“a parte que me falta”

(título roubado ao livro de shel silverstein)

já nada posso adiantar
aos rumos que a vida tomou
ao atalho imprevisto do
autocarro das nove e meia
no carvalhido que me fez
atrasar a reunião das avenças
ou sobre o espanhol
que se cruzou comigo
num voo convenientemente
atrasado
quando agora era eu a
dever-te uma chamada
e já estaríamos tão perto do fim.
sobre deixar berlin
nunca farei as pazes
faltou-me o boletim de adesão
a esta coisa que bombeia
sangue cá dentro
faltaram-me forças
para arrumar a casa antes de sair
e por isso eu peço desculpa
eu peço todas as desculpas
que sobrarem
mesmo que não sejam reais
porque não havia mais cartas
a jogar porque atirei o dado
na valeta mais próxima
se calhar o autocarro
fez sempre o trajecto suposto
e o desvio foi meu
mas o seguro só cobre
a rota mais curta de casa
ao trabalho se calhar o espanhol
não existiu ou a existir ia
ser pai e por isso também ficou
pelo caminho se calhar não
peço desculpas se calhar
não cheguei na verdade
a habitar a tua cidade
e por isso foste tu também
mais um dos despojos que
por distracção
abandono no banco onde
me sentei por dez minutos
quem sabe tenha estado sempre
aqui mas lugar nenhum
se molda à minha presença
seria mais fácil dizer-te
que não és uma coisa
e que eu não abandono
as coisas que carrego
gostaria se perdoasses a franqueza
de dizer que sou
hospedeira da parte me falta
mas é o contrário
é ela que me carrega
e ocasionalmente perde-me
porque lhe saltei do bolso
enquanto tirava o passe mensal:
viagem cobrada
com o desconto social
de arrependimento.

MISERABLES

fui buscar-te à estação
quase sem saber se virias
chegaste com atraso
à hora prevista
à porta de minha casa
apontei para MISERABLES
escritos no lugar que só vêm  
os que costumam olhar para o céu
cozinhei o amor bafiento
há um ano na gaveta
podia ter-me desfeito antes dele
mas ensinaram-me desde cedo
que o prazo de validade
só depende da fome
ao pequeno-almoço
queimei o pão
distraída que estava
com o fantasma de ti
ainda pousado
na minha cama
mostrei-te o lugar
onde compro as flores
que morrem sempre
apesar de as regar  
ao domingo
religiosamente
trouxe até 
um pastel de nata a mais
antecipando a tua fome de retorno
ensinei-te a ler
as minhas novas estrias
das tatuagens
não quiseste saber
desapertei o teu cinto
emocionada por estares  
mais gordo
e ser tão assim
que te imaginava chegar
falei-te dos planos
quando for rica
quando for só, falei até 
do número de filhos
que planeio criar comigo
e como quem sabe de cor
o caminho
mas vira sempre
no sentido errado da rua
voltámos um ao outro: 
e sem urgência
sem regatear a inconveniência
concordámos com: 
a importância do pão escuro
a disparidade geográfica
o nunca virmos a dar
ao amor os quilómetros
que talvez ele
nos merecesse. 

atlas

parada nos semáforos
a minha mãe fumava
estacionada ao fundo das memórias
o último cigarro que a vi fumar
ainda me recordo
a outra mãe
estaria perto de morrer
e a minha
fumava
com a angst de quem foi
menos amada do que o merecido
mesmo assim carregava as queixas
fraldas contas o peso transladado
degrau a degrau
o olhar dela inolvidável
naquele espelho de retrovisor
(só uma matriarca saberia
enterrar outra) 
minha mãe-atlas
eu via
e não sabia ainda
de mitologia grega
mas um dia vais entender
ela repetia
e só quando anteontem
me sugaram pelo umbigo
qualquer dose de indizível
(dói sempre quando decides
tirar algo enroscado na carne) 
fazia um tornado em berlim
eu tinha saído na mesma à rua
e chorava agora para dentro
naquela maca improvisada
a christina dizia, o corpo tem memória
e é do umbigo que vem
a saudade do ventre
as árvores caíam lá fora
raízes monstras inteiras sugadas
do chão e a minha mãe
a dois mil e oitenta e quatro
cigarros fumados
naquele renault clio bordeaux
no ano de mil novecentos e noventa e oito
quando eu não sabia ainda
de mitologia ou que a mãe
deixaria de fumar pouco mais tarde
eu ainda não sabia
da vénus de milo da carla
desenhada a sangue menstrual ou da
mulher turca abraçando o filho asmático
na piscina pública de kreuzberg
mas podia adivinhar já 
alguns semáforos ininterruptos
a memória do umbigo, esta solidão hereditária: 
cromossoma X. 

apartamento

se perguntarem o que sobrou digo que
já levaram portas as janelas o escândalo
levaram até o cesto de pão, a inocência, o jarro de alfazemas secas  
no hall de entrada, ficaram as raízes  
deste apartamento sem vergonha  
et touts les temps qui reste: entra, é um convite; 
perdoa há muito não limparem
os pés ao entrar, talvez me tenha eu esquecido de pedir
ou começado a gostar desta coisa de ser suja, não sei, 
mas estas paredes (rabiscos adolescentes
antigamente sentados em manifestações mais políticas) 
são os turcos com lutas de cães em alexanderplatz
são pokhara, um hotel laranja decadente e um inglês
que não voltaria a ver, são tudo isso mais as peixeiras, estátuas de vénus
passeando na foz velha a celulite majestosamente texturada
e a areia-carvão naquela praia açoriana que mais tarde repudiaria; 
estas paredes são os amantes e todas as tragédias gregas,  
pratos marcados a giz desenhando rotas de colisão indiscreta, tudo isso
o que fui e o que não quero voltar a ser à custa de não poder. 
sobrará no fim a medida exacta do que divide
as paredes que aqui vês, solidamente entregues  
ao hábito de nem os ossos deixar no prato. entra, é um convite, 
mas à saída leva-te contigo: 
aqui só eu não sou de passagem.

on the road

hoje faziam na cidade mais de
quarenta graus, quarenta graus
de inferno neste porto onde chove
o ano inteiro, as ruas tóxicas
incêndios invisíveis a permanente  
memória de coisas antigas
queimadas à superfície dos olhos, 
tudo sem chama que se veja, 
o suar imóvel a tortura dos corpos
inchados transportes públicos a chiar
de raiva quebras de tensão depois de almoço
cigarros a meio pela escassez de oxigénio, tu que te foste
vão vinte e oito dias em combustão, 
estúpidos como adolescentes e borbulhas
que crescem sempre mais feios
no dia seguinte. estes dias  
em que por cá fiquei ou nem isso, fui ficando, 
abandonada à ideia de mim mesma abandonando-te, 
tu chegares agora, com aviso mas sem que contasse, 
fresco sólido tocado pelo sol
"i'm already on the road, hun" 
e aqui eu, pálida-menina-de-escritório, (como se faz  
para parecer feliz de repente?) 
tenho esta vergonha de avisar que o incêndio  
vem comendo as entranhas da cidade, do meu cheiro
a cansaço, disto de não saber como te chamar
e por isso falar de ti  
menos & menos, 
isto: 
não saber se abraço beijo se ambos
querer de ti tudo  
se ficares, não querer nada  
quando abalares, isto não era
para ser assim nós não íamos ser
esta coisa intangível este plástico  
a queimar devagar as paredes, 
a cinzentidão da manhã que hoje asfixia a cidade
um fogo demente que
ninguém vê ou extingue, terei de explicar melhor, 
eu só quero que volte a chover o ano inteiro, 
que se foda o sol a primavera essa coisa dos dias felizes, 
you say: "i'm already on the road, hun" 
but i? 
i didn't sign up for this.