Margarita Liberaki

Penso que devia haver um teste psicológico básico que candidatos a políticos deviam ser obrigados a fazer. Só poderiam passar a candidatos a eleições se fossem aprovados nesse procedimento. Às vezes até para os trabalhos mais básicos uma pessoa tem de ir a pelo menos duas entrevistas em que as suas competências são, normalmente num espetáculo triste e pouco dignificante, dissecadas para medir a sua competência na tarefa que pretende exercer. Conversas, exercícios, interacções de grupo. Tentei uma vez demover-me de um emprego para passar para outro bem mais simples, que me deixaria com mais tempo para plantar morangos e escrever versos, as duas únicas actividades que no fundo me interessam, mas não consegui convencer os entrevistadores a darem-me a oportunidade de dar cabo de uma carreira profissional na qual não estava particularmente investida. O que correu mal neste plano? A segunda entrevista, claro. As minhas prioridades erradas transpareceram todas na segunda entrevista. Pela mesma lógica, haveria muito mandato político absolutamente vergonhoso a que este processo simples nos teria poupado. Se não tens um vocabulário de mais de cinquenta palavras ou se és um sociopata narcisístico com uma personalidade pouco colaborativa, e não lidas bem com discussão e crítica, se não te importa o bem comum, se te agradam ataques verbais gratuitos que se destinam a obliterar uma certa empatia por outras pessoas para explorar divisões internas e/ou externas e incitar o ódio, se não queres saber do sistema nacional de saúde, de ajudar a criar as condições que promovem níveis de acesso elevados a educação e cultura, não devias poder ser candidato a dirigente de um pequeno aquário com um par de peixinhos dourados, quanto mais de um país com um arsenal nuclear. Tudo isto é tão óbvio que não devia sequer chegar a ser controverso.

E, contudo, estou a escrever estas linhas que não servem para nada sob o efeito das imagens, bastante surreais, da reunião de Putin com o seu conselho de segurança, em que ele pergunta a cada um dos elementos se querem dar voz a uma opinião dissonante quanto ao projecto de invadir a Ucrânia ou, como ele lhe chama, defender a Rússia e/ou a Ucrânia, embora nem nessa mentira ele seja particularmente sistemático. Enquanto o vídeo destas imagens passava, a amiga que estava sentada ao meu lado tapou instintivamente os olhos com as mãos na cena em que se vê Putin a pressionar o seu chefe do serviço de espionagem, Sergei Naryshkin, como se ele fosse um menino não muito inteligente com quatro anos de idade, para ele dizer se concorda que a Rússia apoie a independência de Lugansk e Donestsk. O chefe dos espiões parece relutante e genuinamente nervoso. Engana-se e diz que apoia a inclusão destes territórios na Rússia, é pressionado de volta por Putin, que lhe diz que não é isso que ele lhe está a perguntar.

Talvez haja qualquer coisa nos momentos de grande mediocridade moral que nos infantilize enquanto adultos, porque estamos a ser diminuídos e porque reconhecemos esse aviltamento. Estou em crer que qualquer coisa na expressão deste homem trai o facto de que ele reconhece a loucura abjecta deste momento. Putin, no entanto, sentado a grande distância do seu conselho de segurança, chamando-os um a um para declararem a sua aliança a esta ideia de merda e incrivelmente estúpida que é invadir um estado soberano a que boa parte da população da Rússia gosta de chamar de país irmão, com um presidente a duras penas democraticamente eleito e que afinal não é palhaço nenhum, deixou ele próprio de sequer tentar manter a aparência de chefe de estado vagamente democraticamente eleito. O que estamos a ver quando vemos esta cena é, então, o tipo de teatro que lembra um pouco as cenas dos juramentos de gangsters em filmes sobre a máfia, um pouco como notava Shaun Walker, cronista do The Guardian, na sua lúcida análise deste momento. E é uma cena decadente, exceptuando que há mais proximidade entre as figuras que aparecem naquele quadro de Thomas Couture, Os Romanos da Decadência, do que entre Putin e o seu conselho de segurança. Enquanto os romanos da decadência estão todos mais ou menos ao molho e com fé nos deuses, à espera de Alarico ou da próxima orgia, julgados moralmente por um par de filósofos que observam à distância, não se confundindo com os restantes, a distância a que Putin se coloca do seu conselho não é certamente a de um rei-filósofo e serve para lembrar quem é que segura os fios destas marionetas. É também a longa distância da irracionalidade e do oportunismo dos autocratas e dos bullies. É horrendo de ver, além de inestético. Significa que nada do que se vai passar a partir daqui obedecerá a grandes lógicas. Basta pensar que a Ucrânia é um país de quarenta milhões de pessoas e que, mesmo que esta invasão corra espetacularmente bem para Putin (no fundo não correrá bem para muito mais gente), é extremamente caro e difícil oprimir quarenta milhões de pessoas a longo prazo. Esta cena lembra então demasiado Calígula ou Nero e dá mesmo vontade de perguntar onde anda a guarda do pretório.  

            A minha amiga de mãos a tapar olhos que viram, tudo considerado, bastantes coisas, em diferentes continentes do mundo, ao longo de umas quantas décadas, lembrou-me, no entanto, a imagem de outra amiga, há uns anos, sentada numa fila central num pequeno teatro em Oxford, a tapar os olhos com as mãos no final de uma peça que tínhamos ido ver, levada a palco por um grupo de alunos gregos. A peça chamava-se No 10 de Junho e o dramaturgo era Yiorgos Iliopoulos. O texto da peça é baseado num evento histórico de que nunca tínhamos ouvido falar, nem eu nem a minha amiga que é grega, um daqueles eventos tão brutais e tão traumáticos, mas ao mesmo tempo tão remotos, que ficaram enterrados na memória de um século. Distomo era em 1944, e ainda é hoje em dia, uma pacata vila no sopé do monte Hélicon. Fica a duas horas de carro de Atenas e a meia hora de Delfos.  Em 1944, nas imediações da vila, uma coluna de soldados alemães foi atacada pela resistência grega, três soldados alemães foram mortos, num ataque que eles assumiram ter vindo da direcção daquele lugarejo. O que se seguiu foi de uma barbaridade absolutamente atroz. Os soldados alemães tomaram a direcção da vila, com um comandante de apenas vinte seis anos à cabeça, e, na noite de 10 de Junho, assassinaram brutalmente, numa espiral de loucura absoluta e absurda, cerca de 200 pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e anciãos. A disputa prolonga-se ainda hoje, em tribunais italianos, gregos e alemães, sobre se o ataque de facto terá partido da vila, a maior parte das evidências sugere que não, e mesmo entrar neste nível de discussão é já um erro repugnante. Assume que é aceitável ou que em algum mundo pode fazer sentido ou ser justificável que alguém armado até aos dentes entre gratuitamente em casa de outra pessoa e a surpreenda para a matar na sua quietude doméstica e indefesa.

O que me leva ao ponto, não particularmente relevante em face do nível de terror deste evento histórico, de explicar porque é que, apesar da audiência daquele teatro se encontrar bastante emocionada no final da peça, a peça me pareceu falhada, com qualquer coisa de uma chantagem emocional predatória e imatura, que diz qualquer coisa, porém, da relação da minha geração, educada no lado pacífico e confortável da Europa, com níveis de violência para os quais a maior parte de nós não tem – e eu, pelo menos, preferia continuar a não ter – uma empatia que permita entender intimamente, com uma clareza que não pode ser esteticizada ou adornada de forma nenhuma, o indizível nível de horror que deu origem à relativa estabilidade social da Europa em que crescemos. Neste sentido, o motivo por que acho que esta peça falha torna-se, então, bastante simples de explicar. Nenhuma das personagens que o dramaturgo coloca em cena chega a ser, em momento nenhum, mais do que uma função da sua própria morte, nunca chegam a habitar qualquer coisa que se pareça com uma individualidade plena, são apenas o que em convenções narratológicas se chama personagens-tipo: o padre da aldeia, que está ali para ser decapitado pelos nazis, ou a rapariga prestes a casar-se que está ali para ser violada por todo o regimento, ou a mulher grávida, cujo destino final, terminados os primeiros quinze minutos da peça, aguardamos com grande desconforto e terror. A instrumentalização que o texto faz das suas personagens acaba por repetir a instrumentalização que os nazis fizeram dos corpos capazes de sentir dor, e das emoções, capazes de serem completamente monopolizadas pelo horror, daquelas pessoas. Todos os textos literários, claro, usam as suas personagens, porque todas elas têm sempre de funcionar a um nível que é puramente retórico, o de passar a mensagem para que a arquitetura desse texto em particular converge, a agenda do escritor. O dramaturgo que escreveu esta peça, Yiorgos Iliopoulos, não é particularmente jovem, mas é aqui autor de um texto que me parece particularmente imaturo. E é-o em parte pela dificuldade de falar complexamente de uma coisa que é particularmente vital que um bom dramaturgo não perca de vista, o facto de que as vidas humanas, as históricas, as ficcionais, a do mais humilde figurante – se o texto não for uma sátira – não podem ser completamente instrumentalizadas pela sua função retórica no texto, tem de haver um equilíbrio qualquer, aquilo que no fundo é a poesia que se encontra nos textos, como existe de resto no mundo real, entre o que é geral acerca das nossas vidas, que é tão transparente nas convenções sociais nas quais vivemos, e o que é único, a forma como uma vida humana não contém mais nada que não exactamente essa vida, o que começa na singularidade de um rosto e continua a manifestar-se em todos os momentos na idiossincrasia de gestos, emoções, maneiras de falar, de responder, dos afectos que cultivamos, dos espaços que construímos e são os nossos e de alguma forma nos expressam, todas essas coisas que explicam a nossa singularidade, o que permite entender indirectamente porque é que o nosso amor pelas pessoas que amamos é singular, porque está vitalmente ligado a essas particularidades. A peça de Iliopoulos falha então, a meu ver, porque ele não consegue nunca mostrar isto. A nossa empatia é manipulada de uma maneira formulaica, que vai simplesmente acumulando o genérico sobre o previsível, de modo que aquele texto nunca se converte no exercício de empatia profunda e radical que um texto que se proponha a falar sobre este tipo de facto histórico tem de ser. Em vez disso, fiquei mesmo a coçar a cabeça e a perguntar-me uma coisa da qual normalmente não duvido: se podíamos ter continuado a escrever poesia depois de Auschwitz.  

Em discussão com a audiência no final da peça, o dramaturgo caiu naquele cliché imperdoável, que nos transporta automaticamente de volta a momentos medíocres em salas de aula de história de adolescências confortavelmente ocidentais, em que a Segunda Guerra Mundial se misturava com a nossa profunda e indiferente urgência mecânica de ouvir a campainha tocar, para voltarmos a ser livres de novo. O cliché era o de que ele tinha escrito aquela peça para a morte daquelas pessoas não ter sido em vão, o que a meu ver expôs outro problema que me pareceu estar patente naquele texto, o de se tratar um pouco de pornografia histórica, da do género que é produzida não para examinarmos com cuidado algo que nos deixa atónitos, mas para nos sentirmos satisfeitos com quão bonzinhos somos.

Digamos então que o massacre de Distomo, a 10 de Junho de 1944, foi completamente em vão e não serviu para mais nada do que tornar o mundo um buraco mais negro e deplorável do que ele precisa de ser e nisso é paradigmático da forma de doença colectiva que todas as guerras são. Temos de nos libertar desta crença de que a memória do terror é profilática e nos converte em testemunhas indirectas e entendidas do que esse terror significa, não converte. Essa pretensão é nociva e errada. A boa historiografia devia era dar-nos a dimensão daquilo que a nossa experiência não pode entender completamente e que se prende com a proporção subjectiva do horror que certos eventos infligem nas pessoas que os têm de viver, que não é, pelo menos ainda, parte da nossa experiência. É o tipo de coisa que explica porque é necessária a dose de empatia que Ésquilo no século V a.C. sentiu pelo exército invasor persa, contra o qual ele próprio tinha combatido, e cuja derrota é o tema de Os Persas. A ficção desse ponto de vista pode ser bem mais eficaz do que a historiografia. Pense-se num filme muito mal recebido à época em que estreou, que nem sequer é bem um filme, é quase uma colecção de apontamentos sobre algo que não pode ser completamente comunicado por um acto narrativo, Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini (1948), passado numa Berlim completamente arrasada pela guerra, que segue a luta pela sobrevivência, e sem redenção, de uma criança.

Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini, 1948

A morte precoce da mais insignificante das criaturas, por exemplo, lembrando um poema de Cesariny de uma extraordinária e estranha dignidade, um rato morto com que nos cruzamos num parque, não nos serve para nada. É apenas e só um invólucro de dor tremenda e sem sentido que não pode servir a ninguém para absolutamente porra nenhuma. A experiência disso é o que um poeta grego, Yiorgos Seferis, definiu, num poema escrito nesse mesmo ano de 1944 que talvez seja de reler com cuidado, pedindo uma expressão emprestada a um verso do Agamémnon de Ésquilo, como a memória da dor que perpetua a dor (μνησιπήμων πόνος). Toda a didática da memória é detestável se o seu propósito é mascarar-se de mecanismo de compensação desonesta por uma perda que deixa no seu lugar uma escuridão total que nunca nada, ninguém, poderá compensar. A morte precoce de pessoas, que é parte fundamental do negócio que uma guerra é, deixa apenas uma dor interminável e um vazio tremendo para quem terá de viver com essa perda. É tudo. E dá vontade de citar aqui um ensaio de Natália Ginzburg em As Pequenas Virtudes, escrito no pós-guerra, em que ela diz que não podemos mentir nem nos nossos livros nem nas coisas que fazemos, que isso era a única coisa decente que tinha saído da guerra que a sua geração tinha acabado de viver.

Margarita Liberaki

Em 1946, a então muito jovem romancista grega Margarita Liberaki publicou o seu segundo romance, Τα Ψάθινα Καπέλα, cujo título à letra significa Os chapéus de palha, mas que em inglês foi traduzido (por Karen van Dyck) como Three Summers e republicado em 2019 pela NYRB. O romance é sobre três irmãs que crescem numa casa num subúrbio de Atenas ao longo de três verões. É um romance sobre a passagem para a idade adulta, sobre a relação entre as irmãs e a mãe e a tia, sobre a ausência misteriosa de uma avó polaca, que desapareceu um dia sem deixar rasto ou dar explicação, sobre a curiosidade que nos faz amar estar vivos. Contra o fundo do que é o mundo encantado do verão, as colheitas crescem, constrói-se um observatório para olhar as estrelas, há longas caminhadas, surgem os primeiros amores, os amigos que chegam e partem, encontros e conversas intermináveis e há segredos que se revelam à medida que as irmãs passam de raparigas a mulheres. O centro da narrativa é a irmã mais nova, Katerina, uma personagem maravilhosa e louca, capaz de no final fazer algo verdadeiramente inesperado e surpreendente, que nos deixa de lágrimas nos olhos, e que muda mesmo o mundo, sugere outro modo de viver. O que é mais surpreendente para além desse gesto, que rejeita vitalmente perpetuar uma versão patriarcal do mundo, é que não há qualquer alusão ao período da guerra em que o romance foi escrito, exceptuando num ou noutro pequeno pormenor (há uma família inglesa que parte e regressa mais tarde) e numa longa sequência onírica que tem qualquer coisa das sequências oníricas desenhadas por Dalí que se podem ver num filme que estreou um ano antes de Three Summers ser publicado, Spellbound de Hitchcock. Tirando estes pormenores oblíquos, Margarita Liberaki exclui completamente esse evento histórico da sua narrativa, é como se ele não existisse e não tivesse acontecido. A carreira subsequente de Liberaki enquanto romancista acabaria por clarificar que este gesto é mais da ordem de uma preferência por arcos narrativos que são na sua totalidade metáforas fortes e eficazes sobre os contextos históricos em que ela escreveu do que o tipo de escapismo fácil que viria de uma fraca consciência política ou histórica. Margarita Liberaki é uma grande romancista. O seu romance sobre a guerra civil grega, O Outro Alexandre, é construído a partir de uma ideia mirabolante, sobre um pai que tem duas famílias, e dá aos filhos exactamente os mesmos nomes, até que os filhos supostamente legítimos descobrem a existência dos irmãos, num crescendo de paranoia que terá consequências para todos.

Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que em Os Chapéus de Palha se torna tão conspicuamente um comentário ao período histórico em que ele foi escrito. E é isto. Os Chapéus de Palha enumera cuidadosamente todas as coisas que uma guerra ameaça e destrói, tudo o que nela pode ser perdido e é vital para uma vida bem vivida, tudo o que é digno do nosso amor, do nosso cuidado e deve ser protegido a todo o custo, e na verdade acaba por sê-lo neste romance a partir da sua evocação e da sua nomeação em aparência perfeitamente natural mas no fundo insistente e sistemática. Nós, que felizmente não sabemos o que é o horror de uma guerra, conhecemos afinal essas coisas demasiado bem. É para as protegermos que a memória histórica devia servir, não para termos a pretensão de que o horror de uma guerra serve para outra coisa qualquer que não mutilar e destruir pessoas e que por isso o espetáculo horrendo de tanques a avançar sobre carros de civis, numa cidade até há apenas alguns dias pacífica, nos poderia dar jeito para alguma coisa em termos da nossa consciência histórica ou moral.

não fale dessa mulher perto de mim - as piores canções sobre lembranças




fibrinas sangue plaquetas 

tudo duro num tipo de âmbar em processo

de fossilização de uma dor a casca da 

ferida - e quase escrevo casa da ferida - não 

é a ferida tampouco é a memória da ferida 

é o corpo num gesto bruto e lento na busca pela 

distância da memória celular do tombo 

é também a casca da ferida um escudo - e

quase escrevo estupro - você não me conhece

você nunca me viu nunca assoprou

uma ferida minha no entanto temos

tanto em comum fibrinas sangue

plaquetas - e quase escrevo punhetas -

aos sete caí de de uma árvore muito

muito amável sobrevivi apesar do

pouco corpo que ficou grudado no

cimento - e quase escrevo ciumento





=//=




existe

portanto na fotografia 

não para todos

a lembrança do momento fotografado

e a lembrança dos momentos que antecederam

a imagem

raramente uma das

personagens toca o momento

posterior e é tão natural e difícil para uns quanto

o ponto do espaguete 

posteriormente ao momento fixado no tempo

está o grande samurai da questão

e ele traz enrolada na espada uma

enorme lista de endereços

e nomes





=//=





não me lembro exatamente 

quando me apaixonei por você 

são tantos paralelepípedos até aqui e em

tão poucos toques palavras interruptores

sei que naquela tarde você disse

algo sobre uma espécie de lagarto

que grita enquanto come arregalou os

olhos pra falar em tom bestial 

ENQUANTO COME 

arregalei os olhos atrás do 

cardápio do boteco não me sentia

pronta para demonstrar reflexão

pedimos sopa húngara e aqueles pãezinhos

estranhos do cozinheiro lucas 

tomava minha sangria como uma criança

e você ainda em dúvida sobre o que beber

roubou um trago do meu copo

as sopas chegaram com os pãezinhos 

estranhos do cozinheiro lucas 

simulamos um encontro acidental de 

dedos na cesta de pães e você cantou 

baixinho um pedaço de unchained melody

VOU TOMAR COCA-COLA saiu da

mesa foi até o balcão passou na cozinha

falou com lucas que acenou pra mim

foi tudo tão rápido pagamos a conta

acho que você arrotou adeus, lucas

você me deixou em casa e tenho a 

forte sensação de ainda estar atrás do

cardápio completamente absorta com

a história do lagarto 

adeus, lucas, adeus





=//=





um pequeno golem

pensar que é possível sim construir

alguém partindo das memórias incorruptíveis

de um objeto de estima 

a última xícara de um jogo de chá que

ganhei de uma amiga distante

você suas delicadas linhas

douradas suas flores azuis na barriga você

seu vazio empoeirado seu jeito de acolher você

folhas de hortelã suas falhas nas flores de trás

sua orelha enorme você num gancho

enferrujado pregado na figueira invertida

meu pulmão esquerdo


O teu amigo  

é difícil
não saber
como começar
é mais seguro
partir do princípio
de que isto
será olvidado
num caderno
que mais cedo ou mais tarde
vai parar ao lixo

recordas-te
quando o teu amigo te contava
como ele e uma rapariga
estavam apaixonados
como se procuravam constantemente
até que ele decidiu
não mais ir ter com ela
não que o amor
tivesse enfraquecido
mas ele ansiava
por sensações mais fortes
e mais forte
do que o amor
apenas
a privação do amor
e como mais tarde
se encontraram na rua
e o que ele viu
nos olhos dela
foi ódio
e também isso
não lhe desagradou
olvidaste-a?
ele riu-se
com o ridículo
da questão 

*

pelas margens
dos cadernos
de Matemática
e Química
floresciam cadáveres e quimeras

ele era
um artista
o teu amigo

e um ponto vermelho
batia no meio
no lugar
do coração

os quartos
vazios
e ainda assim
desarrumados
cresceram também
à margem
dos anos

 *

o teu amigo
na adolescência
fugiu de casa
decidira
ser artista
viveria aonde o acaso
o trouxesse
dedicar-se-ia inteiramente
à sua arte

sem concessões

foi uma aventura inolvidável
a viagem
e depois
o céu estrelado
como só é possível
numa noite de verão no campo
deitou-se ao ar livre
cheio de sonhos
o teu amigo
trouxe até consigo uma almofada
no dia seguinte
regressou a casa
a mãe estava ausente
nunca
ficou a saber
da aventura

eu sou
o veículo da arte
a condição
sine qua non
a arte é inevitável
esteja eu
onde estiver
posso muito bem
ser artista
a partir de casa
basta
não me acomodar

 *

o teu amigo
deixou a casa
anos mais tarde

contou-te
quando tomavam café
empacotar frangos
algures em Inglaterra
apanhar papoilas
nos arredores de Roterdão
tu não sabes
o que é a vida
meu rapaz
tu aqui
não viste nada
não sabes nada

tu não sabes
o que é a vida

tinha
os olhos
embaciados

ainda desenhas?
ele mostrou-te
o caderno

não arte verdadeira
ele tinha
de admitir
mas os alicerces
da verdadeira arte
exercícios preparatórios
apontamentos para
o que viria a seguir

esta é a mulher
com quem quase casei
apontando
para o desenho
de uma mulher
rabiscado
a esferográfica azul
tem olhos tão azuis
vês
vês
como são azuis?

odeia-me tanto
que engravidou
de outro homem 

*

máquinas
murmúrios
o som
que te liga ao mundo
já não é
o da respiração
um outro sopro
artificial
acho que ele está
a acordar
parece estar
a abrir os olhos
até nisso falhaste

fechas os olhos
fechas-te
em ti mesmo
nenhum outro lado para ir

mas o coração bate
bombeia
algo negro
a alastrar pelo teu corpo
a cobrir os membros
olvidaste-a?
foda-se
aquele
atrasado mental
o atrasado mental
sou eu
tentas reprimir
as ondas de bílis
que te cobrem os nervos
não tens força
para os enfrentar agora
tão implacáveis
a exigir explicações
com a sua pena humilhante
o seu
amor humilhante
até que não aguentas mais
e um soluço irrompe
depois as lágrimas

Banho de mar

mar bravo
cavalgam-me as ondas
no dorso
nos ombros
enquanto nado

como uma tábua
debruada a branco
no ribombar contínuo da rebentação

espuma-mar
a entrar-me no corpo
em golfadas
que alegremente me enterrariam
se as deixasse

espuma-mar
a aguardar o fraquejo
do músculo que se entregaria
pra encontrar na massa líquida
a última morada

sou puxada
empurrada
virada e revirada
num volteio
que não vê chão

sou de água
transparente, fluida, molhada
em movimento oceânico que vai e vem

só pararia no fundo
se aceitasse engolir
o que com sofreguidão
engolir-me tenta

 

...

 

muda o mar entretanto
e em duas braçadas
dali saio e me levanto
viva, mas domada.

Notas para compor um espaço

 

A mulheres que chegam à Casa do Lago

com seus automóveis e seus filhos

de um ano ou três ou quatro

                                               observam-me sonolentas

 

Elas são loiras e gostam de passear pelas galerias

onde apodrecem quadros feitos por rapazes decentes

 

Elas olham-me enquanto seus filhos decidem

se mijam nas calças ou não

 

Elas transmitem-me com os seus movimentos

a certeza de uma pequeno burguesia em ascensão:

                pernas que os tecnocratas usaram

                músculos que os tecnocratas usaram, mamilos

que os tecnocratas usaram

 

Nelas vejo as raparigas

que não há mais de um ou três anos

pensaram na vida como algo diferente

desta maçã de plástico facilmente previsível

 

Nelas ainda posso ver as raparigas

no primeiro semestre de Filosofia

aparecendo intempestivamente no teu quarto de então

                               e gritando amo-te amo-te

ou levando-te pelo pénis

em plena rua

perante o horror das mães

dos seus futuros maridos

                e lendo poemas delas mesmas

onde diziam não me venderei

meu amor não precisa de guarda-chuva

onde se mostravam ao mundo de uma maneira limpa

                meu amor é a chuva

 

Elas erguem os seus bebés e parece que os oferecem a ti

 

Elas pintam os lábios olhando-se

nos espelhos dos seus carros

mas na verdade vêm-te a ti que te afastas

 

Que te afastas

mais aborrecido que enojado

pensando nas raparigas que não há mais de um ou três

                anos

(ou duas semanas?)

navegaram pela 1ª vez numa cama contigo

descobrindo que um orgasmo é algo definitivamente Belo

e Explosivo

e sendo feridas por essa explosão

                               e por essa beleza

Elas metem as suas coisas no carro

sacos, programas, cartazes, crianças, estranheza

e vão buscar o marido ao escritório

 

E aceleram, aceleram, aceleram

mas a Terra move-se muito mais rápido do que elas

 

Roberto Bolaño