Le Déjeuner sur l’Herbe

Conheço o ritual. As famílias fundem-se nas vértebras dos domingos inesgotáveis, regressam às árvores, estendem as suas toalhas, trazem um cesto cheio de munições. As crianças encontram no chão a proximidade ao longe. Correm com a solidão de fora. Estão extremamente descalças. Brincam com a probabilidade eufórica do monstro. A sua motivação é desoladora. Os adultos inquietam-se. Trocam migalhas, saudações. Os homens sonham com Victorine Muerent, a famigerada musa de Manet, e pedem às suas senhoras uma imitação consoladora. As mulheres despem-se, contrariadas e celestes, sobre um fundo pálido de floresta e naturezas mortas. Abrem-se os cestos, descobrem-se os gostos. As frutas a céu aberto, as carnes temperadas pelo pequeno desassossego da moda, os insectos que pousam sobre a massa branca e perfumada do abandono, numa óbvia incitação à fenomenologia dos odores. As crianças crescem na distância e correm para sempre na inescrutável direcção do Sena e dos seus afluentes e assombros. Os homens continuam vestidos de morte e de forma absolutamente mental atacam as suas senhoras. É o auge da refeição. Cai uma espécie de noite que a mastigação ilumina por dentro e o vinho prolonga. As crianças regressam do rio. Não entendem a imobilidade canibal dos progenitores, a forma como a nudez das duas mulheres se consome, pouco a pouco. Farejam os restos que escorrem dos cestos. Trepam às árvores. Aconchegam nas armas a dureza das munições. E apontam.

A invenção da noite

A languidez dos corpos inundava todos os recantos da nave, onde outrora se tinha insinuado a terrível batalha do sonho, do sexo e do abandono. A música tinha caído aos nossos pés, como uma águia alvejada, e a manhã feria de morte as pálpebras frágeis dos gladiadores. Enquanto dono da casa, cabia-me propiciar uma certa ordem naquela tendência para nos deixarmos morrer ao sabor de nenhum socorro. Muito a custo, deixava o calor dos meus lençóis, e a beatífica Beatriz no seu sono cheio de cavalos e hecatombes, e abria a porta do meu quarto para começar a fruir a densidade dos odores, a espada culpada da manhã no meu rosto, a visão dos corpos amontoados numa nudez de pormenor, numa fadiga caprichosa e relutante, numa ontologia de cera e indecoro. 

Na minha casa cabiam todos os percalços da noite. Era eu que a inventava. Começava a inventar a noite no fundo da casa, no quarto das desarrumações, onde alguns casais ainda soçobravam, pele contra pele, sono contra sono. Passava pelos corredores, esquivando as dunas que os corpos fechados instruíam numa espécie de oração sem fundo. 

Chegava à sala e o aparato era medonho. Mas aquilo fazia-me feliz, como nunca nada me tinha feito antes. Havia corpos descosidos na cozinha e nas casas de banho, alguns colados às paredes e aos tectos, outros levitavam na luz imprecisa da solidão insólita, como num lago, sob uma história infundada, insectos mortos. 

Fechava as janelas, com o máximo cuidado, descia os estores ou as persianas indolores, e a calma, a minha calma, ia-se restaurando pouco a pouco. Não era raro acontecer alguns deles despertarem, mas mantinham uma ingenuidade impostora que lhes dava um certo luxo amador e privilégios vindouros. A elas, às que permaneciam respeitosamente castas no seu fingido descuido oblongo, premiava-as sempre com um baile à queima-roupa. Ficávamos a dançar às escuras como monstros, algumas vezes até voltar a verdadeira noite. Era nessa altura que eu mais gostava de acordar a Beatriz.

Divertimento

Parece eterna esta greve dos maquinistas da razão,
com paragens em Aumento de Salário,
Melhores Condições e Crédito.  
Junto das margens do quotidiano, damas e cavalheiros,
alguns vestidos segundo a última moda da época,
com piadas e chapéus lamentavelmente sinceros
dançam à volta de um presente envenenado
e choram pelo amanhã.

O tempo é compulsivo. O ar é compulsivo.

Gloriosos dermatologistas espreitam
sinais suspeitos no céu. A Lua,
esse belo e melancólico melanoma in situ,
insidiosamente recortada do método.

Penso, logo insisto na breve existência
da espera. Parece eterna.
Anjos que se exibem terminantemente
na sua terminologia,
passam dentro de automóveis cruéis
que urram por cima da História
e da invulnerabilidade, cheios de fome
e de átomos de tédio. 

Grandes ofertas de humidade escorrem
pelas paredes impávidas do século.
Não há ainda nenhuma data prevista
para sermos felizes para sempre.
O comboio que vai dar entrada na linha 2
é um macho alfa pendular
com destino a Indiferença.

Vens?

A condição humana

Inverno. Interior. Noite. Uma tristeza extra-large. A voz gravada anuncia, através dos altifalantes, que o tempo vai acabar. Repete o aviso em várias línguas e depois começa a soar Mittwoch aus Licht de Stockhausen. 
Estou sentado na cadeira disciplinada de um avião. O som moribundo da máquina ocupa grande parte do meu campo visual. Uma longa sala de espera flutuante. Filas intermináveis de cadeiras e passageiros sentados, higiene e geometria postural, anjos com uma enorme capacidade de resignação. 
Uma hospedeira de bordo, muito aérea e decotada, aproxima-se de mim, inclina-se, deixando entrever a força e o argumento da sua amabilidade. Oferece-me uma demonstração gratuita do seu sorriso profissional, pergunta-me se está tudo bem, se preciso de alguma coisa, e por fim deseja-me boa viagem. 
Uma senhora de idade está sentada ao meu lado. Olha indisfarçavelmente pela pequena escotilha do avião. A julgar pela fisionomia de ave frágil e pálida, não parece portuguesa. Não parece sequer real. Tem um sorriso pendurado nos lábios. Ignoro a causa que a pôs a bordo da sua derradeira viagem. Seria de muito mau tom, aliás, questioná-la a respeito da sua própria extinção. Mas não resisto a perguntar-lhe para onde tão alegre e insistentemente está a olhar. Lá em baixo, down there, aponta com o indicador esguio e enrugado através da pequena janela do avião, the human condition, a condição humana.

Terra, 2335

A ausência de prova não é prova de ausência. Deus está aqui (e não em toda a parte), reclinado no seu intrínseco divã, entre os costumes perfumados da fama e a excelsa respiração da manhã. Mas o seu rosto, oriundo da especulação secular, está abalado. Alguns movimentos involuntários, tremuras e contorções, tiques e trejeitos visivelmente inoperantes que interferem com a placidez do estereótipo e reflectem a falência da representação, desafiam agora os seus consabidos poderes ancestrais. Ao seu lado, o seu cuidador, um androide de grandes olhos ovais e extrema dedicação, cumpre o seu ritual. 

Nisto, à volta da cabeça de deus, forma-se uma grande nuvem de moscas que coroa a sua paralisia cerebral. O seu voo é denso, circular e constante. A infinita rigidez de deus impede-o de as enxotar.

Estamos em pleno planeta Terra. A cena decorre num imenso jardim, onde o verde se conjuga maravilhosamente com o castanho e o branco das margaridas ensaia uma coreografia com o amarelo das acácias, e a luz do sol cai a pique sobre os baloiços, os aquedutos e as estátuas. Ao longe, do interior de uma oficina de protótipos angelicais, ouvem-se os risos de androides embriagados. O último humano foi avistado há cerca de 300 anos. Reina a mais indecorosa paz.