisidora, à procura de mapear toda a amplitude do ser humano, que o torna excepcional também fora do reduto nacionalista, isto é, lhe dá um carácter universal. Recusando as morais cristã ou socialista nas suas vertentes simplistas, procurou desesperadamente Deus ao mesmo tempo que nunca deixou realmente de duvidar da sua existência. E isto é imenso. Se o devemos ao simulacro de execução, escreveu-se direito por linhas tortas. E creio que nem Saramago seria capaz de criticar o meio que levou ao fim, como o fez em relação ao Convento de Mafra (simplifico).

[1] George Steiner, em Dostoiévski ou Tolstói, assegura que estes são os dois maiores romancistas de sempre, vértice do triângulo mágico da arte da palavra, composto ainda pelas tragédias gregas e pela dramaturgia shakespeariana. Steiner antagoniza os dois autores russos porque ao apelo pelo transcende de Dostoiévski se opõe o apelo pelo materialismo racional de Tolstói. Para este crítico, as duas visões do mundo resumiriam uma espécie de dicotomia estrutural onde caberia viver cada humano, no fundo seríamos ou dostoievskianos ou tolstoianos, e nada mais. Cf. a entrevista em francês de Steiner sobre o livro.

[2] Isto mesmo é indicado num texto de Freud, “Dostoiévski e o parricídio”, onde finalmente o psicanalista dedica mais tempo à epilepsia de Dostoiévski e a um romance de Stefan Zweig do que ao tema do artigo. Não obstante, esse título moldou a perspectiva de muitos leitores em relação ao escritor russo.

[3] Em O Adolescente descreve-se como sombrio e fechado. Desejando isolar-se da sociedade. Não vendo razões para o filantropismo, já que as pessoas são menos belas do que se pretende.

[4] Sobre a recepção entusiasta, escreve ao seu irmão (Mikhail): “Vêem em mim uma corrente nova, original, que consiste em que eu procedo por análise e não por síntese, isto significa que aprofundo e, passando em revista átomo por átomo, questiono tudo; Gogol, por seu turno, apanha imediatamente o todo, é por isso que é menos profundo do que eu.”

[5] Por exemplo, diz o Príncipe Míchkin, encarregado da narração: “Pegue num soldado e vá pô-lo em frente do canhão no campo de batalha e dispare contra ele: o soldado terá esperança até ao último instante; mas leia a esse mesmo soldado uma sentença definitiva, e ele enlouquece ou chora. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem o enlouquecimento? Porquê esta profanação monstruosa, inútil, absurda? Talvez haja alguém a quem tenham lido a sentença, tenham deixado sofrer, e depois disseram; ‘Vai, estás perdoado.’ Talvez esse alguém o possa contar. Desse tormento e desse horror também Cristo falou. Não, não se pode fazer isso a uma pessoa!” (Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra para a Editorial Presença, Lisboa: 3.ª ed. 2004, p. 27). Mas para o que vimos narrando, as páginas mais elucidativas são, da mesma edição, as 64-71.

[6] Curiosamente, o Príncipe Míchkin, acaba por dizer às suas interlocutoras que afinal a personagem que prometera viver “contando cada minuto” se desviou, sem surpresa, dessa mesma promessa. (Cf. idem, p. 66).

[7] Nos seus derradeiros anos de vida fez discursos inflamados louvando a alma e o povo russos, a superioridade do “génio russo”, com o papel messiânico de compreender as outras culturas sem perder a sua especificidade, trazendo a felicidade à humanidade

Pequenas coisas mais literais: A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Romance, épica, arte poética, bildungsroman, biografia ficcional, não sabemos quanto de autobiografia, um longo ensaio sobre uma cidade, ou um longo ensaio sobre infância, adolescência, idade adulta, velhice, uma épica no feminino, uma meditação sobre Itália contemporânea, sobre maternidade ou sobre as implicações de nascer mulher no séc. XX numa sociedade ocidental, ou um longo romance sobre a vida de uma comunidade à margem de uma sociedade, todos estes ângulos vão desaparecendo e ressurgindo à medida que avançamos pelos quatro volumes da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

É tentador para um classicista querer ler na crónica da amizade entre Lena e Lila o eco da amizade mítica de Aquiles e Pátroclo, esse lugar atravessado pelos tambores da guerra a partir de onde a história da literatura ocidental começou a desenrolar-se. Qualquer coisa neste livro sem dúvida joga com o paradigma de lendárias amizades literárias no masculino. A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e porque, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da Tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da Tetralogia. A escrita de Ferrante tem sido apelidada de radical. Talvez o que este rótulo descreva seja o estilo de crónica precisa e, para usar outro termo gasto à falta de melhor, visceral dos romances, que não deixa nada intacto. Ou talvez pudéssemos aqui citar a escritora polaca Olga Tokarczuk, que nos faz pensar no método criativo de Ferrante:

Anyone who has ever tried to write a novel knows what an arduous task it is, undoubtedly one of the worst ways of occupying oneself. You have to remain within yourself all the time, in solitary confinement. It’s a controlled psychosis, an obsessive paranoia manacled to work, completely lacking in the feather pens and bustles and Venetian masks we would ordinarily associate with it, clothed instead in a butcher’s apron and rubber boots, eviscerating knife in hand.[1]

Mas podemos começar por pequenas coisas mais literais. Se estes romances são tão populares, o que é a sua popularidade nos diz sobre nós próprios, crescente exército global de leitores insones, que se perguntam entre si és Lena ou Lila, Nino ou Enzo? Chavões críticos que sem dúvida podem ser aplicados à Tetralogia Napolitana: uma das obras mais interessantes e controversas do nosso tempo. Os quatro romances foram agora publicados em Portugal na sua totalidade pela mão da sempre atenta Relógio d’Água. Talvez porque seja a Relógio d’Água uma das editoras em Portugal que tomou para si a missão de saciar as insaciáveis elites cultivadas da pátria, pequeno pormenor que infelizmente escapa ao olho de falcão de António Guerreiro nesta crónica[2] (para quem publicam editoras como a Relógio d’Água se não para essa sedenta elite de miríades, segundo AG tão extensa quanto insaciável, mas que em outras crónicas suas tende a ser apresentada como insuficiente), a editora optou por não publicar os livros com as mesmas capas kitsch com que foram publicados no original e no mundo anglo-saxónico. Com esta opção algo se perde. De alguma forma, a totalidade da obra de Ferrante pode ser lida como uma paródia negra daquele tipo de narrativas que habitam a escala entre o conto de fadas e My Fair Lady e que foram, ao longo de gerações, como a precisão impiedosa das reguadas dos professores fascistas deste planeta, reforçando estereótipos de género. Mas talvez porque a elite nacional se “dá ao respeito” (expressão que alude talvez a uma certa falta de imaginação e sentido de humor), pelo menos no que a capas se refere, belas fotografias a preto e branco animam a edição nacional da Tetralogia Napolitana.

As capas originais são de alguma forma a marca indelével do primeiro jogo da autora com as nossas expectativas. Nas palavras de Antonella Di Marzio são também outra coisa: “Whenever I see those tacky covers I can immediately identify the world that has been at the origin of the novels. It can't be denied, and such an operation is denying this authenticity. As if it weren't possible that such a world has generated literature and that we need some tweaking to make it acceptable, appealing.” É verdade, a primeira coisa que os romances de Elena Ferrante nos dizem sobre nós enquanto seus leitores é que temos um interesse em narrativas sobre injustiça social, tanto quanto sobre sonhos, criatividade, inteligências míticas como as de demiurgos, ao género de Sócrates (o outro, não esse). Que gostamos de ler romances que dramatizam a psicologia da amizade, do amor, da violência, do sexo. 

A Tetralogia existe no centro de um cânone e o seu trabalho é provocá-lo, arrastá-lo para outros caminhos, actualizá-lo. Mutatis mutandis, com Homero, Elena Ferrante partilha uma ideia de literatura enquanto empresa anónima, enquanto herdeira de uma inteligência colectiva: [t]here is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art.[3]

Mais vale perguntar: como é que estas personagens passam tão rapidamente a fazer parte da nossa vida? Porque nos interessam tanto? Se há um elo com a tradição, como podem personagens anteriores, narrativas anteriores, acrescentar algo à nossa experiência de ler a Tetralogia? Todos os livros que lemos anteriormente viajam connosco até ao livro seguinte (é também por isso que devemos a nós próprios imaginarmo-nos como poema contínuo). E os livros mantêm os seus diálogos com a tradição em que são gerados. Como Aquiles na Ilíada em relação a Pátroclo, Lena tenta articular o enredo da sua própria vida a partir da sua relação com Lila. O mesmo sucede com as nossas vidas, esse é grande parte do apelo dos romances. O enredo da vida de Lena está costurado com o de Lila, a amiga genial da infância, e a vontade de Lila é de alguma forma a força autoral da vida de Lena (de vez em quando a ordem inverte-se). Um dos aspectos mais importantes acerca deste conjunto de livros é recordar-nos que o amor não é linear, pacífico, agradável. É um desafio constante, cheio de uma ambivalência que requer de nós uma certa cegueira (uma habilidade para perdoar e seguir em frente) para se manter vivo.

Em aparência sempre um passo à frente, Lila vai tentando moldar o curso da vida de Lena, como uma espécie de narrador obscuro, relegado para segundo plano. Na sua totalidade, o apelo destes romances talvez assente nisto: a opção por uma forma biográfica, cronologicamente organizada da infância à velhice, expõe afinal a operação de ambivalência por que certos objectos de arte se intrometem nas nossas vidas e se tornam parte da nossa história: eles são ao mesmo tempo perfeitamente particulares (referem-se a momentos muito específicos das vidas de outros) e universais (os outros afinal são como nós). Ao falar dos privilégios de ser um leitor, o compatriota de Elena Ferrante, Umberto Eco, disse:

An illiterate person who dies, let us say at my age, has lived one life, whereas I have lived the lives of Napoleon, Caesar, d’Artagnan. So I always encourage young people to read books, because it’s an ideal way to develop a great memory and a ravenous multiple personality. And then at the end of your life you have lived countless lives, which is a fabulous privilege.[4]

Os romances napolitanos são a história de uma amizade ao mesmo tempo solar e opressiva entre duas mulheres. Para voltar à minha analogia inicial, como Aquiles, Lila não existe exactamente numa escala humana, e ambos partilham uma clareza de visão que não lhes permite deixar de distinguir em quem os rodeia a mediocridade e a falta de coragem sobretudo daqueles que têm pretensões a ter sobre eles poder. O poder do dinheiro, da autoridade, da corrupção, do sexo – aspectos obcessivamente examinados nos romances. Este exame propõe-nos a seguinte realidade: que crescemos com certos papéis, supostos por outros mesmo antes de podermos escolher que tipo de história será a das nossas vidas, a bagagem que carregamos connosco desde a infância e que se apropria de nós mesmo antes de entendermos quem somos, quem são os outros, elementos que servem para reforçar convenções sociais, como o sexo com que nascemos, o bairro em que crescemos, quem são os nossos pais, os nossos amigos de infância. Ao imaginar Lila, Ferrante tem de se ter perguntado o que aconteceria se alguém escrevesse um romance que tivesse no centro uma personagem que estivesse disposta a ser imune a todas essas convenções? Como é que ela seria? Como seria a sua vida? E quem poderia narrar a sua história? E, pode-se perguntar, podemos ler o final do romance como um comentário acerca desta ideia? Poderá a autora ter hesitado e o final pode ser interpretado como a aplicação de uma moral punitiva sobre uma das personagens no centro da acção? Ler é um acto ético, político, e enquanto leitores devemos a nós próprios este tipo de perguntas. São estas perguntas que permitem que os romances se tornem explorações da nossa personalidade, dos limites do nosso universo moral, mas, mais do que isso, da nossa empatia. E para que serve a nossa empatia de leitores? Como Nicholas Dames nota num ensaio recentemente publicado na The Atlantic:

...a deficit in empathy imperils a democratic culture, and that novels keep us entwined and engaged when we might otherwise drift apart in shrill and narcissistic self-certainty...[5]

Os primeiros dois volumes da Tetralogia são particularmente eficazes a explorar a ausência da possibilidade de uma origem em branco para a história das nossas vidas (nenhum homem, ou mulher, nasce, afinal, livre e igual aos outros), eles surgem carregados ao mesmo tempo do encanto e do terror da infância, e acidentalmente expõem a hipocrisia de algumas narrativas que nos são conferidas nessa idade e que acidentalmente servem para graduar a nossa posição numa certa escala política e social (o inverosímil super-intelecto de Lila, excluída da escola mesmo antes de entrar no liceu, é também uma provocação neste sentido). Narrativas essas que, deu-se o caso, em Itália em meados do século passado foram exacerbadas e postas em causa por uma série de eventos políticos e culturais que formam o contexto histórico do romance (o fascismo, os movimentos políticos e culturais que floresceram a partir da década de 60, as Brigadas Vermelhas), e que reforçam a pertinência das personagens de Ferrante hoje: como nós, gente para um tempo instável.

Num conjunto de romances que avança por sucessivas intermitências de esperança e crise, o ponto de tensão inicial ocorre entre a imaginação de Elena e Lila e a realidade que lhes é imposta, à qual é suposto ambas submeterem-se. Se os romances se leem como a história da formação de um escritor, então eles surgem da consciência de um real em falência constante, cuja vantagem é este traduzir-se no adquirir de uma lenta capacidade de estranhar coisas aparentemente banais, como o processo de degradação sofrido pelos corpos das mulheres do bairro, a percepção de que elas se parecem com os homens com quem se casaram, ou a violência de que os rapazes constantemente se socorrem para se afirmarem sob pena de serem vistos como fracos. Num dos capítulos de A Amiga Genial, as amigas discutem Dido e Eneias, e mais tarde, um ensaio de Lena sobre Vergílio adapta uma observação de Lila que Lena involutariamente associa à decadência bairro, que onde não há amor não só a vida das pessoas é estéril mas também a das cidades. É difícil imaginar um comentário político e social mais pertinente para os dias de hoje.

Como é que o amor se transforma em poder?, é uma pergunta colocada por Anne Carson num dos mais belos livros de poemas alguma vez publicados sobre um divórcio, The Beauty of the Husband, mas talvez os romances de Ferrante arrastem esta pergunta para o nível seguinte, como é que o amor sobrevive ao poder?   

Lila intui a beleza das coisas sem poder deixar de se diluir nelas. Na amizade, como em tudo o resto, para Lila não existem meias medidas. Os episódios de sinestesia de que ela sofre talvez sejam sobretudo uma expressão desta ideia. O percurso de Lena, moderada e agradável em quase tudo, ainda que na maior parte do tempo apenas em aparência, paradoxalmente, herda alguma coisa desta ética. Num diálogo com Pietro, ele diz-lhe que ela é meio feminista, meio comunista, meio estudante de Foucault, apenas com ele meias medidas nunca foram usadas. O grande desafio destes romances tem a ver com o modo como cada leitor se relaciona com o percurso emocional destas personagens. O grande desafio do percurso emocional de Lila e Lena é manterem o controlo sobre esse percurso. Talvez a ideia de que nos compete recusar meias medidas no amor, na amizade, nas nossas diversas trocas com outros, na nossa arte (o que quer que ela seja, pode ser escrever ou informática), possa ser entendido como o grande contexto ético da obra, e nesse sentido, a popularidade destes romances assenta num desafio a que as personagens estão constantemente expostas. Entender o que lhes acontece e porquê importa-nos e é-nos útil: este é também o nosso desafio todos os dias.

As alusões ao mundo antigo abundam. Algumas estão listadas na recensão de Aaron Bady para o LitHub[6]: Lena chama-se Elena Greco, licencia-se em clássicas depois de vencer uma bolsa para estudar na Normale de Pisa, que é o que lhe permite abandonar o bairro em Nápoles, escreve uma tese sobre Vergílio, a um dado momento casa-se com um classicista. Um dos diálogos mais importantes para a caracterização de Lena e Lila é a tal conversa sobre Dido e Eneias, há qualquer coisa neste diálogo que é reminiscente do diálogo entre Míchkin e Rogójin nas páginas iniciais de O Idiota, é um daqueles casos em que duas personagens não podem evitar expor-se mutuamente e isto de alguma forma prepara o palco para o que vai suceder em seguida. E, de alguma forma, com as personagens de Dostoievsky as personagens de Ferrante têm em comum uma certa noção de um peso metafísico que precede as suas acções, que as marca de longe para o que vai acontecer em seguida, as suas acções tornam-se uma parte decisiva da sua caracterização. Talvez poucas criações depois de Dostoievsky sejam tão Dostoievskianas como Lila. E ao mesmo tempo há em Lila e Lena qualquer coisa de profundamente reminiscente das mulheres que habitam os dramas de Eurípides. Pensamos em figuras como Medeia, Hécuba, Fedra, que percorrem a linha divisória entre a civilidade e a loucura, entre as convenções morais das sociedades em que habitam e a total falta de escolha que expõe a falência (e muitas vezes a perversidade) dessas convenções e que acaba por forçá-las à vingança. Nas suas peças sobre mulheres é como se Eurípides se perguntasse, as nossas sociedades foram pensadas para proteger um certo número de privilégios, o que acontece àqueles que se tornam vítimas desses privilégios? Não só quando Elena Ferrante fala do seu interesse em narrar a diferença do seu sexo, mas mais do que isso num certo pendor neo-realista dos romances (o bairro, o poder dos camorristas, a ascensão social de Lena, etc.), pode a autora ter tido esta mesma pergunta em mente?

Lila pertence àquele grupo de personagens literária que nunca projectam uma imagem definitiva de si próprias, a sua existência é da ordem da interrogação, não da resposta, as suas acções não correspondem tanto a factos como a actos demiúrgicos. A sua personalidade é capturada na descrição de Lena sempre no meio do drama, no momento em que se manifesta, Lila nunca se explica a si própria, e tudo o resto é o resultado da especulação de Lena. Juntas, Lena e Lila, como Pátroclo e Aquiles, são duas versões do mesmo tipo de inteligência humana e são tão inextricáveis que, inevitavelmente, em alguns momentos, desconfiamos que estamos perante duas versões da mesma personagem.

E se aquilo que na nossa inteligência é produto de uma inteligência colectiva não deve ser diminuído em favor do enaltecimento de um protagonismo excessivo, se o que nos ajuda a tornarmo-nos no que vamos sendo depende de uma exposição e de uma atenção constantes às ideias, interesses, paixões e histórias de outros, então a Tetralogia Napolitana, a história da formação de uma escritora (e neste aspecto os dois primeiros volumes habitam o mesmo espectro do nosso imaginário ocupado pela Autobiografia de Thomas Bernhard), o conjunto da obra de alguma forma desloca e expande o conceito de autor. Ligadas desde a infância, Lila parece em certos momentos ser a autora de Lena, a inventora do seu percurso, tal como de tantos outros objectos mais ou menos mirabolantes que lhe permitem assegurar alguma prosperidade, objectos nunca menos do que miticamente emocionais. E porque as mesmas versões da inteligência humana se reinventam com o progredir das tradições a que pertencem, neste aspecto, o herói de Homero com que Lila se parece é Ulisses, que na Odisseia a espaços deixa para trás um número de objectos construídos pelas suas próprias mãos que de alguma forma permitem a sobrevivência e, em alguns momentos, a opulência. Se Lila é ambivalente pela rejeição de uma ideia fixa de si própria, isto é de alguma forma um desafio à ideia de uma personalidade que encontra a sua melhor expressão na possibilidade de um destino narrativo linear, isto é, num destino que seja consequência dessa personalidade. Este é um dos aspectos mais fantásticos da Tetralogia. Lila, como Aquiles, é esta força cega no centro do romance, mas esta força falha em manter o controlo dos acontecimentos, falha em manter a ordem embora pareça ter o poder para a manter, convida o caos, no fim falha em controlar-se a si própria. De vez em quando cruzamo-nos com estas personagens, chamamos-lhes Aquiles ou Clitemnestra ou Mefistófeles, e é com um certo desconforto que depois voltamos à nossa rotina diária, mas somos um pouco menos banais depois desses encontros. A possibilidade de uma relação de causa e efeito entre personalidade e acção explica porque é que os romances são uma longa paródia das narrativas que habitam a nossa ideia do que são contos de fadas e a sua função na nossa cultura. Explicam também o apelo de Lila, uma heroína em falência constante, cujo último acto, o gesto que abre o romance, o seu desaparecimento, consiste talvez numa última tentativa de preservar a sua própria inteligência. E, no entanto, tanto o desaparecimento como as invenções de Lila têm qualquer coisa de dionisíaco, partilham da mesma natureza que uma ideia do cavalo de Tróia enquanto triunfo da inteligência: carregam ao mesmo tempo a potencialidade da vitória, do fim das tribulações, e da aniquilação total. O romance não nos deixa entender se este lado perverso da inteligência de Lila é intencional, e eis outro elo com Ulisses.

Neste aspecto, o fio da tradição que a Tetralogia alonga é o da nossa atracção por formas de inteligência herméticas, que de alguma forma são animadas de um potencial inesgotável que rapidamente se pode tornar numa força para a destruição. Entendido enquanto romance feminista, um rótulo de resto nem confirmado nem rejeitado por Ferrante, talvez seja este o contributo do romance nesse aspecto: duas mulheres que crescem num bairro pobre, dominado pela corrupção e pela violência da Camorra, e que entendem cedo, e em certo sentido quase inconscientemente, que a única solução é inventarem-se a si próprias apesar das restrições que lhes são impostas. A Tetralogia de certo modo diz-nos, nada é tão belo como a força gasta em construir as nossas histórias.

Uma última nota. O que tem sido apelidado da extrema violência dos romances, de resto, a meu ver, mal lida por críticos de outro modo competentes[7] porque confundida com uma estratégia fácil para agradar ao leitor, um rótulo descartado por Ferrante (“Literature that indulges the tastes of the reader is a degraded literature. My goal is to disappoint the usual expectations and inspire new ones.”[8]), cuja função é traduzir a violência constante deste mundo, é um sintoma de porque é que estes romances de alguma forma são objectos tão pouco convencionais. Como notou Megan O’Rourke:

Ferrante’s project is bold: her books chronicle the inner conflicts of intelligent women (professors, novelists) who, having made their way to Florence or Rome and to good jobs, find themselves confronting memories of the crude violence and misogyny of their youth. Shaken by a surprising event, they lose their grip on reality, lapse into a Neapolitan dialect full of obscenities, and are drawn into hallucinatory quests to heal old emotional injuries. The books’ taglines might be “No self can be left behind”: in Ferrante’s world, no character can escape her past.[9]

É verdade, há uma violência comum a todos os romances de Ferrante, que podemos correr o risco de querer rotular de gratuita. Mas também é verdade que existe um certo nível de violência com que convivemos todos os dias (que os romances de Ferrante são eficazes em sintonizar, até o seu ruído se tornar insuportável e ela ter de ser enfrentada). Podemos escolher fechar os olhos, deixá-la justamente aí, no passado, tentar domesticá-la, ou mesmo reparti-la pelos dias para que nunca nos falte. Mas talvez estes romances nos causem tanto desconforto justamente por aí, porque nos lembram de uma necessidade ética de que falava Maya Angelou[10], ao afirmar que a única virtude de que realmente precisamos é a da coragem, porque esta garantirá que seremos constantes em todas as outras. Esta ideia é outra chave possível para ler estes romances. Talvez seja particularmente pertinente para ler o percurso de Nino no seu envolvimento com as duas personagens principais. Mas podemos perguntar-nos, há alguma virtude em Nino?

Violência psicológica, física, que envolve homens, mulheres e crianças, e que traz à superfície o desafio que é mantermo-nos humanos e descobrirmo-nos ou reencontrarmo-nos a nós próprios, depois de nos perdemos, decepcionarmos, sermos destruídos pelas nossas expectativas, destruirmo-las pela nossa própria vontade. Será que alguma vez nos reencontramos? Será isso o que acontece? Depois dos acontecimentos do segundo volume, Lila alguma vez se reencontra? Este é um dos grandes desafios de estar vivo e o grande desafio no centro da Tetralogia. Alguns dirão, é também a grande alegria de embarcar na aventura de ler um romance que ronda a extensão do Guerra e Paz.


[1] http://www.asymptotejournal.com/fiction/olga-tokarczuk-flights/

[2] http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-excedentarios-da-cultura-1724781

[3] http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante

[4] http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-umberto-eco

[5] http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2016/04/the-new-fiction-of-solitude/471474/

[6] http://lithub.com/elena-ferrante-master-of-the-epic-anti-epic/

[7] Tim Parks, http://www.nybooks.com/daily/2015/11/10/how-could-you-like-that-book/

[8] Elena Ferrante, Paris Review, Art of Fiction No. 228 (http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante).

[9] http://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-knows

[10] Entrevista a Harriett Gilbert: http://www.bbc.co.uk/programmes/p02023bg

Dante e coelhos: Cassandra Jordão lê a Divina Comédia

Dante, avistado aqui a relaxar no cenário da composição da Comédia.

Dante, avistado aqui a relaxar no cenário da composição da Comédia.

Após muita insistência da nossa assistente estagiária (no último mês entendemos por bem promover Cassandra Jordão de estagiária a assistente estagiária, após tensas negociações em que a jornalista ameaçou trocar o estágio que lhe oferecemos por um estágio no Correio da Manhã – acordámos pagar-lhe uma módica soma mensal destinada a “ajudas de custo”, um pecúlio que a referida estagiária gastará provavelmente em tatuagens, uma vez que aos 27 anos de idade mantém residência em casa dos pais), resolvemos conceder-lhe uma coluna mensal. Trata-se de um espaço dedicado à crítica literária, em que grandes clássicos e obras menores serão alvo da caneta implacável da nossa jornalista de serviço. Aqui fica a primeira escolha, a Divina Comédia de Dante Alighieri.

            NB: A escolha do título para esta primeira coluna é da exclusiva responsabilidade da sua autora. Após acesa discussão com o departamento editorial da Enfermaria 6, a autora justifica a sua opção no espírito Warholiano de praticar a sua arte, a arte do crítico, justamente na intercepção entre arte e quotidiano.

 

Dante Alighieri

Classificação: 3 (três) *** (estrelas)

 

A Divina Comédia de Dante Alighieri é uma obra que, 696 anos após a sua publicação, se continua a ler simultaneamente como uma pedrada num charco e um murro no estômago. Perde apenas por não ser um segredo muito bem guardado. Algumas limitações têm no entanto de ser apontadas ao génio florentino, e sendo que nenhum dos críticos meus antepassados, e quiçá contemporâneos, parece ter apreciado as devidas limitações da obra, é minha tarefa aqui considerar este clássico intemporal a partir de uma perspectiva que me coloca numa posição muito particular, a do crítico que sabe estar a escrever para leitores que leem livros e crítica apenas com um interesse em obter conselhos de escrita criativa.

Deste ponto de vista, a primeira falha (na lógica de vocabulário autoritário, perdão, autorizado, de que disponho enquanto crítica, o termo não é outro) a apontar é a de que se trata de uma obra demasiado longa, que teria ganhado bastante com uma mão editorial mais pesada. Uma pessoa podia perguntar-se se era mesmo necessário incluir o Purgatório. É certo que toda uma secção de cenas imortais na história da literatura do Ocidente desapareceria, mas a leitura seria muito mais rápida, a obra ganharia ritmo sem aquela longa pausa no meio, e resultaria bem menos maçuda.

Outra nota negativa é que o adjectivo abunda, e nem sempre é necessário. Por outro lado, perguntamo-nos se seria preciso nomear tanto contemporâneo, para nada dizer da opção de gosto duvidoso do autor florentino em colocar gente bastante respeitável (cardeais, papas, governantes, poetas) em círculos menos respeitáveis da geografia do poema. Que Nicolau III, que à data da composição do texto já se encontrava morto, pudesse ser encontrado no círculo dos condenados por venderem favores divinos, tudo certo, agora dar um cameo a Bonifácio VIII no Inferno no ano de 1300 (o papa só morre em 1303) é um imperdoável erro de cronologia, que claramente só pode ser interpretado não através do ângulo da proverbial animosidade de Dante contra o papa, uma explicação que críticos anteriores entenderam como legítima, mas inevitavelmente como indício de um trabalho de pesquisa pouco minucioso da parte do génio de Florença.

Outro apontamento menos positivo acerca da nossa experiência de leitura deste clássico vai para a tradução. Não tendo lido o original, temos no entanto de apontar o facto de que encontrámos várias vírgulas fora do lugar. Ora, toda a gente sabe que o mais importante num texto é o ritmo, e o ritmo que se quer hoje em dia é o da rápida batida techno. Estamos em crer que esta tradução teria muito a ganhar com mais vírgulas. A obra imortal de Dante de facto peca por demasiado longa, e lenta em certas partes. O leitor tem o direito de se perguntar: era mesmo necessário dar a Ugolino della Gherardesca aquele discurso tão longo que, como tantos outros (longos) encontros do poeta nos diferentes círculos só atrapalham o enredo principal (chegar ao Paraíso, encontrar a miúda) e quebram o ritmo da narrativa?

Voltando à tradução. Com o rigor que nos é característico, googlámos excertos do texto original de Dante, e, comparando um excerto encontrado ao calhas na Wikipedia com um excerto da tradução, descobrimos três vírgulas fora do lugar. Isto permite-nos afirmar com a segurança que a autoridade da crítica nos confere que a tradução do consagrado poeta australiano, Clive James, há décadas estudante de Dante, é de péssima qualidade.

Má nota também para o princípio da obra: para leitores menos atentos, Dante começa pelo meio, e nós preferíamos saber o que se passa logo desde o princípio. O pseudo-golpe de angst existencial de Dante não é suficiente para convencer o leitor. Afirmar que se encontrava no meio do caminho da vida na verdade diz-nos muito pouco acerca da vida deste irrequieto autor florentino até ao momento de começar a escrever a épica, e tivemos de emparelhar a leitura da Comédia com a leitura da Vita Nuova, obra de juventude, povoada de alusões a outros poetas amigos de Dante – note-se que são até mencionados uns quantos que tornam depois a aparecer mais tarde na Comédia e é bastante difícil entender de onde eles vieram e como é que Dante estava relacionado com eles sem ter lido a Vita Nuova, para nada dizer do que acontece ao nosso entendimento da parte mais hot da Comédia, o romance com Beatriz, sem ter lido este outro livrinho. Para uma obra já tão longa, esperar ainda que o leitor tenha de ler a obra anterior para perceber melhor o que se está a passar é simplesmente um mau golpe de marketing. Nos tempos que correm, a Wikipedia pode bem matar estes dois coelhos de uma cajadada só. É uma nota que gostaria de deixar à consideração dos departamentos de marketing das editoras que se dedicam a publicar Dante.

Por outro lado, tanta repetição de personagens de obra para obra é ilustrativa das limitações da inexistência de um equivalente da revista Caras ou Lux na Florença de finais do séc. XIII/ princípios do séc. XIV, não deixando aos poetas muito mais escolha do que ocuparem-se de matéria que de outro modo, perguntamo-nos nós, poderia ter povoado a cultura pop da época e não a grande poesia. E não nos alongaremos aqui sobre a paixão de Dante pela relação entre poesia e crónica social ter levado à inclusão de personagens com nomes de duvidoso gosto poético: Barbarrossa; Bonagiunta; Buonconte; Buonanotte. Para mencionar apenas personagens na letra B.

Falando de Dante e matar coelhos de uma cajadada só, outro aspecto em que a obra perde pontos é justamente na questão do romance com Beatriz. À parte alguns encontros fugazes em Florença, este romance como linha do enredo resulta pouco convincente. Beatriz é uma mulher que Dante vê ao longe não mais do que uma mão cheia de vezes, se tanto, para mais casada com outra pessoa. O próprio Dante, tanto quanto apurámos, era, também ele, casado com outra pessoa.

Desta forma, é obrigação do crítico, tanto quanto do avisado leitor, perguntar-se se a obsessão do autor deve ser entendida como mais uma peça do enquadramento filosófico de inspiração tomista que, quer Dante levar-nos a crer, é o da Comédia, do amor enquanto máxima aventura espiritual, ou, para leitores mais avisados, os mesmos que, estamos em crer, apreciariam uma Comédia mais curta, um stalker a atirar para o creepy.

Com um texto que gera tantas dúvidas, três estrelas parece-nos uma nota adequada. Não mais, Musa. Não mais.