Teodora Cardoso leu os clássicos todos

Não que a entrevista interesse. Talvez interesse. O que chamou a atenção foi dizer-se que Teodora Cardoso, presidente do Conselho das Finanças Públicas, "leu todos os clássicos da literatura." Para além de ser algo inédito no mundo, e por isso digno de louvor, é também sintoma do alto desprezo que as elites portuguesas têm por qualquer coisa relacionada com as humanidades. Leu tudo, tanto que já nem lê o que de mais recente se vai publicando, possui colecções inesgotáveis de música clássica. Parabéns, Teodora. Este é o ano dos portugueses. Resta saber quantos são os clássicos e a partir de que ano de publicação é que um "romance", coisa pouco do gosto de Teodora, perde o rótulo de clássico e passa a ser "moderno", isto é, menor e portanto pouco apetecível em termos de leitura, ou melhor, de distracção do que realmente importa. Este é o discurso do lucro. O de alguém que não olha para o ensino das humanidades como crucial para a formação do indivíduo. Ler pode contribuir decisivamente para que nenhum Donald vire presidente ou para que não aceitemos de olhos fechados a inevitabilidade da austeridade ou da decadência ou do desemprego. Este é o discurso de quem diz que adora ler, que leu tudo, especialmente o que confere gravitas, virtus, mas que na verdade despreza a literatura, a história, a filosofia. Passos Coelho também apareceu um dia a garantir que não perdia tempo a ler romances. Lia a Fenomenologia do Tempo, ou a Fenomenologia do Ser ou do Existir - que interessam os títulos, quando o que conta é o conteúdo? Teodora leu os clássicos todos e agora lê romances policiais por diversão. Leu Tolstói. Aliás, releu Tolstói mas Dostoiévski nem ver. Com aqueles experimentalismos, não ensina a ganhar dinheiro nem a compreender o mundo. Vejam como a literatura é menor, como é pequena, contabilizável. Cabe no bolso de uma contabilista, perdão, economista, perdão, figura mundial.

Deixo um excerto da preciosidade:

A nível de literatura, não leio muitos romances, sobretudo modernos. Li os clássicos portugueses, ingleses, franceses, alemães e russos. Mas russos só o Tolstoi, de Dostoievski não gosto muito. Ainda há pouco tempo andei a reler “Guerra e Paz”, que é um grande livro, sempre atualíssimo. E li-os em geral no original, no caso dos alemães em traduções para francês ou inglês, muitas vezes com edições bilingues, porque de facto gosto muito de ler os originais. E filosofia também. Sempre gostei e continuo a gostar. Depois, há uma coisa completamente diferente destas todas e em que sou especialista, como com os chás, que são os livros policiais. Eu preciso de livros policiais para adormecer. Não é porque me deem sono mas porque me fazem desligar do dia a dia.

Lourdes Castro: dar a ver o enigma

Lourdes Castro, Odalisque  d'après Ingres (1964)

Num testemunho intitulado Sombras Projectadas e Contornos, Lourdes Castro diz-nos o seguinte:

“A sombra ainda é palpável. O contorno já não é. (…) [o contorno] é, creio, um novo olhar sobre o que me rodeia. 
A sombra projectada como contorno interessa-me muito mais do que a sua simples representação. Porque o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente. (…) Enquanto um contorno é qualquer coisa que foi feita com a presença da sombra, mas que dela se liberta. O contorno sugere ausência, verdadeira e absolutamente. E, para mim, é ir ainda mais longe. O contorno é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém, conservando as suas características.” (p. 41)

A ênfase posta no contorno mostra um importante tópico de problematização. Desde logo, o contorno não se confunde com a sombra, mas também não se revela como intenção que postule alienação ou transcendência; não sendo também marca de qualquer polarização, o contorno será o entre a total dependência que elide a diferença e a ingénua tentativa de rompimento com o referencial.

Ora, a presença do contorno faz sentir-se aqui em primeira instância no e com a visão – o tal “novo olhar sobre o que me rodeia”. Permanência no mundo, o contorno não equivalerá à circunferência, ou seja, ao limite que elide a aproximação, mas sim ao acentuar das possibilidades de (re)conhecimento. 

Porém, seria talvez precipitado encarar a visão como sentido único, ou sequer privilegiado, no que tange a prossecução do entendimento – além de que “olhar” e “ver” não se anulam. Do que se trata é da articulação de um caminho, a saber, a visão que se relaciona com “o que me rodeia”, com a “ausência” e com “o Menos”; e nenhum destes movimentos se sobrepõe aos demais. O contorno acrescenta: “é ainda mais” e “ é ir ainda mais longe”; ou talvez possamos dizer que nesta obra, o contorno é a instância que, longe de um poder judicativo, instaura o aproximar-distanciar.

Com efeito, o que “rodeia” poder-se-á materializar no tipo de espacialização que (se) disponibiliza; a “ausência” não redundará na incomunicabilidade, antes consistindo na abordagem que des-constrói o sujeito; finalmente, “o Menos” inaugura e abre. Heidegger, nomeadamente no ensaio A Origem da Obra de Arte, apresenta algumas conexões originais que se prestam a interessantes pontos de contacto com o que vamos dizendo.

Partindo da agressão (racional) relativamente à “Stimmung”, que no ensaio surge traduzida por “impressão ou disposição afectiva” (p. 18) - e note-se porventura o eco kantiano da “algemeine stimme” contida na Crítica da Faculdade do Juízo -, Heidegger diz-nos que o “aparecer das coisas” (p. 19), i.e., a sua “consistência”, deve muito à forma “como contorno” que é a tradução da “especificação” e do “entrelaçamento de forma e matéria” (p.  21). Aí, “contorno” ancora-se em larga medida no caminho que o filósofo trilha, o qual se insere na “coisidade da coisa”: a ideia de “contorno”, juntamente com a de “utensílio” ou “produto”, pretendem desvelar, em primeira linha, o teor misto da obra-de-arte como “espontaneidade” e “fabrico”. Daí decorre que o contorno em Lourdes Castro se associe mais intimamente com um outro conceito heideggeriano: “Esta fenda abarca e mantém em conjunto na sua separação (…) o traço-fenda é o conjunto unificante de sulcos do esboço e do traçado fundamental, do rasgão e do contorno” (p. 66). O traçar-fenda, o “traço-fenda”, consubstancializa, assim, um modo possível de inscrição que foge ao lugar-comum e ao “habitual”: é a “clareia” e o “encobrimento” que a obra-de-arte projecta, é um co-povoar. 

O contorno em Lourdes Castro e o traço-fenda em Heidegger não sequestram, antes convidam a instaurar, precisamente porque contrariam a dominação da resposta que se pretende definitiva. O que Heidegger veio a cunhar de “habitar poético”, e de arte como “ditado poético”, serão abordagens à finitude do homem, ao “ser-para-a-morte” que salvaguarda o “mistério” e que, por isso, não poderá cessar de questionar o como do aí-ser de e em cada um de nós. “Ver o enigma” (p. 85) é a resposta que o filósofo dá à pergunta “Em que medida arte” (p. 58): haverá arte se e quando o ser rejeitar a elipse para a qual a excessiva subjectividade pode resvalar, optando – ou tomando para si – o “círculo” que, para Heidegger, abre o indivíduo ao estar-no-mundo poiético. 

Também Lourdes Castro vê o enigma e toma para si o confronto com as forças de dissipação inerentes à vida; ser capaz de atingir a “ausência” é o “Menos”, a saber, o vestígio, e não o esquecimento. É que o contorno “conserva”, ou seja, vivifica, e o retratar feito pela artista não copia, antes celebra a identidade. Essa espécie de concentração, leia-se, o esforço de procura do húmus que desencadeia e apreende, joga concretamente com o visível, ou melhor, com o habitualmente visível – o retrato. 

Todavia, Lourdes Castro controverte o jogo: deseja o in-habitualmente visível, graças à sombra e especialmente ao contorno; atribui consistência, ou seja, dá a ver. O “entre” será o que Heidegger designa de “clarear e pôr-a-coberto” (p. 39), que na artista passa pelo clarear para pôr-a-coberto. O contorno participa no assinalar daquela relação entre os entes quese caracteriza pela comunhão atenta e que desapossa, porque como diz Lourdes Castro: “Alguns têm a mesma idade, mas nenhum tem o mesmo coração” (p. 47).

Não morras tão perto de mim

Não morras tão perto de mim. 
Tenho medo. Que me lembres. 
Que me faças lembrar, não do futuro, 
mas do passado.  

Nunca do futuro. Do passado. 
O que foi morre-te muito mais, 
morre diante de ti, como tu, 
perto de mim. Não morras, 
meu amor, não morras.  

Tinhas um ar lilás ou havia rosas. 
Choraste sobre o meu ombro. 
Mas não eras um rio.  
(Não havia sombra.)  

Talvez por isso, 
pensei, pensei eu, não quero, 
tu sabes, tu sempre soubeste, 
não quero que morras  
onde não possa morrer contigo.

Bastardo, de Victor Prado (recensão por Victor Gonçalves)

Leitura do belíssimo, intenso, subtil e inovador, livro de Victor Prado, Bastardo (Urutau, 2016).

A vocação da poesia é a de agitar a linguagem e o sentido, quebrar a esclerose dos hábitos de pensamento, quase dizer o indizível, abrir a porta ao que está para emergir, e produzir uniões à sua volta. Mas também viajar entre o superficial e o profundo. E isto Victor Prado fá-lo muito bem, surpreende a vida quotidiana no seu aparecimento, desarmada, e captura com palavras algumas das raízes que a ligam a qualquer coisa de imutável, a um sentido para lá da própria língua que agora a traz à presença. Victor Prado aponta gestos originários que desenham parte do nosso mundo, gestos toscos, porque nascentes, difíceis de fixar pelas ferramentas do poeta, que luta constantemente para apanhar fluxos de vida e plasmá-los em poemas, que terão também de ser fluxos poéticos. Às vezes confessa os impasses que se levantam, outras vezes desiste mesmo, sublimando-se numa meta-poesia que compensa a dificuldade de poetar. Esta honestidade é o verdadeiro caminho para os mais altos cumes da Arte, só quem se rasga de desespero, quem fracassa no limiar da vitória, pode subir a “6 mil pés de altura”. Por isso, não conseguimos evitar um frisson quando lemos Bastardo, não como um soluço, meio caprichoso ou meio snob, mas como um safanão que nos retira a esperança de tudo entrar nos eixos mais tarde ou mais cedo.

Enquanto leitor, procurei os meus próprios ritos de contemplação, em filigrana, sabendo que a poesia cresce sobre as ruínas dos afectos e dos sentidos que oleiam a normalidade. A poesia de Victor Prado faz guinchar as peças das engrenagens intersubjectivas, quebra consensos comunitários, apunhala as subjectividades que a abraçam à espera de consolo. A sua poesia é uma casca de banana debaixo de sapatos bem engraxados. No mínimo, deslizamos e quebramos a perna que nos ajudava, sem o sabermos, a ir geometricamente de um lado para o outro, daquele lado para aquele outro, peripatéticos assoberbados por tantas coisas inúteis.

Seguem-se algumas das inúmeras portas de entrada para Bastardo, há outras, talvez até mais importantes ou luminosas.

Renovação da língua, experimentação extrema do que se pode dizer, com o corpo. Muitas vezes o corpo, mais espinosista do que cartesiano, deste Victor.

Sexta-feira  

Eu estou nuvem pontiaguda

Cada ponta relampeja em mim

e trovoa-me

Cada relâmpago de mim

te guia pela escuridão

O dia é duro e estático,

mas

o tempo é borrachudo

entre os dentes

Teu corpo é fluido em minhas mãos.

Actualização linguística ancorada no português-brasileiro que habita nas ruas, praças e cafés, língua de conversa, às vezes fiada, íntima e pública, mais performativa do que semântica (“Onde está a palavra quando / fingimos a nós?”), produtor de sentido porque nos sacode mais do que nos guia numa linha clara de significações (“Misturando com o cheiro de querer fazer / algo inovador de transcender a linguagem / e conseguir se comunicar”, “Epifania”). O poeta elege uma estética da força em vez de uma do belo, tudo faz para reactivar a sensibilidade, envolta em ritmo e vibração. Por isso, prefere desaprender a aprender (a vertigem da primeira é substancialmente superior à da segunda), entrando novamente no mundo incógnito (mesmo desejando por vezes apanhar solidez e vida harmoniosa com as mãos), talvez só assim alcance a tão procurada “Narrativa surrealista de acontecimentos reais”. E para começar, recusa os cortes semânticos das palavras, junta-as para ver o que dizem de novo: “e apareço a ti com olhosboca, ouvidosboca / e um coraçãoestômago” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Arquitetura de Percepção 2

[…]

O mundo incógnito constrói-se

através das insignificâncias

Eu desaprendi

a ser tantos

Ela aprendeu-me pela prática.

Mas o excesso cansa, conspurca, Victor Prado tem a noção exacta dos elementos linguísticos necessários aos jogos de sentido que quer compor, quase não há palavras ou sílabas a mais, a sintaxe é sóbria e respeita a oralidade, o livro tem a amplitude certa, mesmo quando por momentos atinge a incandescência. Compreende-se, pois, que diga:

 Caleidoscópio

[…]

A moça no jornal diz tantas

palavras desnecessárias

que me parece pornografia.

[…]

Leia-se também a magnífica dança de equívocos, provocada pela surdez e outras barreiras comunicacionais, no poema “Visita”, onde múltiplos significados bailam a partir do capricho soberano de cada subjectividade, de cada sujeito evanescente por falta de exterior (blindar o íntimo chama a loucura).

Victor Prado assegura uma tensão criativa entre o exterior e o interior, ora analisando, ora reflectindo. E olhando-se para fora com os demónios do interior acordados baralha-se a geometria da identidade, já que tudo é fundamentalmente pulsional, ondas de forças fulgurantes:

Precipitação

[…]

Os pássaros fizeram ninhos nos prédios

de frente e sempre há um gosto salgado

quando engulo minha saliva.

Aprecia-se o paradoxo vital (“Às salinas é inevitável / que se formem para / estancar feridas.”), porque o amor e o desejo, talvez menos deleuziano do que pretende Carla Carbatti (óptima prefaciadora) explodem, apesar de confinados em possíveis já destinados, aqui, contra outras visões suas, Victor Prado afirma-se “unipolar”.

Confissão

[…]

meu mundo não é globalizado

ele é unipolar.

e curtas infinitas são as estradas todas que levam a você

[…]

No mesmo lugar, fala dessa eterna laceração que o amor, e a falta dele, induz nos pobres implorantes que se querem unir, com o exclusivo de uma força brusca e incontrolável, frustrados pelo poder da gravitação universal:

[…]

desmantela-me e esfumaceia as coisas

teu estado ausente.

 

sou resquício de algo que era.

sem ti, rapidamente, me implodo.

Por isso, diz esse apaixonado que julgamos ser Victor Prado: “Quero-te.” Recusando os códigos de pontuação que enfatizam palavras para preservar a ignorância sobre se este querer é tão amplo que tudo fica suspenso à espera de uma resposta, ou se é já a última etapa de um desejo derrotado pela indiferença do objecto amado. Entramos, pois, no trágico civilizado, onde ninguém morre por interromper, ou ser interrompido, a linha que vai da Terra ao Céu, do Eu ao Tu, do Dentro ao Fora, hoje o trágico só baralha a velha cisão entre bem e mal. Este “Quero-te” é uma descarga de consciência, uma catarse a priori, impossível de levar à cena, mas não para espectadores, esgota-se em si mesmo, uma autofagia em lume brando. Isto porque “a vida não é mais do que poderia ser.”

Ao mesmo tempo, Victor Prado cambaleia e dá um rim (meia esperança de vida, note-se) por visões assentes nas palavras “vertigem”, “inquietação”, “profusão”, “heresia”, “abertura”, “choque”, “acaso”, “grito”... porque, di-lo logo a seguir em “Profusão de Cores”, por vezes “os amores são reais / e o corpo não está submerso / dentro de si mesmo / e essas vidas podem ser vividas / sem medo da Inquisição”, isto leva a que “a boca perde o medo de falar / os olhos de olhar / o peito de bater / a cabeça de pensar”. Multiplicidade selvagem, indomável, que cura aquilo que a sensatez e o medo tinham lenta e suavemente apodrecido, para que haja “encontros” entre “Pontos vagos / desconexos”. Daí a vontade de partir e recomeçar:

Domingo

[…]

De deixar a fila

Sair do mercado

            De recomeçar tudo

            em outro lugar

            em outro tempo.

de novo.

Mesmo quando “o destino da folha é o chão” (“Augusto”).

Há uma delicada atenção ao tricô da vida quotidiana, gestos insignificantes cheios de biografia, completos, mesmo que banais. Talvez não seja uma “beleza líquida”, mas têm a força de serem o que são. Trata-se de infiltrar a poesia com todo o tipo de pulsões do dia-a-dia, sem conjurar nada: “Não há como ajudar /alguém a carregar / uma metáfora viva / que resida em seu sangue.” (“Caleidoscópio”) Victor Prado transforma facilmente sensações banais em sensações poéticas.

Domingo 2

[…]

O senhor pesa suas batatas

            e vai embora

            (a fila aumenta)

Eu sou o próximo.

Mesmo se ela que o “olhou com olhos d’água / por um ínfimo de eternidade” lhe diz, depois de aguentar as investidas de um Casanova inoportuno, “Prefiro sonhos a concreto.” (lembramo-nos de Bernardo Soares, dos seus sonhos mais completos do que a realidade). Mas, claro, o “mercado” é eficiente, “Ele está pouco se fodendo / pros teus olhos castanhos, / menina.”

Por tudo perpassa o tempo (em todas as fissuras e continuidades do espaço), esse velho desmancha prazeres, tão necessário quanto escusado. Podemos viver a vida a arranjar calços para todas as peças assimétricas, querendo nivelar até à perfeição o que prefere dissensos e outras guerrilhas, mas:

Travessa

[…]

Tu tens alimentado um monstro:

            o tempo.

E ele engolirá o teu clamor

e a todos nós, no mais inoportuno

dos momentos.

Victor Prado convoca também uma geopolítica poética, forma de denunciar injustiças, presentes desde logo nos discursos mais escorreitos e “sérios”. Será uma poesia engajada? Pode a arte maior da palavra curar as intoxicações do mundo? Pode um “Abraço ao Terror” substituir o “odiar quem odeia” (velha dialéctica estéril), envolver de bons afectos e ritos antigos quem se extremou tanto que quer voar despedaçadamente até ao transcendente mortífero? Sabendo-se que é preciso viver as derrotas como um privilégio irrepetível, o autor afasta com as mãos em sangue “esses bruscos sopros / do descontentamento” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Os leitores devem mastigar e engolir os poemas, é porventura no estômago que melhor se faz uma hermenêutica adequada à escrita de Victor Prado. Como descodifica os sistemas-língua dominantes, não se espere poder caçar facilmente o sentido com os gestos gastos da leitura compreensiva, “A construção dos significados / dos / sentidos /azul e / eles / nada além / de reflexos” (“Não-Sei-Onde 3”). E há muitas palavras indigestas, algumas provocam vómitos, aliás o poeta também se vê compelido a essa expulsão das entranhas, mais radical ainda, já que ele se quer vomitar a si próprio:

Mal-Estar 2

Eu quero vomitar-me

            vomitar-te de mim

            vomitar tudo de mim

[…]

Tanto mais que “Nada disso é teórico e é difícil não se engasgar.” (“Constante”). E mesmo o leitor Victor Prado, quando se põe em modo autofágico diz: “Não gosto nem de reler meus textos; Bate uma / vontade de rasgar a folha” (“Do cansaço I”).

“Não consigo alcançar o silêncio” (“Do cansaço II”), refere o poeta, como se procurasse a linguagem adâmica, quase não-linguagem, no preciso momento do acordar linguístico, primeiro movimento para a formação de fonemas e grafemas, desenho inicial do pré-verbal que descreve tudo sem se fragmentar ainda nas particularidades linguísticas, o livro do mundo inteiro numa arqui-escritura sem identidade, a plenitude do sentido. Trata-se de enunciar quase fora da enunciação, sem mediações, comunicação directa, não como em Alberto Caeiro entre o humano e a natureza, mas entre o poeta e a esplendor das coisas ainda incodificadas, sem cultura. Noutros casos, uma rede subterrânea cria ligações significativas capazes de constituir um discurso poético perfeitamente inteligível. É também por isso, creio, que Victor Prado nos confessa a sua dificuldade em escrever: “Não consigo escrever. / Não mais como / antes. Como eu costumava fazer.” (“Do cansaço I”). Esta revelação negativa, inscrita mais ou menos sanguinamente em todos os poetas, assinala que a quantidade pletórica de palavras criou uma cacofonia insuperável, o uso despudorado da linguagem fê-la funcionar ao contrário. O esclarecimento só pode agora estar no silêncio.

Apesar disto, Victor Prado é um artífice das palavras, da sua forja saem exemplares únicos, belos, mesmo quando foram fabricados para distorcer o apolíneo, em geral criteriosamente precisos, apesar da sua força ampla e destemida de esboços livres. Ser forjador de palavras responsabiliza-o por amar um exército de leitores, que ele não quer submissos. É isso que se cumpre exemplarmente em Bastardo

António Marinheiro

António Marinheiro sempre fôra António, mas não consta que em momento algum houvesse sido marinheiro. Assim era conhecido e já nem o próprio se recordava de onde saíra tal epíteto. Gostava de mergulhar no mar de quando em vez, nem sequer muitas vezes, de sentir o corpo envolto em água fria, resistir ao esmagamento que ela provocava e regressar são e salvo à tona como um verdadeiro herói. E isto foi o máximo de contacto que manteve com o mar. Também numa ou noutra ocasião cruzou o rio de cacilheiro mas enjoou em todas elas e de nenhuma guardou boa lembrança. Contudo, gostava de ser tratado assim, António o Marinheiro.

As manhãs, passava-as tentando recordar as façanhas da infância e juventude, mas nada havia para recordar e portanto criava façanhas na sua cabeça, façanhas medonhas, por vezes, de tão inventadas, sendo que há hora do almoço já o seu orgulho transbordava do corpo de tão imenso. A fraca figura ajudava a transbordar mais rapidamente.

Num dia de Maio anormalmente chuvoso, decidira comer uma refeição decente pois recordava-se do prazer que o havia inundado das poucas vezes em que isso sucedera. Pensou no restaurante do velho amigo Alberto que, em certa ocasião, não demasiado longínqua, aparentemente fôra simpático para si: além duma boa refeição ainda aproveitou um casaco um pouco gasto e de mangas demasiado curtas, mas que em si assentava que era um primor. Só precisava agora de recuperar a coragem de outrora já que tudo o resto havia de sobra, incluindo a fome. Arrastou os pés até à porta do restaurante cujo nome “A Caravela” lhe soava a ironia, deteve-se alguns instantes até que a dita coragem o pegou pela mão e o fez entrar. O ruído era muito, não que o da rua a que estava habituado fosse menor, mas ali estava mais concentrado e distraía-o do seu propósito. As mesas estavam quase todas ocupadas, e eram imensas, apenas uma situada ao fundo da sala junto a uma das janelas se encontrava vazia. Os empregados moviam-se de uma tal maneira urgente e disparatada que acabava por se tornar divertido observá-los.

Ah!, Alberto acabava de sair da copa em tom apressado. António Marinheiro tentou fazer-se notar levantando a mão e agitando-a no ar freneticamente, mas acabou por não ser visto apesar de Alberto, segundo lhe pareceu, ter olhado para si momentaneamente, foi essa a sensação com que ficou. Ao invés, dirigiu-se a dois cavalheiros que haviam entrado logo a seguir. Cumprimentou-os com reverência e sentou-os na mesa vazia junto à janela. Foi uma decisão muito sensata e compreensível, pensou, pois os fatos que vestiam eram realmente bonitos e limpos. Não haver mais lugares sentados não foi caso para o impedir de voltar a levantar mão na direcção do amigo Alberto e acená-la mais uma vez, mas a convicção era de facto inferior. Lá se agitava no ar a sua mãozinha encardida mas não havia maneira de ser visto até que acabou por desistir. Baixou-a pesarosamente e foi quando um dos empregados, pelo menos vestia-se como um empregado, o empurrou porta fora com maus modos.

António o Marinheiro ficou sem saber como agir. Já não chovia; o sol reinava agora num céu completo de azul como se as nuvens se houvessem esgotado. Errou algum tempo pela cidade até que uma forte dor o obrigou a sentar-se no chão encostado à parede dum prédio. Colocou as mãos sobre o peito que subia e descia cada vez mais pesada e dolorosamente. O sol aquecia-lhe o estreito rosto moreno. Nos seus últimos instantes recordou-se sorrindo das alegrias de infância, assim como das façanhas de juventude, ainda que não houvesse nenhumas para recordar.