a lição

o professor está num salário de sessenta mil
e de vez em quando convida a poeta
a vir falar sobre poemas nas suas aulas de poética
o professor frequentemente comenta
que não entende porque é que a poeta
que ele sabe que está num salário de cerca de vinte mil
num emprego que não é a tempo inteiro
não se tenta tornar uma professora também 

a poeta normalmente responde-lhe
que não sente que tenha
grande coisa a ensinar a ninguém
e acrescenta talvez desnecessariamente
que não ter um certo tipo de salário
é o preço que ela escolheu pagar
por uma considerável liberdade 

a poeta de vez em quando repara
que não se sente
particularmente confortável
nesta amizade
mas também
não particularmente desconfortável 

o professor acha a poeta exótica
ela veio de um país estrangeiro
fala a língua dele com um sotaque
que ele a princípio teve dificuldade em classificar
e pensou até de início que ela viesse
de um destes países que estão no centro da europa
certamente não um daqueles lugares mais caóticos
um pouco abaixo da linha dos alpes ou dos pirinéus
a poeta achou que este era
mais um comentário aborrecido sobre sotaques
na vida de uma pessoa
que escolhera viver como poeta
num país estrangeiro qualquer
por razões que não lhe importava
explicar a ninguém 

a poeta não costumava pensar muito
em que tipo de relação tinha com o professor
até que um dia ele lhe perguntou
com que palavra exactamente
se poderia descrever essa relação
a poeta pensou que naquela manhã
um dos seus gatos
uma criatura de outro jeito
doce, calma e brincalhona
trouxera para casa um rato
que teve de se fazer de morto
com um grande caos na cozinha
para poder escapar com vida 

a poeta pensou em como
prendido o gato
para poder abrir a porta
viu o alívio tenso no corpo do rato
assim que ele pôde dardejar
através das vedações dos jardins
a uma velocidade luminosa  

a poeta cujo jeito para o negócio
tinha sobretudo a ver
com errância e melancolia
lembrou-se ainda
de um poema de joão miguel fernandes jorge
sobre comer a última lata de chouriço enlatado no texas
a poeta fez um ar confuso
e brindou o professor com um gélido silêncio
que ela esperou que fosse suficiente
para ele perceber  

o professor puxou a gola do casaco para cima
e endireitou os ombros
a poeta pensou neste gesto em termos
de expressões vagamente sexistas
não raro aplicadas a treinadores de futebol
no seu pequeno país um pouco abaixo
da linha dos pirinéus 

a poeta passou parte da adolescência em nápoles
e concede que às vezes pensa em certas situações
com uma violência desnecessária
pensa no mundo em termos
de enzo scanno e michele solara
a poeta entende racionalmente
que agora vive num mundo
mais civilizado do que esse
exceptuando quando não  

noutro dia a meio de uma aula
o professor sentiu necessidade de apontar
que discordava do uso que a poeta
fazia da palavra errático
no quinto verso da segunda estrofe
do terceiro poema do seu mais recente livro  

o professor notou que era uma palavra
de conotações desnecessariamente negativas
a poeta queria ter respondido
que de vez em quando era preciso aturar
muitas coisas com conotações
desnecessariamente negativas
para chegar a um pouco de verdade e beleza
mas entendeu que esta resposta
seria talvez moralista 

e comentou apenas
que era exactamente
por ser uma palavra negativa
que a havia escolhido 

o professor declarou que
there was no need to get emotional now
over such a small thing
a poeta reflectiu
já quase no fim da sua paciência
que o professor ganhava a vida
a dizer a jovens adultos
que as palavras que escolhemos contavam
mas concedeu que este talvez
fosse um pensamento
um pouco passivo-agressivo 

no elevador a descerem em direcção ao rés-do-chão
o professor aproximou-se demasiado da poeta
até o seu ombro se colar ao ombro dela
a mão dele pousada sobre a sua pasta
a poeta tornou a pensar na palavra errático
o professor olhou a poeta nos olhos
e comentou que as suas pupilas estavam dilatadas
posicionando-se diante dela
ele afastou uma madeixa de cabelo
de cima dos olhos dela
ela colou uma mão à parede e não se mexeu
lembrando-se da sua juventude napolitana
ocorreu-lhe que estavam
ambos no ângulo certo
para que apenas uma de duas coisas acontecesse
e concluiu com alívio
que seria uma joelhada fácil de desferir 

um par de horas mais tarde o professor
enviou à poeta uma elaborada mensagem
que a poeta descreveria
embora concedendo
que não muito positivamente
como poesia erótica de mau gosto
sobre gatos e pupilas dilatadas
um pequeno mapa em quinze linhas
de uma fantasia sexual aborrecida e previsível
sobre dominador e dominado
caçador e caçado
que fez a poeta pensar
no imperialismo mal disfarçado da pax britannica
e naquele poema de alexandre o’neill
aquele em que todos estamos a pensar
a história da moral 

durante várias semanas
a poeta ficou sem saber o que responder
quando finalmente confrontou o professor
ele alegou a ignorância dela
a sua falta de familiaridade
com baudelaire e murnau
com o erotismo expressionista
do centro e do norte da europa
para aceder correctamente ao significado inocente
e apenas puramente literário daquela mensagem
o professor chamou a poeta de má amiga
invocou a mulher os dois filhos
o empréstimo da casa
o casamento de vinte cinco anos
a poeta pensou que eram demasiados pormenores
para uma mensagem tão idiota 

ponderou o quão mediocremente distante se sentia
em tudo aquilo dos poemas de amor
orgulhosos e solitários de hilda hilst
até das falhas da sua própria
má imaginação melodramática
e veio-lhe à memória sobretudo
aquele verso de um poeta grego
em que ele diz que dá força
passar tempo com os mortos
quando os vivos não chegam 

pensou por fim que já não valia a pena explicar
àquele homem
como para ela não existiam
significados literários puramente inocentes
sobretudo não se havia baudelaire e murnau
lá pelo meio
que há palavras que quando usadas
mesmo nas situações mais confusas
mesmo naquelas que nos deixam mais perplexos
exigem de nós apenas estar disposto
a morrer ou a matar
uma coragem quente e simples
de viver à deriva de um sopro
com uma clareza que é sempre
necessária e difícil
para todos e qualquer um  

Amsterdão, Outubro de 2017

Oxford, 28 de Janeiro de 2022

 

Tacto

Tonia Tzirita Zacharatou
Tradução do grego de José Luís Costa

Os meus dedos conhecem duas texturas
a pele e a terra
embora nem sempre consigam
distingui-las.
É o tacto aquilo que perde
um foragido que tenha queimado
as pontas dos dedos
tendo decidido passar a viver
sem impressões digitais.
Talvez até me sentisse eu melhor
se pudesse tocar
a pele seca, a terra
sequiosa que foi a tua
uma pele que eu não sentia
com os dedos mas que se estendia
e transbordava por todos os lados
quando o mundo era ainda
uma casca de laranja
enroscada em torno do meu pulso.


O poema anterior nesta série, bem como um texto introdutório de Androniki Tasioula ao livro de que ele faz parte, Segunda Juventude, pode ser lido aqui.

Desiderio de Ricardo Marques (não edições, 2022)

 

Uma viagem que fiz ficou ligada a um livro de Ricardo Marques, Lucidez (e Outras Sombras), e de vez em quando penso nisso com alegria e assombro. A imagem que se vê na capa é baseada numa fotografia que tirei a um fragmento de uma estátua, uma peça de um rosto de mulher que está num museu relativamente obscuro de Roma, ou pelo menos não tão visitado quanto devia, o Centrale Montemartini, no Quartiere Ostiense. Pouco central, pouco conhecido e alojado numa antiga central termoeléctrica, a única atracção turística de que não fica muito longe é do Cemitério Protestante, onde estão sepultados Keats, Shelley, Gregory Corso e outras pessoas que, bem vistas as coisas, são caras ao imaginário do Ricardo. Este museu reúne um acervo de estátuas romanas que não couberam nos outros museus da cidade e foram ali deixadas, um pouco como em depósito. Mas este depósito é um dos museus mais inacreditáveis que conheço, com obras supostamente menores da antiguidade que são tão extraordinárias quanto obscuras. A fotografia que tirei de uma dessas obras o Ricardo viu-a na rede social mais batida de todas e perguntou-me se a podia usar para um livro seu e eu disse que claro que sim, e depois fiquei a pensar que este episódio era típico da curiosidade e do espírito aberto e um pouco flâneur do Ricardo. Pareceu-me que afinal tinha ido ao Centrale Montemartini por causa do livro dele. E achei que esta ideia de pôr esta cabeça de mulher meio mutilada na capa de um livro chamado Lucidez dizia qualquer coisa de urgente acerca da poética do Ricardo, e Lucidez é de resto um livro que pode ser pensado como contendo algumas artes poéticas, e algumas delas inesperadamente assertivas e urgentes (penso aqui em poemas como “Avidez,” p. 32, “Eles não são os meus pares,”p. 56, “O lepidóptero,” p. 57, “Frag mento,” p. 62) onde aflora um juízo estético/ético que pode, ainda que em alguns destes poemas indirectamente, referir-se aos contextos do que significa escrever poesia. Lucidez é um destes livros que deixa patente o labor – uma palavra melhor que esforço, porque o Ricardo faz tudo isto parecer muito natural: as traduções, as antologias, os livros de poesia, a novela escrita durante a pandemia, as exposições, as leituras de poesia, o conhecimento certeiro e infalível do melhor restaurante de ramen na cidade de Lisboa – de um poeta que escreve não para pregar, nalguma espécie de exposição didática (penso que nada poderia estar mais longe do espírito do Ricardo), sobre o que seja lucidez, mas para tentar reunir alguma num livro que não impõe nada, apenas vai, poema a poema, iluminando a necessidade de falar de algumas coisas que estão no campo de forças desta palavra e, afinal, da profunda necessidade de a procurar, de ir tentando chegar a ela. Escrever desta maneira é uma forma de exploração ética e, por aí, de desejo: envolve uma viva atenção, disponibilidade e vulnerabilidade, que são três condições sem as quais, de resto, acho difícil que se escreva poesia.

Parece-me adequado que a este livro de poemas se tenha seguido, com uma novela ensaística pelo meio (A Varanda, Companhia das Ilhas, 2021), um livro sobre, exactamente, o desejo: Desiderio (não edições, 2022), que colige poemas que o Ricardo foi escrevendo acerca deste tema. Pode-se pensar em Ricardo Marques como um poeta que constrói os seus livros em torno de um só conceito (foi este o caso em Metamorphoses, Ruinenlust, Lucidez e agora em Desiderio), com uma preferência por uma precisão minimalista e por uma certa clareza vagamente derivada da dicção dessa poeta que, de acordo com a classificação sugerida por Miguel Tamen e António Feijó num livro de referência recente, O cânone, não operou qualquer revolução em termos da língua – Sophia.

Não há, em Desiderio, nenhum ângulo particularmente vanguardista. Mas isto talvez seja apenas no sentido em que o que parecem ser por vezes os poemas mais à retaguarda de um determinado momento literário são eles próprios uma forma de resistência ao tempo, que por aí ganham um outro potencial de inventividade e renovação. Mas Desiderio pode ser só mesmo lido desinteressadamente, e na verdade, convida o leitor a isso. Sendo, no entanto, um livro sobre um tema por definição privado – o desejo –, Desiderio faz-nos pensar sobre os discursos sociais que criamos sobre o tema, sobre os ícones e convenções por que estes discursos se expressam (de Antínoo a Leonardo a Corbet a Louis Garrel, passando por Hilda Hilst). E quase todos os poemas buscam um diálogo ou uma reflexão acerca da presença dos outros na nossa intimidade. Desiderio é assim um livro onde se insinua uma ideia de desejo como modo de viver, uma busca do outro à luz de uma certa lucidez, às vezes estoica e irónica, imposta pelo frágil equilíbrio entre triunfo e derrota que desejar alguém traz consigo, expondo assim a vulnerabilidade de quem fala (veja-se um poema como “Entre cão e lobo:” “dois cães conversando seus alvos/ de seara em seara trigo passageiro/ moído amiúde com o tronco/ das árvores a minha mó/ feita em miúdos// dois cães um deles mais lobo/ o outro mais magro/cães que caçam separados/ as sobras nos cantos” (p. 50).)” Noutros poemas, encontramos um eco da desesperada vitalidade de Pasolini de “O Pranto da Escavadora,” um poema onde se lê que só amar e só viver importam, não o ter amado ou o ter vivido: “só a beleza aberta/ aquela que abre é a beleza” (“Noli me tangere,” p. 42). Às vezes esta reflexão é simplesmente sobre o lado estético do desejo, a sua contemplação deslumbrada, talvez com qualquer coisa do tropeço adolescente de que falava O’Neill (penso aqui num poema como “Kouros na Biblioteca Nacional.”). Há um poema assombroso, “Voyeurismo” (p. 74), que numa nota discordante recorda, ou parece recordar, o tipo de desejo clandestino que Jorge de Sena descreve em Sinais de Fogo, um mundo de encontros avassaladores e clandestinos. Este poema é imediatamente seguido por um poema onde o desejo confina com a ternura, talvez com a alegria do amor (“Viçoso Vício,” p. 75).

Com que outras poéticas do desejo dialoga este livro? É óbvio talvez pensar em Ovídio e na sua Ars Amatoria, mas não há em Desiderio o lado expressamente didático desse manual de seduções da Antiguidade. Os poemas que aqui leio não me parecem almejar, porém, ao contrário do que sucede com Ovídio, a uma pedagogia da sedução, são antes sobre momentos privados, intensamente vividos, que são revisitados idiossincraticamente, mais ou menos despretensiosamente (embora haja por vezes uma ironia que terá a ver com uma certa preocupação com uma beleza do estilo e a espaços uma gravitas, reminiscente da dicção de Sophia, que é uma forma de falar da elevação do desejo), o que talvez venha de uma consciência de que no desejo o caçador pode tornar-se facilmente o caçado: penso aqui na lúdica sequência de dois sonetos, “Soneto do Activo” e “Soneto do Passivo” – que ironiza sobre estereótipos limitados que têm que ver com um olhar preconceituoso da heterossexualidade sobre a homossexualidade, mas brincando com o contexto da economia (o que, num contexto diferente, recorda outro livro onde este interesse pela intersecção entre economia e poética está presente, Divida Soberana, de Susana Araújo). A exploração de uma psicologia do desejo que está aqui em causa terá então, talvez, mais que ver com o mundo dos diários de Anaïs Nin, no sentido em que se procura aqui uma descrição da experiência do desejo, do que com Ovídio. Há qualquer coisa de escultório na poesia do Ricardo, de um modo mais geral: eles convidam à contemplação, pedem de nós a delicadeza de reparar nos detalhes onde, como se lê num poema de Franco Alexandre, habita um deus.

Numa breve nota introdutória ao livro, Ricardo Marques explica que Desiderio, em certo sentido, reúne quarenta anos de poesia, a mesma idade que é a sua, que os poemas estavam dispersos e foram sendo recolhidos (o primeiro poema data de 2012, o penúltimo de 2021, o último, “Biografia,” não tem data), que muitos deles nascem de coisas (peças, exposições, filmes) e pessoas vistas em viagens. E acrescenta que foi “essa surpresa da desadequação” que o fez escrever. Esta surpresa da desadequação, que tantas vezes é o primeiro indício do desejo, é talvez o fio condutor mais vital que une todos os poemas deste livro. É também isso que o torna tão adequado. Quia pauper amavi, como diria Ovídio.

Oxford, Novembro de 2022-Janeiro de 2023

Dedo nosso entrando em ferida nossa

Abre-se a boca, a luz entra na garganta feita clarabóia, e tudo principia. O corpo dá-se à claridade, dilata-se para receber a manhã iluminando as suas entranhas. O seu reflexo torna-se também visível, bem como seu lastro. Imbuído por essa claridade, não fica, ainda assim, vazio, por muito que se esvazie. O vácuo aberto pelo derrame é preenchido por uma nova forma de vazio, um vazio que não é letárgico, que não é ausente, mas que é ocupado por uma outra forma de estar no espaço, uma outra forma de materialidade.

            Por onde se abre, o corpo também se deixa invadir, torna-se porto de passagem de forças aparentemente ocultas, misteriosas. E assim, ele conquista a sua própria escuridão. Saindo do corpo, o que move o corpo aproveita a maré de luz exterior para com ela partir rumo à descoberta do interior do lugar onde morava. Encontra os seus elementos primeiros, as suas estruturas, os seus mecanismos, mas também as pinturas rupestres sobre as grutas, o bolbo soterrado das imagens cravadas na carne dando envolvência e peripécia à viagem, perturbando-a, tornando-a ainda mais explicitamente provisória.

            Não é, contudo, um prado em plena ebulição da juventude, nem a cidade consegue esconder as feridas da guerra. O que desconcerta é como irradia aquilo que Thomas Bernhard chamaria uma manhã sem destruição, um momento em que a natureza encara a sua própria violência com ternura, como um impulso redimido. 

             É a célebre pintura de Caravaggio “a incredibilidade de São Tomé”, Tomé olha a chaga de Cristo, quer tocar-lhe.  E Cristo, lânguido e prostrado, aceita ver-se penetrado pelo dedo céptico de Tomé.  O triunfo sobre a dor é a prova da divindade, e isso teria desconcertado aquele que não cria. Como poderia uma criatura ser indiferente à sua própria dor, deixando que um dedo penetrasse a sua ferida como se arrumasse... fósforos numa caixa.

            Ver figura humana ajudando a perfurar sua própria carne é como ver poeta que nos fala dos seus sentimentos, alheando-se da sua presença e evidenciando seu abandono. Eles são-nos visíveis, estão-nos oferecidos como ferida aberta sangrando tal qual se espera dela, mas a ausência de propriedade (ou de proprietário) arrepia-nos, como se pusesse em causa a própria fundação da nossa identidade: as nossas emoções mais puras.

            Quando Miguel Royo nos sugere que somos apenas orifícios que comunicam, encontramos aqui, como na pintura de Caravagio, um estranho fenómeno de anulação do ego. Mas enquanto Cristo de São Tomé se anula porque sabe consusbtanciar-se em algo que o transvaza, o alheamento do poeta parece-nos porventura mais bizarro, pois joga com um revólver na cabeça a efemeridade da sua própria morte.    

            O inventário do que nos compõe continua, dir-se-ia que o escritor tomou o lugar do fisiologista e que analisa com meticulosidade cada elemento do que compõe a carne humana. Não necessariamente para organizar um compêndio que possa ser inserido numa rede de transmissão de conhecimento. O seu regresso à materialidade é quase místico, porque tornando a matéria plástica consegue evidenciar tudo que dela emana, a sua própria sensualidade, a sedução de uma vertigem que sabe ser o desejo sublimado da queda.

            Mas ao anular-se, o sujeito procura anular aquilo que Freud dizia haver mais íntimo e fundacional: sua dor. Ainda que depois mergulhe nela, através das palavras, porque, muito embora elas se prostituam como palavras unindo as nossas ilusões de contacto, a sua duplicidade faz delas tão dignas de interesse quanto o corpo: a sua falsidade, a sua escuridão é a sua ficcionalidade, é aquilo que as torna bífidas, capazes de serem campos intensivos produtores de sentido, estimulando o nosso desejo.

            As palavras revelam-se a fundação do canto. Não se sabe bem como é que surge um corpo profundamente telúrico capaz de cantar. Nem de onde vem esse canto, se é um grito de agonia de alguém que asfixia momentaneamente, se é um fenómeno milagroso sem origem sondável, se é, como outros, um fenómeno natural da paisagem. Sabe-se, apenas, que é indagando a carne e suas feridas, que é encostando-lhe o gume como ameaça, que o canto começa.

            Talvez importe aqui, relembrar, o título do livro Na Pedra a Luz Afia o Gume, porque a estarmos perante uma teoria geral sobre as coisas da vida, não podemos deixar de notar a equivalência entre a luz e o canto. Sendo, por isso, válido questionarmo-nos tendo em conta o que faláramos sobre a escuridão do corpo - se o que se procura com o canto não será desvelar alguns dos mistérios dessa sombra.

            Se esta hipótese fosse verdadeira apunhalaríamos mais um fantasma do sentimento da identidade, porque nem o canto, ou o discurso poético, seria a prova de algum tipo de instância singular, de propriedade não-partilhada com mais nenhum corpo circundante. Este canto, assemelhar-se-ia mais a um coro do que a uma ária, ainda que invoque a primeira pessoa do singular recorrentemente, como uma espécie de cobaia que é atirada na praça pública, para experimentar o espancamento de uma multidão.

            Quando nos é dito sou o sonho do cavalo dentro do homem/ castrado da sua natureza aérea é logo rapidamente rebatido mas sou  o punho/ no teu ventre arrependido/ a mão na pedra que se recusa a abrir/ por não revelar nada a não ser/ a disponibilidade total de um membro, ao que é acrescentado mas sou a dentadura da morte/ o único árbitro que sorri no escuro. Ainda que seja ensaiada uma espécie de definição identitária espiritual, um sujeito como algo que precede e extravasa a carne, ela é logo de seguida desfeita: o sujeito é rapidamente subsumido em matéria corporal e despersonalizado, constituído enquanto entidade comum.

            Mas este não é o único momento de despersonalização, nem tão pouco do esvaziamento do sujeito para ser tomado por um outro alento. Consideremos ,porventura, se estas mãos me rangem é porque têm dentes/ e se têm dentes é porque não são minhas, mas também o futuro/ se vier/ que suba pela mecha dos meus músclos/ estendidos sobre a mesa dos dias/ em ígnea submissão, ou mesmo que o corpo se transforma/ no adubo de pensamentos alheios e a pessoas passeiam/ longe dos nossos restos porque cheiram ainda a movimento/ e a diálogos abertos. Neles se intui, não só o não-desaparecimento da agência mesmo quando o sujeito é reduzido aos seus instrumentos de percepção ou de actuação sobre o mundo, como também se constata o alheamento desconcertante que havíamos referido anteriormente.

            Por muito que os próprios pensamentos sejam alheios ao corpo há uma força motora que procura a escuridão, a escuridão da morte, impulsiona o corpo a flagelar-se, a rejeitar o sono, a cair verticalmente na doença. Na sua própria indefinição procura a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dá lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater a morte no seu território ou a noite trabalha a carne com as mãos roubadas às insónias e ousa todas as formas até que uma brecha no escuro nos devolva as mãos e a luz.

            A confusão entre interior/exterior surge como consequência natural do desaparecimento do sujeito e viaja pelo livro todo, é o seu próprio fardo e, sarcasticamente, a prova viva da sua singularidade, porque não é nem o sujeito desaparecido puramente contemplativo de algo que lhe é externo, nem tão pouco o psicótico que transforma a aparência da realidade com as suas convulsões, é, uma outra coisa, um corpo que mira a paisagem sendo a paisagem, ou uma paisagem que encontra no corpo o seu reflexo e sobre si nele medita, podendo ser um ou outro, ou mesmo os dois em simultâneo: esta paisagem é o mundo que se deita sobre os nossos olhos… por pudor a ser desvendado volta-se sobre si mesma como um animal ferido à altura da nossa vista. A relação umbilical entre a paisagem e quem a observa parece sugerir que um e outro dependem da existência mútua para poder sobreviver, como se um e outro fossem o mesmo corpo.

            Talvez, é por saber a sua condição de primeira fila no batalhão que este falso-sujeito se presta a caminhar tão próximo da morte, sendo curioso observar que, quando se aproxima, ele torna-se cada vez mais apaixonado.  A morte surge como uma fuga, uma nesga ou, cito também, frincha entre as vedações do sentido, um ponto sem retorno da vedação do sentido. Mas também como reforço do alento.

            É sobre o parapeito dessa vertigem que caminhamos, como se tacteássemos uma noite como um grande mistério cravado no céu da boca. Porque, aqui, a morte e a noite são siamesas, procuro a febre eminente da noite num corpo distendido sem definição e dar-lhe a forma urgente para afrontar o sono com as mãos e combater no seu território. A noite paira no corpo, enquanto o corpo escapa às sondas do sentido e é possuído por um alento incógnito, movido por forças recônditas. Esse movimento centrífugo é sinal de inteligibilidade, de inteligência, começo a recear que é no nicho da sombra que principia a lucidez. Pelos corpos adentro escavo para encontrar a luz, muito embora não seja claro se isso chega para se falar de uma singularidade.

.           Seria impossível falar-se da anulação do sujeito, sem falar da morte, porque a morte é a sua arena principal. A morte e, aliás, a noite são sempre elevados ao enigma primordial, que seduz e atrai o sujeito a abandonar-se e deixar-se navegar pelas suas ondas, ainda que o perigo de afogamento seja evidente.  Só a incógnita remete para um desfecho do ego. Ou uma hermenêutica do invisível, contra ela, o poeta tem dois movimentos distintos, porque se por um lado,  a procura apaixonada por desvelá-las é afirmação do corpo como força intensiva e pregnante - como uma força própria da vida, viva por isso-, por outro lado,  a morte é também vista como descanso, a concretização do corpo com a paisagem que integra, ou, o corpo retraído na coordenada vaga onde o mundo acaba e principia o mistério.

            Ainda que este livro não seja propriamente uma elegia fúnebre, porque nos fala, porque seus órgãos estão vivos, a boca, a garganta, os seus olhos, as suas mãos, a úvula, a sua bílis trabalhando ainda, os tímpanos tísicos de tudo conservar. E estes órgãos são lhe familiares, próximos, viscerais, cobertos de nevoeiro, ainda que estanques e imóveis. Um olhar que é presa do mundo que o ataca, pulsos abertos sangrando abundantemente sobre os mapas, os corpos esmurrados por sussurros de uma vida externa que lhe é estranha e sobre o qual se debruçam: abrem-se os corpos como campos feridos com a chegada do estio… são os campos que inauguram os incêndios e ardem… voltando-se para o interior do lume.

            E novo desconcerto, é que não só os órgãos nos trazem a expansão fulgurante de uma vida que está para lá do corpo, como essa vida nos traz o rasto de outras narrativas, pegadas de cabras que passaram para nos beber os sonhos. É por isso que, talvez, relembrar é como um espasmo de morte, como nos é dito, porque a memória parece impedir o fluir livre da vida sensorial sobre os órgãos. Ela é maliciosa, onde armazena os enigmas da vida, onde amarzena as noites, torna evidente o carácter provisório de tudo o que lhe rodeia. Mas é, também, a segunda prova de que o corpo está vivo e isso não nega a sua função de fio condutor da corrente elétrica. A memória, quando não traz trégua, traz a obrigação da procura, constituindo-se enquanto terceira voz à digladiação interna entre os elementos da paisagem.

            Ainda que pareçam todos mediados pelo mesmo denominador (dada a ausência de carácter singular e a aparência cosmogenética da descrição que é feita) os elementos da paisagem não são idênticos. Não é certo o que os distingue senão a sua composição, porque se recusa quase sempre falar de uma identidade dita espiritual ou transcendental,  porque tudo parece alimentado por forças vizinhas. Talvez, a singularidade venha de fardo antigo, tenho o sangue contaminado pelo tempo a razão da sua diferença seja a descendência, o seu genoma porque o sangue transporta a descendência, a trama infindável de paixão

            Ainda que os corpos se sucedam, e que a descendência apareça como um estranho fenómeno de iteração marginalmente alterada. Ela tem dentro de si o seu próprio equilíbrio funcional de forças, a relação entre a mãe e o filho, entre o neto e seus antepassados. Permite-nos, dessa forma, partir rumo ao cerne do seu caos harmonioso, onde a dor e a morte aparecem desveladas como algo próprio da natureza e, por isso, belo. Por mais violento que ela possa ser. Filhos que abandonam ideias em chamas, cuja natureza icariana faz que só pela dor concretizem o que aspiram ser.  Avós que assombram os netos com seus sonhos e profecias. Mães que observam os fihos cumprirem-se sobre o gume da morte.

            O desconcerto, provocado pelo desvelar dos conflitos internos da paisagem com outras vozes, assemelha-se mais a uma arena do que a um horto, é aliás bélico. É um balanço permanente entre a imagem e aquilo que a imagem evoca, mas não num plano tradicional da oposição da fenomenologia clássica, é uma luta dentro da própria imagem, é dentro dela que uma parte entra em conflito com o restante, o mundo atacando,  a memória como uma revelação, o mundo retaliando, e o corpo respondendo, não serve estar ferido nos olhos e capitular. Urge desdobrá-los… como um punho ou um baluarte erguido na frente das trincheiras do mundo.

            Esta luta pede aliás um tributo para as tramitações da carne porque é aos corpos que é exigido que encenem este combate, porque é do que lhes compõem que vêm o que gera a confrontação, as mãos que não são só, como dissemos, elemento primeiro de reconhecimento do mundo, mas também que trazem sedes próprias (fomes que nem o pulso apaga), que rangem raivosamente para morder.

            Esta submissão do sujeito para dar lugar ao corpo encontra-se também reflectida nas imagens propriamente eróticas, no sentido clássico da palavra, isto é, como aquilo que diz respeito ao amor. Porque até aqui, não encontramos, propriamente, o amor como resultado do desejo de quem ama, nem tão pouco na candura ou desenvoltura de quem é amado: o amor aparece tão só como mais uma das dinâmicas de confrontação entre os corpos, como um enigma próprio da paisagem, e o beijo como um detrito do vocábulo ou um ósculo de rebentação. Quando amados, os corpos procuram a sua proximidade, querem a faísca do seu magnetismo, procuram visceralmente ceder à sua vertigem. Quando amados, ou, melhor dizendo, quando atraídos pelo amor, os corpos desmembram-se e tornam-se elementos da paisagem.

            O amor tem essa faculdade, de operar uma transformação das coisas, dando-lhes exaustiva vida própria, uma outra utilidade, vemos neste livro, mãos que se tornam água, que arredondam pedras, que sulcam a derme e fendem desejo, que se alimentam do que criam e que criam o que alimentam. É um momento de subtração para gerar novas substâncias, de cair verticalmente a meio e aparecer de pé sobre a laje do teu futuro.

            E é quando há a possibilidade de o amor desaparecer, mais que quando se extinguiu o ânimo de uma criatura, o sujeito de um corpo, ou a textura de uma paisagem, surge o momento de maior fulgor e violência nos poemas. Fala-se de rasgar o corpo amado de cima a baixo, de incendiá-lo e encontra-se o verso que dá título ao livro é na pedra que a luz afia o gume, como se fosse possível torcer a própria espinha dorsal da luz, do canto, para torná-lo acutilante, perigoso, feroz, penetrante como uma faca.

            Neste livro assistimos a uma cosmogenese, o que há de substantivo parece surpreendentemente alinhado num conjunto de teses que organicamente dialogam entre si e se reforçam, sobre a aparência de uma linguagem desconcertantemente límpida e soberana. Tem lugar um teatro dos corpos alimentados pela sua própria paixão mas sem ter, propriamente, um pendor onírico, uma fabulação romantizada.

            A paisagem está descarnada, despida, os ossos expostos. Onde nos desconcerta, é a sensualidade que evoca este desvelar por vezes tórrido, por outras vezes sereno. Os corpos enquanto actores, figurantes e cenário procuram-se e procuram se a si próprios, enfrentam a noite e a escuridão de tudo o que lhes rodeia, do seu desígnio, do seu passado, da sua descendência, da sua paixão, a dor e a morte despem-se, apresentam-se puras, não-mediadas, escorrendo sem coágulo.

            Só, talvez, na memória dos anciãos da família, surge uma afecção dir-se-ia pessoal, mas em todo o resto é um livro completamente acabado e que nos perturba na medida em que se alheia categoricamente do que nos é próximo, como uma casa nossa que nunca visitáramos onde de cada aresta depende o confronto com a ruína. Na mesma medida que se afasta de si próprio, procura-se a si próprio como um outro, como um olhar projectado de fora do crânio para o corpo mas não como um corpo que se olha ao espelho, porque não é necessariamente reflexivo, não é o sujeito que se pensa, é algo que pensa fora do sujeito sobre o sujeito e que para isso usa o que vê, as pegadas que invocam a passagem do tempo.

            Não há linhas de fuga projectadas por eventuais desequilibrios, as única linhas de fuga são as que o seu próprio corpo indica e lança para lá de si, um corpo desmembrado, para depois ser recosido, e ainda assim manter todo o seu potencial alegórico, a sua fantasia. Foi a isto que quisemos chamar desconcerto. Um dedo outro entrando em ferida alheia sendo um dedo nosso entrando em ferida nossa.

Um poema de Tonia Tzirita Zacharatou

Ao longo do mês de Janeiro e Fevereiro daremos destaque na Enfermaria 6 ao trabalho de duas poetas gregas contemporâneas em traduções de José Luís Costa. Começamos com um texto da crítica literária grega Androniki Tasioula sobre o livro Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou, um livro publicado pelas edições Thraka em 2020 e multiplamente premiado na Grécia, seguido de um poema da Tonia.


A propósito de Segunda Juventude de Tonia Tzirita Zacharatou

por Androniki Tasioula
tradução de Tatiana Faia

Do título “Segunda Juventude” percebemos já o tema dominante do livro: tempo. Numa entrevista a poetisa disse que queria registar a primeira juventude não como memória, i.e. muito tempo depois de ter terminado, mas que queria escrever o evento de tempos que se seguem uns aos outros em proximidade. Algo como uma reflexão em close-up, como se quisesse criar, paradoxalmente, uma sincronia entre a observação da experiência da sua primeira juventude e a sua experiência na carne.

No ensaio “O tempo das mulheres,” Julia Kristeva distingue o tempo das mulheres do tempo linear do calendário. Ela atribuiu ao tempo das mulheres as qualidades do cíclico e do eterno, num contraste com o tempo como nos foi conferido numa sociedade culturalmente patriarcal: como projecto, teleologia, perspectiva, progresso, frase gramatical: sujeito – verbo, predicado – comentários, princípio e fim. A forma como a poetisa procede à sabotagem de um tempo linear – masculino segundo Kristeva –, portanto, é não o deixando passar. No poema “Para lá do rio, um rio” ela escreve que “Eu/ todos os meus rios/ são/ imaginários./ Falar/como?” E, contudo, no mesmo poema ela escreve o seguinte sobre os rios: “Eles tentam escapar à metáfora/ que vê neles tempo que flui./ Rios querem ser rios/ para lá do cimento, para lá da metáfora.” Enquanto os rios poéticos reclamam a sua literalidade, enquanto recusam a metáfora do tempo que passa que tradicionalmente lhes é atribuída, eles procuram ser o que são.

A poetisa na sua “Segunda Juventude” metaboliza a primeira juventude na escrita poética, mesmo antes de esta se poder tornar uma coisa do passado. Ela retira a primeira juventude da sua casca linear, a que quer passar e terminar. A poetisa cria um enclave para a segunda juventude preservar em si a primeira. E por isso no poema “Dendrologio” (“Arboreto”) ela torna a idade humana semelhante à idade das árvores. De facto, o tempo que rodeia o tronco da árvore que cresce com mais uma camada de casca, incluindo todas as outras até ao primeiro rebento, é o tempo eterno e circular, certo?


DEMASIADO CEDO FOI TARDE DEMAIS

Tradução de José Luís Costa

Creio
que me falaram desse
safanão que o tempo por vezes nos dá
quando nos encontramos ainda na mais jovem
na mais gloriosa idade da vida.
Vi-o
arrancar-me os traços distintivos um a um
mudar a relação entre eles
tornar
maiores os olhos
mais triste o olhar
mais determinada a boca
marcar-me a testa com vincos fundos.
Não tive medo: observei-o
enquanto trabalhava o meu rosto
com o mesmo interesse que despertaria em mim
uma leitura em que eu avançava.