Natureza (quase) morta

A senhora inglesa posa talvez
para um pintor imaginário que não  sabemos;  
ele   há-de fixar-lhe o corpo reclinado
o gesto de quem tenta  reter a última luz
da tarde.
No balcão raso  um limoeiro
botou raiz e frutos
e ela é  a personagem do livro que lê demoradamente,
sem cuidar de saber  de uma outra senhora 
que em Bruxelas negoceia, aos milhões,
a manutenção futura deste sol a baixo custo.

Às  vezes, muito  antes da leitura,
a senhora inglesa dedica  ao atento siamês
um falsete que só ele entende       
e  julga ser ainda escutada
por uns netos longínquos e  de olhos claros
que gritam e fazem caretas como os netos de toda a gente
mas  secretamente  lhe outorgaram já
o pequeno brexit familiar.

 (Cabanas de Tavira
2018)

Captura de Ecrã (9764).png

Carlos Carreiro - “Paisagem com natureza morta”, 1990.

Retrato Inacabado

Aquele que trazia o arco
a flor e um verso incendiado
erguia  o rosto contra  a sombra
o vento as vozes no abismo

Aquele que ganhou a seta
sobre   ruínas e  despojos
soube dos homens e da caça
o jeito de se tornar cruel

Aquele que tangia a corda
vibrátil,  junto ao coração,
mal pôde ouvir  o acorde cavo
levar-lhe as  pernas e  o sexo

Aquele que tombou na  margem
do rio antes profundo azul,
tão moço o dia  no seu halo
já baço o rosto devastado

Aquele que tingiu de rubro
a terra mal desperta ainda, 
a boca rente ao chão, o lodo
na sua carne quase morta