(13 de novembro de 2021)
Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.
Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”.
Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:
“os teus pensamentos têm a violência
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)
“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)
“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)
“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)
“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)
“a rapariga que trabalha sentada à minha frente
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)
“o nosso tempo é cortado
numa série de momentos
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)
Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário - enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:
“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto” (leçon de tenèbres, p. 44)
Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção, mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:
“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44)
E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.
“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32)
“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas” (p. 58)
“oito caixas de kleenex” (p. 52)
“o mesmo café à mesma hora
(...)
este meio copo de cerveja barata”
“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49)
“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32)
Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:
“os muitos fragmentos
de vasos venezianos ou bizantinos
fragmentados em centenas de cacos
que uma mão teima em reconstruir
povoando de remendos a sala
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12)
“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)
Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).
Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:
“como adormecer
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56)
Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).
Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã.
Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte:
“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)
“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16)
“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23)
“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)
“uma força confiante como a dos leopardos
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34)
“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36)
“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42)
“o mundo fechou-se
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57)
“o girar cada vez mais rápido
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42)
“inesperado centro a que
com velocidade desarmante
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44)
“ele roda no sentido do relógio
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64)
E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:
“a madrugada há de romper de novo
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20)
“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20)
“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25)
“mas quando o dia começar
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33)
“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34)
“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28)
“não sinto que tenha autoridade
para pensar no medo e na luz
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48)
“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43)
Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):
“é como ser um deus do sono ou da morte
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno
onde vai apontando nomes como um delator”
E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt. Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta.
Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?". Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?
Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde.
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.
(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)