Da incapacidade de ser dissimulado e escrever

Adultos sabendo ser adultos

Adultos sabendo ser adultos

 Houve uma altura em que acreditei que um pouco de dissimulação não fazia mal a ninguém, que até era necessária para existir. Quem não mente a si mesmo de maneira a manter um emprego? Quem não sorri quando tem vontade de bater? Provou-me a experiência que a dissimulação pode ser nociva. Para brincar com o fogo é preciso ser dotado de um talento inato, de muitas horas de prática ou de uma capacidade incrível de resistência à dor. 

 Não é fácil não ter vergonha na cara durante trezentos e sessenta e cinco dias por ano ou conviver com gente odiosa por mera conveniência ou oportunismo. Muitos tentaram e sofreram. Não é fácil por vários motivos. Alguém que pretenda brincar com a dissimulação deve compreender que lida com outros dissimulados, que neste jogo não é possível desistir a meio ou que há consequências para quem desistir do jogo. Interpretando papéis e alimentando mentiras, não esperemos entrar num jogo de máscaras imunes ao asco por terceiros e por nós mesmos. Assaltam-nos perguntas como: para onde foi a dignidade? Valerá a pena o esforço de me ter tornado numa mentira? Se a dissimulação nos rouba o sono, se nos enche de remorsos, arrependimento e culpa, é quase certo que não fomos feitos para esta arte. E isto pouco tem de bom, pois quer dizer que temos dificuldade em aceitar que o mundo existe como existe, em aceitar que nada presta, inclusive a nossa pessoa. Não aceitar estas coisas é o primeiro passo para nos perdermos em termos profissionais e para sermos solitários, escutando aquele silêncio insuportável das frases que insistem em nos martelar o cérebro. 

Um conhecido publica na nossa revista sem apreciar nada daquilo que nessa revista se publica. Continuamos a publicá-lo e revoltamo-nos por de nada ele gostar. Não aceitamos que ele exista dessa maneira. Ele não gosta de nós, não gostamos dele, apertamos a mão, sorrimos, publicamo-nos. Privamos com um editor que odiamos de morte. Um tipo enterrado em mediocridade. Desprezamos o seu trabalho. Ainda assim, sendo mediático, estamos dispostos a vender a alma lhe para roubar algum do mediatismo. A nossa obra precisa de publicidade, pensamos, e escrever não basta. Chega o dia em que o editor medíocre nos enterra o punhal nas costas, como se previa, tendo em conta o seu comportamento com todos os que não se submeteram ao seu estilo de zero fanfarrão. Incomoda-nos igualmente que certo parasita deambule de apresentação em apresentação, de festival em festival, motivado pela fama. Apelidar-nos-ão de frustrados, com razão. Um homem que não dorme é muito frustrado. Um homem que pensa nos outros é frustrado. A frustração transcende o parasita: quanto mais queremos fugir da dissimulação que quase nos matou, mais a realidade nos força a constatar que a dissimulação constrói carreiras. Ser livre é importante. E viver de consciência tranquila. Ser talentoso é algo que poderá suscitar inveja ou admiração em muitos. Nada disso é mais relevante para fabricar carreiras do que estar no sítio certo à hora certa, do que ser criterioso nos likes, nos sorrisos. Isto é de cínico. O sucesso parece, por vezes, uma gestão da capacidade de viver de aparências. Mas imaginemos que um dia determinada pessoa que nos perturba chega com a lengalenga do costume e nos afastamos, dizemos que não, recusamos o jogo do vómito, e seguimos caminho, um caminho que até pode ser lento. Que bom poder imaginar.

um copo de vinho pedido na vertical

senhor v. tem razão, há coisas muito miudinhas a que vamos a nos tornar, nos apegar. 

gosto, por exemplo, de reler ‘manhãs desperdiçadas’, dá vontade de comprar cigarros industrializados e fumar, fumar, fumar, até poder arrancar o cancro na unha. 

há coisas ainda bem mais miúdas, como a frase ‘está um frio a mais’. um frio a mais também é um cancro que me cresce na garganta, o desejo de uma pastilha muito fina sobre a língua pastosa da manhã. 

(detenho-me na primeira frase – e não sei que diabos fazer. decido-me a tomar um carro de aluguel e ir até à praia. levanto as mãos bem alto para trazer a chuva mais pra perto, como nos pés molhados e o suor no solado de borracha gasta. decido-me a subir quatro léguas ao mar e ver a manhã nublada na água a abrir o mais fundo o corpo e ainda mais. ali um riso, ali uns dentes e ali umas palmas muito contidas de quem quer bater e não bate. decido-me os rasgos e desvios. 11h30 não parece uma boa hora para dizer o que não pode ser concreto, uns filhos a cuidar, uma gente a cuidar e toda gente se conhece. decido-me a outro carro de aluguel e um mortal-triplo pela chuva acima.) 

há ainda coisas graúdas a que não se deter, senhor v., o caroço da manga no prato, o caroço do abacate no prato, uma xícara imensa que não deveria se dizer xícara cheia de xocoatl bem quente. esse cancro que me sobe ao céu da boca. 

a senhora do almoço pensa, um conto do pavese com o nome da ex-mulher que já é de novo sua mulher e então é isso: o amor nos distrai a todos das importâncias e nos torna tão delicados e tristes. coisas muito graúdas - e também das desimportâncias que não estão no roteiro, é certo. e já a altura de dizer não, um rimbaud imenso de graúdo se nos coloca no peito, com toda delicadeza. 

a mochila pesa. 500 gramas da primeira carta de sêneca e sua urgência. 200 gramas de um calixto e sua morfina. a mochila é um aglutinador do tempo, eles vivem esse meu tempo desperdiçado, vivem eles o meu mesmo tempo. tenho cá os dois e um espaço entre eles, o que é este espaço desperdiçado? um movimento que não faço, um acontecimento é o que meus dedos tocam, o que me veem os olhos. 

a senhora do almoço me deu a importância de um corpo inteiro. um copo de vinho pedido na vertical. e coisas muito miúdas e muito graúdas. detemo-nos na distração?

[Perfil de Nina Rizzi na Enfermaria 6]

Tentativa de progressão no entendimento de Deus

E eu fixava-me naquelas coisas que estão contidas em lugares, e não encontrava aí lugar para descansar, nem essas coisas me acolhiam de forma a que eu pudesse dizer: ‘Basta’ e ‘Está bem’, nem me deixavam voltar quando para mim estivesse bastante bem.

Santo Agostinho

 

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É uma questão que trago comigo mesmo: Deus. O mesmo Deus de Abraão, Moisés, Maomé e Jesus Cristo.

 

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Nem toda a minha vida fui um céptico em relação a Deus. Fui baptizado, recebi a primeira-comunhão e fui crismado. Os dois últimos acontecimentos foram da minha e inteira responsabilidade, isto é, fui eu que decidi receber a primeira-comunhão e fui eu que decidi ser crismado. Durante muito tempo acreditei no Deus que me ensinaram a acreditar: um Deus que salva os justos e condena os malfeitores, que está atento a todos os nossos passos, que era, pura e simplesmente, o polícia de tudo. Penso que nunca me foi dito que Deus é Amor, Bondade, Vida. Mas não quero afirmar. Já lá vão alguns anos e muito preconceito formado em relação à ideia de Deus. E quando digo ideia refiro-me a ideia abstracta, isto é, algo que pode ter várias representações.

 

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Talvez tenha tido azar com as catequistas: foram à antiga: todas caldeirões de azeite a ferver e pecados em todo o lado. A ideia de pecado sempre me fez alguma confusão. Quase tudo era pecado: comer chocolate era pecado, levantar a saia às meninas era pecado, comparar o tamanho das pilas era pecado. A própria ideia de que nos apetecia pecar era pecado. Só mais tarde me apercebi que o maior pecado de todos (aquele que realmente importa) era negar a mim mesmo tudo aquilo que me dá prazer. No entanto, a ideia de pecado ainda perdura em mim. É algo que ainda me persegue e da qual tenho tido alguma dificuldade em me libertar. É claro que com a ideia de pecado surge um sentimento: a culpa. Não me posso esquecer que foram anos e anos de profunda e contínua negação de mim mesmo. É claro que não ouso afirmar que tudo isso está resolvido. Muito pelo contrário: quanto mais avanço, mais se adensa a inquietação.

 

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A ideia de um Deus absurdo, vingador, vaidoso, existiu durante algum tempo em mim. Absurdo:  quando pede a Abraão que sacrifique o seu único filho, como prova da sua lealdade. Vingador: quando destrói Sodoma e Gomorra, que mais não são do que lugares de pura Liberdade, onde a anulação do Eu não existe. Vaidoso: quando se apresenta a Moisés dizendo: “Eu Sou Aquele que É”.

 

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Mas, voltemos ao essencial: a ideia de Deus. A ideia de Deus, para além de abstracta, não é fácil. Caso fosse fácil não existira esse conceito (ou será ideia?) que tem o nome de . A Fé é a resposta a todas as questões que possam ser levantadas. Só quem tem verdadeira Fé pode apreender e compreender a ideia que é Deus. É claro que não há conceito (ou será ideia?) mais complexo do que a ideia (ou será conceito?) de Fé. Não conheci, até hoje, ninguém que conseguisse explicar convenientemente o que é isso da Fé. É quase tão difícil de explicar como de traduzir a palavra “saudade”. Ou se tem ou não se tem: Fé. Mas, nasce connosco ou é algo que cresce connosco? Há quem perca a Fé e há quem ganhe Fé e ainda há aqueles que sempre tiveram Fé. Em nome da Fé foram feitas coisas magníficas e, também, foram feitas coisas horríveis. Afinal, o que é a Fé?

 

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Entendo, compreendo e considero justificável a necessidade dum centro que tudo ordene. Em alguns casos esse centro é Deus. Noutros: a Natureza, o Homem, a História, a Ciência. Contudo é impossível viver sem um centro que tudo ordene. Pode até ser um ideal, uma vontade, um desejo ou outra coisa ainda mais primitiva. Mas ele está lá presente, centro.

 

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Haverá quem alegue que Deus já não é, nos dias de hoje, necessário. Lembro-me, nitidamente, que a primeira explicação que alguma vez ouvi para a trovoada foi Deus está zangado. Curioso: nunca ouvi explicar um dia de sol, nunca ouvi ninguém dizer: hoje está um lindo dia de sol, porque Deus está contente. Cresci com a noção de que Deus estava sempre zangado. Ou só se manifestava quando estava zangado.

 

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Essa ideia de um Deus zangado, irado, perdurou durante muito tempo. Até ao dia em que desapareceu. E, junto com ela, a própria ideia de Deus.

 

§

 

Mas como justifico eu esse desaparecimento? Terei perdido a Fé? Mas, o que sei eu da Fé? E se perdi a Fé, terá sido a Fé em Deus, no Homem, ou em mim próprio? Muitas vezes procurei respostas. Ainda hoje as procuro. Porquê? Não consigo explicar. Sei, apenas, que existe em mim um impulso que me orienta nesse sentido. Será Deus? Ou será apenas a necessidade de encontrar um centro que tudo ordene? Ou será a necessidade de encontrar respostas para as dúvidas, inquietação?