o sentido da vida

longas pontes altas como um aqueduto romano
não levam a lugar algum
mas uma locomotiva saltando de dentro
de um relógio
                 ou as franjas cristalinas mar-movendo
                 finalmente entre os dedos dos pés sim
 
não se passa um laço nos dias
florista num buquê de flores
que não pergunta se para um enterro ou uma garota
e aperta o papel colorido e o plástico
como a gravata a garganta
 
                        e quando sentirem nesse momento ideal
angústia a solidão de corpo de barro cozido
prestes a se partir e ir de volta ao molde
segurem os chapéus senhoras e senhores

As Aventuras dos Senhor Lourenço II Acto (Lourenço e a Síndrome de Travis)

(Cont.)

Lourenço acredita na contingência, mas nem sempre se mantém fiel a essa crença, por vezes lá vem um pouco de providência, física ou divina, baralhar o seu amor ao acidental. Dir-me-ão que são necessárias algumas qualidades para ser céptico em relação ao destino, e que Lourenço, pelo que expus até agora, não tem essa virtude. Enganam-se, ele vale mais do que parece, nele pulsa uma irreprimível força heróica, basta que um bom acaso a estimule para passar, numa espécie de salto de tigre, de decadente a herói.

E tudo isto se conjuga porque o eu de Lourenço é um pouco mitológico, feito de apropriações a personagens de ficção, filmes, séries televisivas e literatura, Lourenço não vê ou lê para compreender, quer somente enriquecer, creio que inconscientemente, o seu eu mitológico. De todas as personagens que incorporou, há duas que se destacam: Dexter Morgan, representada por Michael C. Hall para uma série televisiva da Showtime, exibida entre 2006 e 2013. Um justiceiro que compensa as limitações do sistema policial e judicial fazendo justiça pelas próprias mãos, um psicopata de Antigo Testamento, cruel mas sobre-moral, que colocou o castigo justo acima de todas as coisas. Na mesma linha, identifica-se, recompondo todavia parte da personagem, com o angelismo justiceiro de Travis Bickle (Robert DeNiro, Taxi Driver, 1976). Lourenço quer curar o mundo, matando uns e ajudando outros. E quer isto há bastante tempo, o terrorismo prosélito devia ter reparado nele, mas a estupidez abunda do lado dos barbudos. Por outro lado, não o imagino a estilhaçar o corpo em nome de Alá, foi só uma forma de comparação.

A linha que o orienta, biológica no essencial, mistura desejo e prazer, a força pulsional visa o prazer, mas os caminhos para a sua realização são complexos, tortuosos, perigosos por vezes. É por isso que não é fácil interpretar aquilo que vos vou contar, peço por isso atenção e desinibição estética.

Lourenço perde muitas vezes as referências simbólicas mais elementares, chega a fazer uma interpretação estritamente poética dos nomes das estações de metro. Isto alimenta alguns dos pesadelos que emergem frequentemente na sua cabeça, o principal decide-se, ainda que enigmaticamente, no problema da individuação, do absurdo do seu eu se distinguir de todos os outros. Talvez porque a individuação é uma conquista recente nos seres vivos, porque reflectir sobre ela ainda é mais tardio, talvez porque Lourenço sempre foi considerado o banana da turma, ou que quase todos os colegas lhe trocavam o nome, talvez devido a um mistério empedernido, Lourenço não tem a certeza de quem é, e isso contamina toda a fixidez da realidade, daí compreender-se porque sai, ou entra, frequentemente na estação de metro errada.

Por estas ou outras razões – há um enigma insondável em cada acontecimento – no dia 15 de Fevereiro de 2017 Lourenço mudou para sempre a sua vida. Acreditem, caros leitores, que o que vou relatar não foge totalmente à verdade. Lourenço entrou na estação de metro do Campo Pequeno, como era habitual quando ia trabalhar, e preparou-se para as próximas 8 estações, até Odivelas. Encontrou um lugar sentado, coisa rara àquela hora da manhã, mas presumiu que brevemente teria de o dar a um qualquer ser humano mais fraco que viesse a entrar na carruagem. Ainda assim tirou um pequeno livro da pasta (creio que se tratava de mais uma interpretação de O Discurso do Método, agora em tom conspirativo, defendendo que Descartes, afinal, não acreditava em Deus). Subitamente deu-se uma travagem brusca, no limite do suportável para a velha carruagem. Muitas pessoas caíram, como se se tratasse daquela brincadeira com peças de dominó. Lourenço teve sorte, estava sentado no sentido inverso da travagem, mas ainda assim teve de amparar a senhora que ficou sentada à sua frente, fê-lo a custo, era muito peso. Depois de parar apagaram-se as luzes, ouviram-se alguns gemidos, mas não havia pânico. Até que pelo altifalante foram informados de que se tratava de um problema em Entre Campos e que por enquanto não havia energia na linha. Isto provocou um certo alvoroço, e as palavras habituais contra os funcionários públicos, que “muito ganham e pouco fazem”. O tempo passou, não havia comunicações móveis, as lanternas alumiavam alguma coisa mas estava bastante escuro. Os protestos foram aumentando de tom e começou a circular a hipótese de irem a pé até ao Campo Pequeno, a estação não devia estar longe. “Queres morrer electrocutado?” Respondiam os mais sensatos. “E tu, ficar aqui para sempre?”. Retorquiam os mais impacientes. Mais tempo passou, Lourenço pensava no comprovativo que tinha de pedir a um empregado do metro para justificar a falta na escola. Fora isso, estava bem, totalmente desresponsabilizado, não podia ser acusado de nada.

Uma boa hora depois chegou mais uma informação pelo altifalante: “o problema ainda não foi resolvido, pedimos aos senhores passageiros que desçam das carruagens e caminhem pela linha em direcção à estação anterior, Campo Pequeno, são apenas cerca de 400 metros e a segurança está totalmente assegurada, a electricidade foi desligada e não há circulação nesta linha.” Uns protestaram, outros dispuseram-se logo a iniciar a pequena viagem. Uma voz de homem assertiva tentou organizar a caminhada dos passageiros da carruagem do Lourenço: “quem tem lanternas de telemóvel vai a frente, talvez uma atrás, para não perdermos ninguém. Vamos lá, são 400 metros, não custa nada!” E de facto não custou, poucos minutos depois começaram a ver luz ao fundo do túnel. Quando chegaram à estação viram muita gente, o que parecia estranho. Lourenço foi dos últimos a subir para a plataforma e dirigiu-se para a saída do lado da Praça de Touros, preocupado com a justificação, devia haver muita gente a querer fazer o mesmo que ele. Distraído, acabou por chocar com as costas de alguém, pediu desculpas, e levantou a cabeça à espera de ver a cara do ofendido virar-se, mas isso não aconteceu. Foi então que notou uns fios que saiam da mochila e iam directos à mão da pessoa. “Que raio!”, pensou Lourenço. Em cerca de dois segundos a sua consciência ou o seu cérebro (ainda não se sabe bem), imaginou poder tratar-se de um terrorista, a avaria do metro podia ter sido também outra coisa, aqueles fios não faziam sentido. Ia dar o alerta, podia passar uma vergonha épica, mas se fosse verdade estava talvez prestes a morrer, ele e mais umas centenas de pessoas.

O que fazer então? Puxar o fio? Não, pode explodir. Gritar? Ele carrega logo no botão. É puxar, só pode! E assim foi, arrancou os fios da mão do indivíduo, ele virou-se, correspondia ao cliché do barbudo, tinha os olhos bem abertos para mostrar a surpresa e o terror (o terrorista apanhado pelo terror), começou a correr de costas até tropeçar e cair. Foi então que Lourenço gritou: – Bombista, cuidado bombista! Começou tudo a correr, afastando-se de onde vinha a voz, os gritos faziam eco e por isso nas gravações de vídeo vistas mais tarde parecia uma grande sinfonia de histerismo. Poucos segundos depois, no meio da estação ficaram apenas Lourenço e o presumível bombista. Lourenço estava petrificado, não sabia o que fazer, nem ele nem sequer o seu cérebro e o seu corpo. Ali estavam os dois, como nos filmes de Manoel de Oliveira, parados, um de pé outro deitado, embora com a parte de cima das costas e a cabeça levantadas. Lourenço teve a sensação de estar fora do tempo, talvez até o bombista já tivesse accionado o mecanismo e isto fosse a última imagem que a sua memória tinha gravado. Mas depois viu dois matulões aproximarem-se por detrás do barbudo, atirarem-se para cima dele e esmurrarem-no durante alguns minutos. Lourenço ainda estava parado, mas lá consegui dizer que já chegava. Tiraram então a mochila com cuidado e arrastaram o barbudo para uma das saídas. A polícia chegou, à frente um espantalho cheio de artimanhas anti-bomba. Não era preciso, estava tudo resolvido.

(cont.)

Atentados de Bruxelas

I Começo por uma declaração: tenho cada vez mais dificuldades em distinguir o bem do mal, mas ainda não consigo estar para lá dessa velha dicotomia. Isto não provém, como em algumas pessoas que conheço, de uma sobre-racionalização, que a partir de uma grelha lógica cheia de bondade consegue mecanicamente acusar tudo o que pulse fora dela e santificar o que se encaixa nos seus pressupostos. Para mim, pensar o bem e o mal é só uma parte de uma hermenêutica bem mais geral, onde devem estar os horizontes de expectativa da época (um Zeitgeist feito de sensos comuns) e os acidentes extremos que sacodem a nossa consciência moral.

II Por isso, se houve alturas em que me felicitava por simultaneamente não ter nem senso comum nem corpo, hoje sou um irredutível céptico proposicional, isto é, acredito pouco nas belas e justas frases (a não ser esteticamente), tudo o que penso tem de passar o teste da realidade (das realidades, não creio numa verdade fixa exterior ao homem, plena de sentido definitivo). O teste das realidades é o meu “tribunal da razão”. Incorporei, assim, o senso comum nas minhas interpretações, é ele (ou eles) que constrói parte da realidade de que vos falo, é por ele, portanto, que a posso recuperar. 

III Os terroristas de 22 de Março em Bruxelas, essa “cidade livre, onde o humor, o desrespeito, uma maneira particular de não se levar a sério, contrasta com o que os bárbaros têm na cabeça: certezas de pacotilha, o ódio ao outro, a violência dos ‘puros’.”, dizia o director do Le Monde no dia seguinte aos atentados, vieram abanar o meu sentimento de segurança e de confiança, do primeiro decorre o segundo. Como continuar a acreditar que o ser humano, a totalidade desta espécie que justificou a bondade de uma multiplicação incontrolável com narrativas religiosas, prefere, de longe, o bem ao mal? As ideias que me assaltam não asseguram que eu seja outro, uma alteridade de bondade em relação à maldade dos terroristas. André Macedo, no editorial do Diário de Notícias de 23 de Março, associa o “proselitismo islâmico agressivo” com o “niilismo geracional que nos trouxe até aqui”. E isto faria com que houvesse, diz ainda, uma diferença profunda (antropológica?) entre “eles” e “nós”. Esta, mutatis mutandis, guilhotina de Hume não é clara para mim, às vezes pergunto-me se não habitará em cada um de nós um mini-terrorista à espera de crescer? Isto encaixa em algumas justificações políticas do fenómeno terrorista: incriminando uma péssima integração, o abandono das comunidades de imigrantes, a ostentação dominante do cristianismo sobre as outras religiões na Europa, a proletarização de segundo nível pela subsidiação elementar dessas populações, no fundo o modo de ser do capitalismo e da democracia cristã fabricaria terroristas. Acho esta argumentação, exemplificada há pouco tempo pelo nosso deputado Miguel Tiago, demasiado, política e moralmente, auto-culpabilizante para me interessar longamente. Se algo ficou mais claro para mim à medida que cumpro à risca o plano biológico de envelhecer, foi o de não confiar numa visão política que assenta, por vezes estrategicamente, em condições de interpretação e acção morais

IV Outro fracasso político é o da inacção (que não é exactamente o contrário da anterior, apenas uma versão mais moderada), baseado no “politicamente correcto”, conversa fiada que ao mesmo tempo que não age, siderada pelas ideias sagradas do interculturalismo e comunitarismo, mais inclinada a culpar o Ocidente (o quê nele? Não se sabe muito bem, prefere falar abundantemente de problemas de acolhimento, como se para integrar bastasse um lado) do que pensar e combater as causas reais (das realidades de que falei há pouco) do terrorismo. Essa posição conduz ao bartleyano “I would prefer not too”, e, mais grave, deixa o campo aberto ao populismo da extrema direita, que aproveita bem as pulsões xenófobas vingativas mais arcaicas (vingança contra vingança), inscritas aquém da fina capa cultural.

V Pensar o regresso do medo e da destruição malvada precisa, pois, do senso comum (sempre plural, repito-o). Conviver com os gestos, frases, sonhos... diários dos terroristas. O que os motiva deve ser de uma banalidade e obscurantismo realmente medianos. Nenhum deles leu tratados imparciais de geopolítica, nem Freud ou Nietzsche, são seres ordinários à espera de obter facilmente um sentido pleno. E, depois, parece-me que lhes falta a modéstia, esse dispositivo, psicológico e moral, que não deixa enlouquecer de desejo e espírito de vingança a grande maioria da população mundial. Mas talvez seja necessário também, devolvendo a famigerada geopolítica a outros, ir à fonte do pensamento europeu (alguns acusar-me-ão imediatamente de eurocentrismo) sobre o ressentimento que alimenta o espírito de vingança, e a vontade de destruição, isto é, a Freud e Nietzsche.

VI Não há tempo para dar conta aqui da complexidade do tema do ressentimento em Nietzsche. Mas em resumo possa dizer que incapaz de esquecer as afrontas (reais ou imaginárias) o homem do ressentimento deixa de ser capaz de agir em favor da vida, da sua e dos outros. Sendo igualmente inapto para seguir a via do “ideal ascético”, olhando para lá desta vida, esperando calmamente pelo Céu; diferentemente, o homem do ressentimento desenvolve em si um brutal espírito de vingança. Que Nietzsche colocou como motor da cultura cristã, valorização extrema do “castigo” como redenção.[1] A moral torna-se, assim, inquisitorial e o sentido da vida passa a estar na morte, isto é, na não-vida, porque se deseja estúpida e infantilmente a Vida. Os terroristas actuais não inovam muito, continuam a reproduzir a fábula de La Fontaine onde a raposa diz que as uvas estão demasiado verdes depois de perceber que não as pode atingir, é a sua impotência em viver nas vidas possíveis do Ocidente (múltiplas e pouco constringentes, cheias de liberdade e, comparadas ao resto do mundo – não a projecções utópicas, importantes porque trazem esperança, mas perigosas quando usadas como critério de comparação acrítico –, de felicidade; é a Europa que os refugiados desejam, não a China, a Rússia ou América Latina, por exemplo), uma impotência da realidade que apela à vingança, lenta mas consistentemente desenvolvida. No seguimento de Nietzsche, Max Scheler fala do auto-envenenamento psicológico que tende a deformar o sentido dos valores, sobressaindo o desejo de vingança, o ódio, a maldade, a inveja, a estultice... No seguimento de Nietzsche e Scheler, Ludwig Klages utiliza a expressão Lebensneid (desejo de vida) para designar a forma mais virulenta do ressentimento, um apetite de Vida que passa pela destruição da riqueza vital de outrem. Num livro sobre Nietzsche (Die psychologischen Errungenschaften Nietzsche, 1926), Klages refere que o sentimento de cansaço ou de esgotamento nietzscheanos não designam especialmente o corpo, mas a inaptidão para o prazer, uma apatia crescente, impotência de envolvimento afectivo, isto é, a exclusão da vida exuberante e feliz. Esta circunstância leva os ressentidos a desligarem-se dos outros e deles próprios, hipertrofiando o sentido da Verdade para se redimirem por estarem fora da vida, e por isso a querem destruir.

VII Outra forma de explicar parte de tudo isto, enquanto tentativa, ensaio (versuch, como dizem os alemãs), é revisitar Freud e os seus Para Além do Princípio do Prazer (Jenseits des Lustprinzips, 1920)e Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, “cultural” num sentido alargado, próximo do que Lévi-Strauss dirá ao contrapô-la a “natural”), procurando neles explicações para a vontade de destruição que contamina patologicamente os terroristas. Duas notas introdutórias: 1) na relação da psicanálise com a filosofia alemã próxima nos temas e conceitos, nomeadamente Kant, Schopenhauer e Nietzsche, aquela centra-se na especificidade humana, não no Homem enquanto animal, social ou metafísico; e o que a singulariza na sua humanidade é a maneira como se confronta, na vida e no pensamento, ao excesso constitutivo do prazer e do desprazer, a sua relação paradoxal. 2) Enquanto exercício clínico, a psicanálise não procura constituir uma qualquer visão do mundo (Weltanschauung), como dirá Freud em 1932 numa conferência sobre o tema: “Uma Weltanschauung é uma construção intelectual que resolve de maneira homogénea os problemas da nossa existência a partir de uma hipótese que determina tudo, onde, por conseguinte, nenhum problema fica por resolver e o que nos interessa encontra o lugar certo.” Apesar disso, talvez a psicanálise possa, diz ainda Freud, ligar-se a uma Weltanschauung científica e a psicologia individual advenha espontaneamente psicologia social, na medida em que o outro entra nas nossas vidas como cúmplice ou adversário. No entanto, Freud escreveu o Mal-Estar na Civilização em reacção à emergência do regime nazi, que, aliás, constituiu a sua Weltanschauung dando primazia ao natural sobre a cultural. O Mal-Estar é uma reflexão minuciosa que parte de conceitos analíticos para pensar o trágico da condição humana, reflectir sobre o mal-estar intrínseco a toda a civilização, sem o qual, paradoxalmente, não existiria humanidade. Algo que nem a psicanálise consegue resolver, o livro é também sobre os próprios limites desta ciência taumatúrgica, o mais que ela pode é transformar a miséria histérica em infelicidade banal. Uma das teses centrais é a de que para construir uma comunidade na qual se possa viver, o animal humano deve civilizar as suas pulsões (diga-se de passagem que a noção de “pulsão” passa de dois componentes em 1904, a “finalidade” e o “objecto”, para quatro em 1915, acrescentando-lhe o “ímpeto” e a “fonte”; mas no essencial Freud via na pulsão uma excitação de que não podemos fugir, cujo impulso é constante e constringente, seria, além disso, sempre de carácter sexual). A agressividade, traço indestrutível da natureza humana, ameaça constantemente a sociedade, como tinha mostrado em Totem e Tabou, a vida espiritual emerge no humano quando o homem disciplina e sublima a sua animalidade para a erigir em totem. A crueldade individual que desde sempre ameaçou o comunitário remonta ao mito da morte do pai, o pai de uma suposta horda primitiva: “É justamente o assento posto no imperativo ‘não matarás’ que nos dá a certeza que descendemos de uma linha infinitamente longa de assassinos que tinha no sangue o gosto do assassinato, como talvez ainda o tenhamos.”[2] Em Pulsão e Destino das Pulsões defende que o ódio é mais antigo que o amor, provindo da recusa do eu narcísico em dar o predomínio ao mundo exterior.[3] Mas as coisas não são tão simples e aquilo que motivou e motiva o movimento terrorista vive de contradições simultaneamente mais elementares e mais determinantes. Na verdade, a pulsão de morte, amplamente trabalhada por Freud em Para Além do Prazer, está estreitamente ligada ao princípio do prazer, e portanto às pulsões sexuais. A pulsão sexual, a própria essência de todo o movimento pulsional, contém Eros e Thanatos, a vontade de vida, de prazer, e a vontade de morte, de destruição. Diz Freud: antigamente, nos primórdios da humanidade, talvez antes da construção do primeiro totem, “A substância viva tinha ainda a morte fácil […] é verosímil que a substância vivente fosse assim facilmente recriada e morta, até ao dia em que as influências externas determinantes se transformaram, obrigando a substância que ainda sobrevivia a desviar-se cada vez mais do seu curso vital originário e a complicar cada vez mais esses mesmos desvios para atingir o seu objectivo: a morte.” Ora, o que os terroristas de Bruxelas, sósias de todos os outros, avatares da velhíssima humanidade que deseja matar o pai, que procrastina a construção do totem, quiseram foi, por caminhos pouco lineares, morrer. Passar ao inorgânico, num gesto que para eles representa a redenção pela Verdade. Claro que em torno disto houve motivações religiosas e sociais, mas creio que elas são secundárias. Se assim não fosse teriam atacado Igrejas ou Sinagogas e roubado bancos. Preferiram, pelo contrário, centros palpitantes de vida, de vida feliz, escolheram atacar Eros o mais directamente possível.

VIII O que fazer então? Pensar, continuar a pensar, para que não sejamos uma e outra vez surpreendidos por esta violência cega. Agir, continuar a agir, sobretudo de forma micro (as narrativas totais são perniciosas, já o sabemos), recompor alguns pequenos gestos do dia-a-dia, combater os preconceitos elementares que, de um lado e do outro, favorecem a incompreensão. Integrar melhor, claro. Mas também, porque isso não basta, controlar mais eficientemente as fronteiras exteriores à União (se há causas endógenas no jihadismo europeu, ele também se alimenta do caos do Médio Oriente), desenvolver as inteligências policias e judiciais, combater sem hesitação o tráfico de armas, construir uma estratégia comum europeia contra o terrorismo, reforçar o que de bom tem o nosso modelo social, evitar o desenvolvimento de bairros, vilas párias. E continuar democratas, isso é a Europa, único lugar onde, descontando algumas condições secundárias, os cidadãos se governam a si mesmos.

Mas acima de tudo é preciso que não deixemos banalizar a ideia de que o terrorismo veio para ficar. Não veio, não estamos perante um qualquer determinismo. Apesar disto, parece que estes atentados indignaram e entristeceram menos do que os de há pouco tempo em França, eu próprio demorei alguns dias a escrever sobre eles, enquanto nos anteriores reagi guiado por uma raiva discursiva bastante mais acusadora e inconformada, revoltada no sentido camusiano. Este sintoma de inevitabilidade deve, pois, ser combatido, não nos resignemos a que meia-dúzia de incivilizados (no sentido freudiano) definam parte importante do estilo de vida europeu. É por isso que devemos ser anti-terroristas.

 

 

[1] “Der Geist der Rache: meine Freunde, das war bisher der Menschen bestes Nachdenken; und wo Leid war, da sollte immer Strafe sein.” (Assim Falava Zaratustra II, “Von der Erlösung”).

[2] Considerações Actuais Sobre a Guerra e a Morte (Zeigemäßes über Krieg und Tod, 1915).

[3] Publicado em Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, 1910/17.

 

Pequenas coisas mais literais: A tetralogia napolitana de Elena Ferrante

Romance, épica, arte poética, bildungsroman, biografia ficcional, não sabemos quanto de autobiografia, um longo ensaio sobre uma cidade, ou um longo ensaio sobre infância, adolescência, idade adulta, velhice, uma épica no feminino, uma meditação sobre Itália contemporânea, sobre maternidade ou sobre as implicações de nascer mulher no séc. XX numa sociedade ocidental, ou um longo romance sobre a vida de uma comunidade à margem de uma sociedade, todos estes ângulos vão desaparecendo e ressurgindo à medida que avançamos pelos quatro volumes da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

É tentador para um classicista querer ler na crónica da amizade entre Lena e Lila o eco da amizade mítica de Aquiles e Pátroclo, esse lugar atravessado pelos tambores da guerra a partir de onde a história da literatura ocidental começou a desenrolar-se. Qualquer coisa neste livro sem dúvida joga com o paradigma de lendárias amizades literárias no masculino. A comparação com Homero não é irresponsável, sobretudo se quisermos acreditar no hype (tanto comercial quanto crítico) que acompanhou a recepção da obra de Ferrante, e porque, como com Homero, há ao mesmo tempo qualquer coisa de profundamente convencional acerca da Tetralogia, isto é, dependente das expectativas que nos são inspiradas por convenções supostas por géneros literários, e partindo dessas expectativas, à medida que atravessamos as linhas temáticas que separam os primeiros dois romances dos dois últimos (ou seja, quando passamos da crónica da juventude para a idade adulta), estas são estilhaçadas uma a uma (talvez por isso a maior parte dos leitores prefira os primeiros dois romances), o que em parte explica o lado profundamente inovador da Tetralogia. A escrita de Ferrante tem sido apelidada de radical. Talvez o que este rótulo descreva seja o estilo de crónica precisa e, para usar outro termo gasto à falta de melhor, visceral dos romances, que não deixa nada intacto. Ou talvez pudéssemos aqui citar a escritora polaca Olga Tokarczuk, que nos faz pensar no método criativo de Ferrante:

Anyone who has ever tried to write a novel knows what an arduous task it is, undoubtedly one of the worst ways of occupying oneself. You have to remain within yourself all the time, in solitary confinement. It’s a controlled psychosis, an obsessive paranoia manacled to work, completely lacking in the feather pens and bustles and Venetian masks we would ordinarily associate with it, clothed instead in a butcher’s apron and rubber boots, eviscerating knife in hand.[1]

Mas podemos começar por pequenas coisas mais literais. Se estes romances são tão populares, o que é a sua popularidade nos diz sobre nós próprios, crescente exército global de leitores insones, que se perguntam entre si és Lena ou Lila, Nino ou Enzo? Chavões críticos que sem dúvida podem ser aplicados à Tetralogia Napolitana: uma das obras mais interessantes e controversas do nosso tempo. Os quatro romances foram agora publicados em Portugal na sua totalidade pela mão da sempre atenta Relógio d’Água. Talvez porque seja a Relógio d’Água uma das editoras em Portugal que tomou para si a missão de saciar as insaciáveis elites cultivadas da pátria, pequeno pormenor que infelizmente escapa ao olho de falcão de António Guerreiro nesta crónica[2] (para quem publicam editoras como a Relógio d’Água se não para essa sedenta elite de miríades, segundo AG tão extensa quanto insaciável, mas que em outras crónicas suas tende a ser apresentada como insuficiente), a editora optou por não publicar os livros com as mesmas capas kitsch com que foram publicados no original e no mundo anglo-saxónico. Com esta opção algo se perde. De alguma forma, a totalidade da obra de Ferrante pode ser lida como uma paródia negra daquele tipo de narrativas que habitam a escala entre o conto de fadas e My Fair Lady e que foram, ao longo de gerações, como a precisão impiedosa das reguadas dos professores fascistas deste planeta, reforçando estereótipos de género. Mas talvez porque a elite nacional se “dá ao respeito” (expressão que alude talvez a uma certa falta de imaginação e sentido de humor), pelo menos no que a capas se refere, belas fotografias a preto e branco animam a edição nacional da Tetralogia Napolitana.

As capas originais são de alguma forma a marca indelével do primeiro jogo da autora com as nossas expectativas. Nas palavras de Antonella Di Marzio são também outra coisa: “Whenever I see those tacky covers I can immediately identify the world that has been at the origin of the novels. It can't be denied, and such an operation is denying this authenticity. As if it weren't possible that such a world has generated literature and that we need some tweaking to make it acceptable, appealing.” É verdade, a primeira coisa que os romances de Elena Ferrante nos dizem sobre nós enquanto seus leitores é que temos um interesse em narrativas sobre injustiça social, tanto quanto sobre sonhos, criatividade, inteligências míticas como as de demiurgos, ao género de Sócrates (o outro, não esse). Que gostamos de ler romances que dramatizam a psicologia da amizade, do amor, da violência, do sexo. 

A Tetralogia existe no centro de um cânone e o seu trabalho é provocá-lo, arrastá-lo para outros caminhos, actualizá-lo. Mutatis mutandis, com Homero, Elena Ferrante partilha uma ideia de literatura enquanto empresa anónima, enquanto herdeira de uma inteligência colectiva: [t]here is no work of literature that is not the fruit of tradition, of many skills, of a sort of collective intelligence. We wrongfully diminish this collective intelligence when we insist on there being a single protagonist behind every work of art.[3]

Mais vale perguntar: como é que estas personagens passam tão rapidamente a fazer parte da nossa vida? Porque nos interessam tanto? Se há um elo com a tradição, como podem personagens anteriores, narrativas anteriores, acrescentar algo à nossa experiência de ler a Tetralogia? Todos os livros que lemos anteriormente viajam connosco até ao livro seguinte (é também por isso que devemos a nós próprios imaginarmo-nos como poema contínuo). E os livros mantêm os seus diálogos com a tradição em que são gerados. Como Aquiles na Ilíada em relação a Pátroclo, Lena tenta articular o enredo da sua própria vida a partir da sua relação com Lila. O mesmo sucede com as nossas vidas, esse é grande parte do apelo dos romances. O enredo da vida de Lena está costurado com o de Lila, a amiga genial da infância, e a vontade de Lila é de alguma forma a força autoral da vida de Lena (de vez em quando a ordem inverte-se). Um dos aspectos mais importantes acerca deste conjunto de livros é recordar-nos que o amor não é linear, pacífico, agradável. É um desafio constante, cheio de uma ambivalência que requer de nós uma certa cegueira (uma habilidade para perdoar e seguir em frente) para se manter vivo.

Em aparência sempre um passo à frente, Lila vai tentando moldar o curso da vida de Lena, como uma espécie de narrador obscuro, relegado para segundo plano. Na sua totalidade, o apelo destes romances talvez assente nisto: a opção por uma forma biográfica, cronologicamente organizada da infância à velhice, expõe afinal a operação de ambivalência por que certos objectos de arte se intrometem nas nossas vidas e se tornam parte da nossa história: eles são ao mesmo tempo perfeitamente particulares (referem-se a momentos muito específicos das vidas de outros) e universais (os outros afinal são como nós). Ao falar dos privilégios de ser um leitor, o compatriota de Elena Ferrante, Umberto Eco, disse:

An illiterate person who dies, let us say at my age, has lived one life, whereas I have lived the lives of Napoleon, Caesar, d’Artagnan. So I always encourage young people to read books, because it’s an ideal way to develop a great memory and a ravenous multiple personality. And then at the end of your life you have lived countless lives, which is a fabulous privilege.[4]

Os romances napolitanos são a história de uma amizade ao mesmo tempo solar e opressiva entre duas mulheres. Para voltar à minha analogia inicial, como Aquiles, Lila não existe exactamente numa escala humana, e ambos partilham uma clareza de visão que não lhes permite deixar de distinguir em quem os rodeia a mediocridade e a falta de coragem sobretudo daqueles que têm pretensões a ter sobre eles poder. O poder do dinheiro, da autoridade, da corrupção, do sexo – aspectos obcessivamente examinados nos romances. Este exame propõe-nos a seguinte realidade: que crescemos com certos papéis, supostos por outros mesmo antes de podermos escolher que tipo de história será a das nossas vidas, a bagagem que carregamos connosco desde a infância e que se apropria de nós mesmo antes de entendermos quem somos, quem são os outros, elementos que servem para reforçar convenções sociais, como o sexo com que nascemos, o bairro em que crescemos, quem são os nossos pais, os nossos amigos de infância. Ao imaginar Lila, Ferrante tem de se ter perguntado o que aconteceria se alguém escrevesse um romance que tivesse no centro uma personagem que estivesse disposta a ser imune a todas essas convenções? Como é que ela seria? Como seria a sua vida? E quem poderia narrar a sua história? E, pode-se perguntar, podemos ler o final do romance como um comentário acerca desta ideia? Poderá a autora ter hesitado e o final pode ser interpretado como a aplicação de uma moral punitiva sobre uma das personagens no centro da acção? Ler é um acto ético, político, e enquanto leitores devemos a nós próprios este tipo de perguntas. São estas perguntas que permitem que os romances se tornem explorações da nossa personalidade, dos limites do nosso universo moral, mas, mais do que isso, da nossa empatia. E para que serve a nossa empatia de leitores? Como Nicholas Dames nota num ensaio recentemente publicado na The Atlantic:

...a deficit in empathy imperils a democratic culture, and that novels keep us entwined and engaged when we might otherwise drift apart in shrill and narcissistic self-certainty...[5]

Os primeiros dois volumes da Tetralogia são particularmente eficazes a explorar a ausência da possibilidade de uma origem em branco para a história das nossas vidas (nenhum homem, ou mulher, nasce, afinal, livre e igual aos outros), eles surgem carregados ao mesmo tempo do encanto e do terror da infância, e acidentalmente expõem a hipocrisia de algumas narrativas que nos são conferidas nessa idade e que acidentalmente servem para graduar a nossa posição numa certa escala política e social (o inverosímil super-intelecto de Lila, excluída da escola mesmo antes de entrar no liceu, é também uma provocação neste sentido). Narrativas essas que, deu-se o caso, em Itália em meados do século passado foram exacerbadas e postas em causa por uma série de eventos políticos e culturais que formam o contexto histórico do romance (o fascismo, os movimentos políticos e culturais que floresceram a partir da década de 60, as Brigadas Vermelhas), e que reforçam a pertinência das personagens de Ferrante hoje: como nós, gente para um tempo instável.

Num conjunto de romances que avança por sucessivas intermitências de esperança e crise, o ponto de tensão inicial ocorre entre a imaginação de Elena e Lila e a realidade que lhes é imposta, à qual é suposto ambas submeterem-se. Se os romances se leem como a história da formação de um escritor, então eles surgem da consciência de um real em falência constante, cuja vantagem é este traduzir-se no adquirir de uma lenta capacidade de estranhar coisas aparentemente banais, como o processo de degradação sofrido pelos corpos das mulheres do bairro, a percepção de que elas se parecem com os homens com quem se casaram, ou a violência de que os rapazes constantemente se socorrem para se afirmarem sob pena de serem vistos como fracos. Num dos capítulos de A Amiga Genial, as amigas discutem Dido e Eneias, e mais tarde, um ensaio de Lena sobre Vergílio adapta uma observação de Lila que Lena involutariamente associa à decadência bairro, que onde não há amor não só a vida das pessoas é estéril mas também a das cidades. É difícil imaginar um comentário político e social mais pertinente para os dias de hoje.

Como é que o amor se transforma em poder?, é uma pergunta colocada por Anne Carson num dos mais belos livros de poemas alguma vez publicados sobre um divórcio, The Beauty of the Husband, mas talvez os romances de Ferrante arrastem esta pergunta para o nível seguinte, como é que o amor sobrevive ao poder?   

Lila intui a beleza das coisas sem poder deixar de se diluir nelas. Na amizade, como em tudo o resto, para Lila não existem meias medidas. Os episódios de sinestesia de que ela sofre talvez sejam sobretudo uma expressão desta ideia. O percurso de Lena, moderada e agradável em quase tudo, ainda que na maior parte do tempo apenas em aparência, paradoxalmente, herda alguma coisa desta ética. Num diálogo com Pietro, ele diz-lhe que ela é meio feminista, meio comunista, meio estudante de Foucault, apenas com ele meias medidas nunca foram usadas. O grande desafio destes romances tem a ver com o modo como cada leitor se relaciona com o percurso emocional destas personagens. O grande desafio do percurso emocional de Lila e Lena é manterem o controlo sobre esse percurso. Talvez a ideia de que nos compete recusar meias medidas no amor, na amizade, nas nossas diversas trocas com outros, na nossa arte (o que quer que ela seja, pode ser escrever ou informática), possa ser entendido como o grande contexto ético da obra, e nesse sentido, a popularidade destes romances assenta num desafio a que as personagens estão constantemente expostas. Entender o que lhes acontece e porquê importa-nos e é-nos útil: este é também o nosso desafio todos os dias.

As alusões ao mundo antigo abundam. Algumas estão listadas na recensão de Aaron Bady para o LitHub[6]: Lena chama-se Elena Greco, licencia-se em clássicas depois de vencer uma bolsa para estudar na Normale de Pisa, que é o que lhe permite abandonar o bairro em Nápoles, escreve uma tese sobre Vergílio, a um dado momento casa-se com um classicista. Um dos diálogos mais importantes para a caracterização de Lena e Lila é a tal conversa sobre Dido e Eneias, há qualquer coisa neste diálogo que é reminiscente do diálogo entre Míchkin e Rogójin nas páginas iniciais de O Idiota, é um daqueles casos em que duas personagens não podem evitar expor-se mutuamente e isto de alguma forma prepara o palco para o que vai suceder em seguida. E, de alguma forma, com as personagens de Dostoievsky as personagens de Ferrante têm em comum uma certa noção de um peso metafísico que precede as suas acções, que as marca de longe para o que vai acontecer em seguida, as suas acções tornam-se uma parte decisiva da sua caracterização. Talvez poucas criações depois de Dostoievsky sejam tão Dostoievskianas como Lila. E ao mesmo tempo há em Lila e Lena qualquer coisa de profundamente reminiscente das mulheres que habitam os dramas de Eurípides. Pensamos em figuras como Medeia, Hécuba, Fedra, que percorrem a linha divisória entre a civilidade e a loucura, entre as convenções morais das sociedades em que habitam e a total falta de escolha que expõe a falência (e muitas vezes a perversidade) dessas convenções e que acaba por forçá-las à vingança. Nas suas peças sobre mulheres é como se Eurípides se perguntasse, as nossas sociedades foram pensadas para proteger um certo número de privilégios, o que acontece àqueles que se tornam vítimas desses privilégios? Não só quando Elena Ferrante fala do seu interesse em narrar a diferença do seu sexo, mas mais do que isso num certo pendor neo-realista dos romances (o bairro, o poder dos camorristas, a ascensão social de Lena, etc.), pode a autora ter tido esta mesma pergunta em mente?

Lila pertence àquele grupo de personagens literária que nunca projectam uma imagem definitiva de si próprias, a sua existência é da ordem da interrogação, não da resposta, as suas acções não correspondem tanto a factos como a actos demiúrgicos. A sua personalidade é capturada na descrição de Lena sempre no meio do drama, no momento em que se manifesta, Lila nunca se explica a si própria, e tudo o resto é o resultado da especulação de Lena. Juntas, Lena e Lila, como Pátroclo e Aquiles, são duas versões do mesmo tipo de inteligência humana e são tão inextricáveis que, inevitavelmente, em alguns momentos, desconfiamos que estamos perante duas versões da mesma personagem.

E se aquilo que na nossa inteligência é produto de uma inteligência colectiva não deve ser diminuído em favor do enaltecimento de um protagonismo excessivo, se o que nos ajuda a tornarmo-nos no que vamos sendo depende de uma exposição e de uma atenção constantes às ideias, interesses, paixões e histórias de outros, então a Tetralogia Napolitana, a história da formação de uma escritora (e neste aspecto os dois primeiros volumes habitam o mesmo espectro do nosso imaginário ocupado pela Autobiografia de Thomas Bernhard), o conjunto da obra de alguma forma desloca e expande o conceito de autor. Ligadas desde a infância, Lila parece em certos momentos ser a autora de Lena, a inventora do seu percurso, tal como de tantos outros objectos mais ou menos mirabolantes que lhe permitem assegurar alguma prosperidade, objectos nunca menos do que miticamente emocionais. E porque as mesmas versões da inteligência humana se reinventam com o progredir das tradições a que pertencem, neste aspecto, o herói de Homero com que Lila se parece é Ulisses, que na Odisseia a espaços deixa para trás um número de objectos construídos pelas suas próprias mãos que de alguma forma permitem a sobrevivência e, em alguns momentos, a opulência. Se Lila é ambivalente pela rejeição de uma ideia fixa de si própria, isto é de alguma forma um desafio à ideia de uma personalidade que encontra a sua melhor expressão na possibilidade de um destino narrativo linear, isto é, num destino que seja consequência dessa personalidade. Este é um dos aspectos mais fantásticos da Tetralogia. Lila, como Aquiles, é esta força cega no centro do romance, mas esta força falha em manter o controlo dos acontecimentos, falha em manter a ordem embora pareça ter o poder para a manter, convida o caos, no fim falha em controlar-se a si própria. De vez em quando cruzamo-nos com estas personagens, chamamos-lhes Aquiles ou Clitemnestra ou Mefistófeles, e é com um certo desconforto que depois voltamos à nossa rotina diária, mas somos um pouco menos banais depois desses encontros. A possibilidade de uma relação de causa e efeito entre personalidade e acção explica porque é que os romances são uma longa paródia das narrativas que habitam a nossa ideia do que são contos de fadas e a sua função na nossa cultura. Explicam também o apelo de Lila, uma heroína em falência constante, cujo último acto, o gesto que abre o romance, o seu desaparecimento, consiste talvez numa última tentativa de preservar a sua própria inteligência. E, no entanto, tanto o desaparecimento como as invenções de Lila têm qualquer coisa de dionisíaco, partilham da mesma natureza que uma ideia do cavalo de Tróia enquanto triunfo da inteligência: carregam ao mesmo tempo a potencialidade da vitória, do fim das tribulações, e da aniquilação total. O romance não nos deixa entender se este lado perverso da inteligência de Lila é intencional, e eis outro elo com Ulisses.

Neste aspecto, o fio da tradição que a Tetralogia alonga é o da nossa atracção por formas de inteligência herméticas, que de alguma forma são animadas de um potencial inesgotável que rapidamente se pode tornar numa força para a destruição. Entendido enquanto romance feminista, um rótulo de resto nem confirmado nem rejeitado por Ferrante, talvez seja este o contributo do romance nesse aspecto: duas mulheres que crescem num bairro pobre, dominado pela corrupção e pela violência da Camorra, e que entendem cedo, e em certo sentido quase inconscientemente, que a única solução é inventarem-se a si próprias apesar das restrições que lhes são impostas. A Tetralogia de certo modo diz-nos, nada é tão belo como a força gasta em construir as nossas histórias.

Uma última nota. O que tem sido apelidado da extrema violência dos romances, de resto, a meu ver, mal lida por críticos de outro modo competentes[7] porque confundida com uma estratégia fácil para agradar ao leitor, um rótulo descartado por Ferrante (“Literature that indulges the tastes of the reader is a degraded literature. My goal is to disappoint the usual expectations and inspire new ones.”[8]), cuja função é traduzir a violência constante deste mundo, é um sintoma de porque é que estes romances de alguma forma são objectos tão pouco convencionais. Como notou Megan O’Rourke:

Ferrante’s project is bold: her books chronicle the inner conflicts of intelligent women (professors, novelists) who, having made their way to Florence or Rome and to good jobs, find themselves confronting memories of the crude violence and misogyny of their youth. Shaken by a surprising event, they lose their grip on reality, lapse into a Neapolitan dialect full of obscenities, and are drawn into hallucinatory quests to heal old emotional injuries. The books’ taglines might be “No self can be left behind”: in Ferrante’s world, no character can escape her past.[9]

É verdade, há uma violência comum a todos os romances de Ferrante, que podemos correr o risco de querer rotular de gratuita. Mas também é verdade que existe um certo nível de violência com que convivemos todos os dias (que os romances de Ferrante são eficazes em sintonizar, até o seu ruído se tornar insuportável e ela ter de ser enfrentada). Podemos escolher fechar os olhos, deixá-la justamente aí, no passado, tentar domesticá-la, ou mesmo reparti-la pelos dias para que nunca nos falte. Mas talvez estes romances nos causem tanto desconforto justamente por aí, porque nos lembram de uma necessidade ética de que falava Maya Angelou[10], ao afirmar que a única virtude de que realmente precisamos é a da coragem, porque esta garantirá que seremos constantes em todas as outras. Esta ideia é outra chave possível para ler estes romances. Talvez seja particularmente pertinente para ler o percurso de Nino no seu envolvimento com as duas personagens principais. Mas podemos perguntar-nos, há alguma virtude em Nino?

Violência psicológica, física, que envolve homens, mulheres e crianças, e que traz à superfície o desafio que é mantermo-nos humanos e descobrirmo-nos ou reencontrarmo-nos a nós próprios, depois de nos perdemos, decepcionarmos, sermos destruídos pelas nossas expectativas, destruirmo-las pela nossa própria vontade. Será que alguma vez nos reencontramos? Será isso o que acontece? Depois dos acontecimentos do segundo volume, Lila alguma vez se reencontra? Este é um dos grandes desafios de estar vivo e o grande desafio no centro da Tetralogia. Alguns dirão, é também a grande alegria de embarcar na aventura de ler um romance que ronda a extensão do Guerra e Paz.


[1] http://www.asymptotejournal.com/fiction/olga-tokarczuk-flights/

[2] http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-excedentarios-da-cultura-1724781

[3] http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante

[4] http://www.theparisreview.org/interviews/5856/the-art-of-fiction-no-197-umberto-eco

[5] http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2016/04/the-new-fiction-of-solitude/471474/

[6] http://lithub.com/elena-ferrante-master-of-the-epic-anti-epic/

[7] Tim Parks, http://www.nybooks.com/daily/2015/11/10/how-could-you-like-that-book/

[8] Elena Ferrante, Paris Review, Art of Fiction No. 228 (http://www.theparisreview.org/interviews/6370/art-of-fiction-no-228-elena-ferrante).

[9] http://www.theguardian.com/books/2014/oct/31/elena-ferrante-literary-sensation-nobody-knows

[10] Entrevista a Harriett Gilbert: http://www.bbc.co.uk/programmes/p02023bg