“Trabalho de Casa” de Nuno Júdice

In Memoriam Nuno Júdice (1949-2024)

O primeiro poema de Nuno Júdice que me lembro de ter lido na vida chama-se “Trabalho de Casa” e estava incluído na antologia Século de Ouro: antologia crítica de poesia portuguesa do século XX, organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e publicada em 2002, por uma editora que já não existe, a Cotovia. Eu tinha dezasseis anos e estava no liceu, e esse livro foi-me oferecido por uma amiga que recordo com um eterno capacete de mota debaixo de braço, de jeans sempre rasgados num joelho. “Trabalho de Casa” é um poema que pertence ao livro A Fonte da Vida (1997), foi escolhido por Margarida Braga Neves para integrar a antologia e vem acompanhado de um comentário desta estudiosa. O poema começa com a interrogação de uma imagem da memória, a do degelo de rios, mas onde, talvez um pouco inesperadamente mas sem dúvida propositadamente, nunca se pronuncia a palavra primavera até chegarmos ao penúltimo verso. Vale a pena transcrever o poema:

O que faço na memória de um degelo de rios, quando
as águas caem sobre as águas, sob a espuma redundante
de ideias brancas? Aqui me afundo até ao próprio
fundo de mim próprio, aqui onde os gestos humanos
da despedida e do amor não têm outro sentido
além do que nasce das próprias águas: efémeros,
como o tempo, e como o tempo presos ao que, cada um de nós,
ignora do outro. Acendo cigarros nos cigarros,
respirando o fumo húmido das origens, vigiando
a transparência que se desfaz no intervalo das folhas,
quando o vento as empurra para a estrada, pergunto
de onde vem a minha saudade de ti, e até onde
vai o meu desejo de te ouvir, de novo, à minha frente,
enquanto as horas passam como se não tivessem de passar,
e os teus lábios bebem todo o tempo da minha vida. Como
se o desejo não se esgotasse, também ele, como
estas águas que acabam em cada instante em que se renovam,
trazendo as chuvas eternas do norte para dentro de poços
sem fundo, até ao fundo dos lagos mais subterrâneos,
puxando com a sua negra densidade os meus
impulsos de treva: cama obscura para onde desço
quando adormeço. Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,
puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio
se transforma em sílaba - a sílaba inicial
do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as
origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,
percorrida pela única percepção inútil: a da vida
que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra
abstracta do horizonte, a que nos deixou sem voz quando
as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,
gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias
que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,
para que a terra viva através de nós
uma existência puramente interior, despida
do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos
no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e
abraçamo-nos com o rumor de primaveras clandestinas,
com o inverno nos olhos.

Não sei bem se há vinte anos, quando li este poema pela primeira vez, me terá parecido tão evidente a linha de tensão que se vai desenhando à medida que o poema transcorre, como de resto explica Margarida Braga Neves no comentário que acompanha o texto em Século de Ouro, de um tu, para um eu, para um nós, para desaguar, como não podem desaguar os rios, numa espécie de paradoxo temporal onde se insinua uma tensão entre o eu que fala e o tu a quem ele se dirige: circularmente, num rumor (numa memória?) de primaveras clandestinas que é esbatido dissonantemente (no sentido em que o inverno é sucedido e não precedido pela primavera, que é a estação marcada no degelo mencionado no início do poema), pelo inverno estampado nos olhos do par que se abraça no final. Este rumor clandestino de primaveras faz qualquer coisa à presença do inverno nos olhos, coloca o significado do gesto de dois amantes que se abraçam, “no mais longínquo dos quartos,” (no lugar mais protegido do rumor do mundo) entre duas estações e não numa só em definitivo, a da memória e a presente – uma tensão que terá qualquer coisa a ver com a ambiguidade do amor (mas sobretudo com a da duração da vida), tornado ambíguo se por mais nada justamente pela condição inexorável do inverno enquanto símbolo da morte. Estou em crer que num poema cuja paisagem semântica é a do afundamento e da profundidade há, ao mesmo tempo, nesta contradição de amantes que simbolizam a primavera com o inverno nos olhos, qualquer coisa de muito vital, de muito importante não tanto para a progressão do poema, mas enquanto pequena representação de uma experiência de vida, cifrada na presença do rio, metáfora de um percurso de vida que corre, a do amor enquanto forma de resistência e fonte de significado. De resto, nesse livro de Nuno Júdice, A Fonte da Vida, é em parte uma fonte de palavras, linhas de sentido vistas e revisitadas, bastantes vezes em face da morte.

Digamos, para começar, que há duas notas discordantes que parecem ameaçar a possibilidade de harmonia neste poema e que são vitais para a narrativa que nele se desenrola. Essa narrativa é sobre espera, encontro, o significado da presença de amantes numa paisagem e diante um do outro. Além disso, obliquamente, o poema é sobre um escrutínio do que significaria a ausência desse encontro na trajectória de uma vida, o que tem uma correspondência com o movimento de afundamento do narrador. Se tivéssemos de perguntar que espécie de conhecimento encerra este poema poderíamos talvez dizer: ele sugere ao leitor que correspondência e harmonia não se equivalem. Como, então?  

Uma das notas discordantes que eu julgo haver neste poema é aquela que existe nesta contradição de um abraço que carrega consigo o rumor da primavera, que, rumor que seja, resiste em face do inverno, que pode ser aqui entendido, convencionalmente, como uma estação final. A outra nota discordante é a que sustenta a antecipação do encontro e escuta-se na voz do “eu” que fala. Chamo-a discordante porque ela parece resistir e iludir a harmonia convencional dos tropos poéticos que ela própria evoca (o amor, o fim do inverno, a chegada da primavera). Por exemplo, não há na sequência da observação deste degelo uma réstia sequer do tipo de antecipação luminosa que é descrita por Longo em Dáfnis e Cloe, esse romance da antiguidade que é a celebração máxima de um primeiro amor em estado de primavera absoluto em que lemos acerca da espera pela chegada dessa estação:

But Chloe and Daphnis, remembering the pleasures they had left behind them, their kisses and embraces and meals together, passed sleepless nights and miserable days, and looked forward to the spring as to a resurrection from death. 

Daphnis and Chloe, Tradução de Paul Turner, Penguin Books, 1968, pp.70-71.

Dáfnis e Cloe são, no romance de Longo, muito jovens, dois pastores adolescentes a quem tudo acontece pela primeira vez. Isto faz-me pensar que a estação do tempo presente do poema talvez não seja necessariamente a primavera (o degelo pode ocorrer ainda no inverno), mas a sua memória e uma memória revista, pelo menos até ao momento em que o “tu” encontra o “eu”, com ambivalência. Pergunto-me que versos do poema de Nuno Júdice terão segurado a minha imaginação adolescente de quem não ia morrer nunca, e, portanto, não podia bem entender este timbre de inverno no final de um poema que começa na evocação de um degelo. É difícil de reconstituir isso ao certo, mas talvez tenham sido aqueles que me parecem ser ainda hoje as dobradiças da breve (não confundir com pequena) história que aqui se desenrola, os momentos onde se fixam os seus pontos de viragem. São aqueles versos que mais obviamente introduzem instabilidades na paisagem do poema: “pergunto/ de onde vem a minha saudade de ti;” “acendo cigarros nos cigarros,” “até ao fundo dos lagos mais subterrâneos/ puxando com a sua negra densidade os meus/ impulsos de treva.” Estes últimos versos, com qualquer coisa de dionisíaco, estão ligados ao movimento de afundamento que o “eu” descreve na primeira parte do poema e que é interrompido pelos “braços de raiz aérea,” do “tu” que o puxa “para esse cimo de montanha,” que, nota Margarida Braga Neves no seu comentário, é o “lugar de energia e criação”. Mas é o movimento do afundamento que me importa aqui, que começa nos primeiros versos, se adensa com as chuvas eternas do norte, que caem dentro de poços sem fundo, ligados a lagos subterrâneos, finalmente metamorfoseados na cama obscura para o onde o “eu” desce para adormecer. É desse ponto mais fundo de todos, mais subterrâneo, que o “tu” resgata o “eu”. Este afundamento até ao ponto de maior profundidade parece-me já inevitável naquele auto-retrato do narrador, acendendo cigarros nos cigarros. O gelo que imobilizara os rios mantivera, afinal, a estase da voz central do poema. A partir do momento em que o degelo começa, o seu afundamento é inevitável. Esta não é de todo uma primavera como a que é esperada pelos amantes adolescentes de Longo. Trará consigo uma destruição que parece irreversível como a passagem do tempo, até que braços de raízes aéreas parecem cortar esse movimento.

Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes não inclui uma entrada para primavera, mas inclui uma entrada para o verbo “s’abîmer,” “ser submergido,” “afundar-se” ou, como surge em tradução inglesa (de Richard Howard), “to be engulfed.” “S’âbimer” é o fragmento onde Roland Barthes descreve o movimento pendular e violento de um aspecto muito particular de um estado de paixão. O momento de hipnose em que o amante se sente submergido parece-me remeter (embora as referências de Barthes sejam Werther e Baudelaire) para um estado de oscilação entre os impulsos de Eros e Thanatos que foram discutidos por Freud em Para Além do Princípio do Prazer: num momento de sofrimento ou felicidade o amante é submergido por uma disforia desesperada, que pende para a aniquilação. A este estado sucede-se um profundo sentimento de deslocação, a impressão de não pertencer a lugar nenhum, nem sequer à morte.     

É, no entanto, a quarta secção desse fragmento que me importa aqui, porque é aquela em que se pensa sobre o elo entre a paixão e a morte. 

4. Amoureux de la mort? C’est trop dire d’une moitié; half in love with easeful death (Keats): la mort libérée du mourir. J’ai alors ce fantasme: une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps, une consomption presque immédiate, calculée pour que j’aie le temps de désouffrir sans avoir encore disparu. Je m’installe fugitivement dans une pensée fausse de la mort (fausse comme une clef faussée): je pense la mort à côté: je la pense selon une logique impensée, je dérive hors du couple fatal qui lie la mort et la vie en les opposant.

E é este último raciocínio que me importa particularmente: “eu flutuo para fora da parelha fatal que liga a vida à morte ao contrapô-las.” Esta afirmação parece-me particularmente relevante para ler os versos finais de “Trabalho de Casa.” Talvez o aspecto mais inesperado deste poema seja o modo como, não havendo aqui um caso de paixão, pace Keats, pela morte (a trajectória do narrador nega essa possibilidade), há, em vez disso, uma observação das relações de continuidade e (con)sequência entre vida e morte, num movimento de reconhecimento profundamente enraizado nos ciclos do mundo natural, numa tentativa de respirar em uníssono, num movimento que inclui até a melancolia da morte, com a passagem do tempo e com as transformações de paisagens interiores e exteriores. Daí lermos: E afastamo-nos, devagar, para que a terra viva através de nós/ uma existência puramente interior...

Plenitude é uma palavra difícil de escolher para falar sobre poemas sobre essa sagrada trindade da poesia lírica: a vida, o amor e a morte. Roland Barthes sabe disso, a sua solução é pensar que ao opor vida à morte há a possibilidade de uma deriva, um lento flutuar para fora do afundamento que quebra o ciclo. Eu penso que a mesma deriva existe neste poema de Nuno Júdice, mas penso que os termos em que ela é pensada são diferentes daqueles que propõe Barthes.

Talvez a quebra desse ciclo exista sob a forma do impulso vital pelo qual o narrador é puxado pelo “tu” para o cimo, mas o que é alterado por esse gesto permite incluir, mais tarde, a morte na ecologia dos gestos que afirmam uma vida. Esse impulso vital não me parece ser, então, exactamente da mesma ordem daquele fragmento de um poema de Baudelaire citado por Barthes na sua discussão de “s’abîmer”: “Un soir fait de rose et de bleu mystique,/Nous échangerons un éclair unique,/ Comme un long sanglot, tout chargé d'adieux.” (“Les Amants Morts,” Fleurs du Mal). 

Cheguemos então a uma das poucas coisas que verdadeiramente importa perguntar a um poema. A presença dos amantes, do amor, muda a terra, um pouco como lemos num verso do “Trabalho de Casa,” os amantes afastam-se para que “a terra viva,” ou, como sugere Baudelaire, poeta da decadência fértil, existe apenas como uma efémera fulguração, cuja expressão final é um longo soluço? Como amar, e sustentar, o significado do que é, por natureza, desesperado e efémero? E porquê chamar a isso “trabalho de casa”?  

Em 1913, o ano em que estreou em Paris A Sagração da Primavera de Stravinsky, Guillaume Appolinaire publicou em Alcools, um poema sobre um amor infeliz que tem alguns pontos de contacto com “Trabalho de Casa:” é um poema sobre dois amantes cuja ligação é vista em relação com o movimento inexorável do tempo e de um rio. Le Pont Mirabeau parece ser à superfície um poema mais convencional do que aquele que abre a colecção e o precede, Zone, um dos grandes poemas experimentais do modernismo. Escrito sem pontuação, alicerçado num estribilho que se repete por quatro vezes e que expressa a monotonia da estase do narrador, Vienne la nuit sonne l’heure/ Les jours s’en vont je demeure, o movimento do poema (ou a ausência dele) é em certo sentido o oposto do movimento quase perpétuo, e que só pára no abraço dos últimos versos, que atravessa “Trabalho de Casa.” O narrador de Le Pont Mirabeau mantém-se imóvel naquela que era, à data, uma das mais novas pontes de Paris, enquanto por baixo o Sena corre e ele se lembra de um tempo em que a alegria se sucedia sempre à dor e os braços dos amantes, naquela que é uma das imagens mais belas que conheço num poema sobre um amor infeliz, eram como pontes (Le pont de nos bras passe). À medida que o poema e o tempo avançam, o amor esvai-se como a água que corre, o que me lembra da imagem de Barthes, une hémorragie douce qui ne coulerait d’aucun point de mon corps. Mas não há aqui nada de doce, exceptuando talvez na memória distante de uma alegria que se tinha seguido sempre à dor, mencionada na primeira estrofe. Lê-se, a dada altura, numa rima que sugere a monotonia da imobilidade do narrador e ao mesmo tempo a violência que ele experimenta, “Comme la vie est lente/ Et comme l’Espérance est violente.” Os dias e as semanas passam, mas nem a vida nem o amor regressam, no entanto o “eu” mantém-se na paisagem até ao fim do poema da forma que é veiculada por este verbo difícil de traduzir, “demeure,” que tanto quer dizer “eu permaneço” como “eu habito.” A oposição entre a figura humana nesta paisagem e o correr do tempo e o fluir do rio é, como a esperança, violenta. O narrador reconhece a necessidade de movimento, mas não se move. Le Pont Mirabeau é um lugar de akrasia. Esta imobilidade pára o tempo do narrador e é uma prefiguração da imobilidade da morte, também no sentido em que exclui a possibilidade de outros movimentos, da formação de novos significados. Este amor que morre mantém-se, pela imobilidade do narrador, fixo nesta condição fantasmagórica, nem parte do mundo dos mortos nem dos vivos. 

Este estilhaçamento da possibilidade da formação de novos sentidos ou significados tem, acidentalmente, outro elo, não exactamente poético, com a ponte Mirabeau. Em 1970, Paul Celan não vivia muito longe desta ponte, no número 6 da Avenida Émile Zola, e é desta ponte que ele se suicida numa semana chuvosa do final de Abril de 1970.  Há uma presença prolífica de rios na poesia de Celan, mas o poema sobre um rio que me importa aqui é um onde a possibilidade de sentidos é profundamente mutilada. Paul Celan escreveu em 1963 um poema cuja paisagem partilha, pelo menos parcialmente, uma ressonância de significados que são evocados pela descrição, a meio de “Trabalho de Casa,” dos poços sem fundo onde caem as chuvas do norte. No brevíssimo poema In den flüssen, Nos Rios, Celan fala dos rios que estão a norte do futuro:

In den Flüssen nördlich der Zukunft
werf ich das Netz aus, das du
zögernd beschwerst
mit von Steinen geschriebenen
Schatten.

Comentadores de Celan, como Lefebvre e Joris, notam que o norte em Celan é associado ao gelo e à neve e, assim, a paisagens de desolação e morte. Se, como sugere Joris, esta imagem está relacionada com o abuso de certas mitologias nórdicas feitas pelos Nazis, ela remete para um universo de nacionalismo, propaganda e campos de extermínio. É possível que haja nesta imagem dos rios a norte do futuro um eco de uma ideia equivocada, mas bastante disseminada, que normalmente temos sobre o modo como os rios fluem, de norte para sul (os rios, na verdade, correm em todas as direcções).

O que é que acontece se for o rio a morrer? 

No fim do verão de 2021 um amigo meu quis mostrar à sua companheira o rio que corria perto de uma das aldeias onde ele costumava passar os verões da sua infância, uma pequena povoação perto do Monte Pélion, onde na mitologia homérica o centauro Quíron educara Aquiles, entre outras coisas na arte da medicina e da música, uma história que é contada por Píndaro, numa das suas Odes (a terceira ode nemeia). No calor ainda inclemente do princípio de Setembro demos voltas e voltas na floresta que rodeia a montanha sem conseguir escutar sequer o mais remoto rumor do curso desse rio. Escutávamos apenas de longe em longe os distintos guizos das cabras, cada um com o seu som diferente, além de nós e das cigarras a única coisa viva no sol violento da tarde. Até que caminhando em direcção à aldeia, Mélies, com a sua ponte férrea desenhada noutro século pelo pai de De Chiricho, tropeçámos no curso do rio, a sua irregular bacia branca de pedra exposta e completamente seca, com as marcas de erosão onde a água havia corrido, sujo de vegetação seca. Eu achei que a minha amiga, que é a poeta grega Tonia Tzirita Zacharatou, fosse escrever um poema sobre a morte do rio, mas o poema que a minha amiga escreveu não é sobre isso, ou não é exactamente sobre isso. É um poema que fala sobre a relação entre desaparecimento e memória, e sobre o papel da memória e da imaginação em face de um tipo de destruição inexorável. Como “Trabalho de Casa” e “Le Pont Mirabeau” é um poema que se interroga sobre o que fazer com uma memória, mas neste caso não uma memória própria, mas uma que nos é dada por alguém que amamos. 

Na penúltima estrofe lemos: “Querias/ mostrar-me/ uma coisa importante/ porque não é suficiente para ti/ descrever-me as coisas./ Querias que a visse contigo/ e ao amá-la, que te amasse/ mas é impossível/ lembrar/ onde o viste pela última vez.” No entanto, o reconhecimento desta impossibilidade, arrasta consigo o significado desta tentativa irrealizável de dar a alguém a imagem de um rio que desapareceu: “A promessa de uma parte de milagre/ entre séculos de folhas mortas de sicômoros/ era a tua maneira de me dar uma história.../ e, no entanto, acabo a guardar, com um poema/ uma memória que não me pertence.”

O que é, ao certo, mudado quando um poema produz uma deslocação que parece impossível, digamos, preservar um rumor de primavera em face de um inverno inevitável ou dar-nos a memória de um rio que nunca chegaremos a ver? Não sei se é ao certo uma metamorfose, aquilo que no nosso entendimento é mudado quase até à ordem da revelação, aquilo que pede de nós o cuidado da preservação (de um rio, do afastamento de um afogamento para lá do mais interior dos quartos), ou um trespasse, aquele modo muito particular de significação de um poema verdadeiro que nos atravessa completamente para nos deixar num lugar onde não estávamos e aonde talvez nunca chegássemos se não nos tivéssemos encontrado com ele. O mesmo sucede com “Trabalho de Casa.” A conclusão não lógica deste ensaio, em face destes poemas, talvez seja dizer que o que nos afasta da morte não é o tempo que ainda temos para viver, essa ilusão por vezes equivocada de que existe para nós um curso regular de rio, que de resto não podemos nunca saber até onde se prolongará, mas antes a alegria, o reconhecimento dos outros, a imaginação que determina a tessitura de um poema.  

CAMINHAR PARA DELFOS

Ruínas do Templo de apolo em Delfos

Há um poema datado de Maio de 1970 que Sophia incluiu em Dual onde se lê:  

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro 

Este poema é parte do ciclo que abre o livro e é dominado pela figura de Antínoo, isto é, pela estátua de Antínoo que ainda hoje se pode ver no museu de Delfos. Da primeira vez que vi a estátua de Antínoo em Delfos não pensei em Sophia, de todo. Acho, no entanto, em retrospectiva, que o que experimentei ao ver essa estátua talvez tenha mais a ver com o sentimento que o soldado inglês Norman Lewis descreveu, no livro Nápoles ’44, com mais simplicidade e menos metafísica do que Sophia ao avistar os três monumentais templos de Paestum, à data do seu desembarque, em 1944, com as tropas aliadas na baía de Nápoles. A meio da descrição do terror de desembarcar em Itália, debaixo de fogo inimigo, Norman Lewis diz o seguinte:

Norman Lewis

À medida que o sol começou a descer esplendidamente sobre o mar nas nossas costas caminhámos aleatoriamente por um bosque cheio de pássaros e, de súbito, demos por nós nos limites desse bosque. Olhámos e no espaço aberto diante dos nossos olhos havia uma cena de um encanto que não é deste mundo. À distância de alguns metros podíamos ver, alinhados, os três perfeitos templos de Paestum, cor-de-rosa e cintilando gloriosamente nos últimos raios de sol. Chegou como uma iluminação, uma das grandes experiências da vida.

Quando subimos pela encosta das ruínas em Delfos vai-se ganhando uma perspectiva sobre o vale que, sempre achei, tem qualquer coisa a ver com o modo como a poesia funciona, ou pelo menos com o modo como ela para mim funciona. Há qualquer coisa de uma lenta revelação que confina com o reconhecimento de uma geografia muito particular, e, ao mesmo tempo, a alegria de a ter entendido, de ter sido, ainda que efemeramente, parte dela, recompensa suficiente mesmo quando isso nada tem que ver com promessas de felicidade. Os lugares dos dois santuários de Apolo na Grécia, Delos e Delfos, são, com Paestum, de todas as ruínas do mundo antigo em que estive, aquelas que mais amo. Apolo não é, no entanto, para mim, um deus benigno e reconheço nele qualquer coisa de uma força caótica e dionisíaca, é o deus que traz a cura, mas na Ilíada é também ele o responsável pela peste que castiga o exército grego no início do poema, porque é um seu sacerdote que Agamémnon ofende. Há depois o dom envenenado da profecia, com que ele aflige Cassandra, e a sua própria aflição violenta e desastrada, perante o terror de Dafne ao tentar fugir-lhe e de como quando ele lhe toca ela se transforma em loureiro, aquele momento que se vê agora imortalizado na estátua de Bernini em Galleria Borghese. O rosto de Apolo, tem, de resto, alcances inesperados. Da última vez que um homem pisou a lua, os americanos estamparam a efígie de Apolo Belvedere na insígnia da missão Apollo XVII, ao lado da águia americana e de alguns planetas, para significar a ambição humana de chegar a outros mundos. Há qualquer coisa na história do nascimento de Apolo, tal como contada no Hino Homérico a Apolo, que o coloca fora da escala humana. Sempre me pareceu o deus mais lírico e menos humano de todos, a começar pelo facto de que a terra não o quer. Leto erra de ilha em ilha, já afligida pelas dores do parto, e todas as ilhas se recusam a recebê-la, porque têm medo do deus mesmo antes de ele nascer. É, justamente, nesses termos que Delos se queixa a Leto, quando ela lhe implora que lhe permita dar à luz no seu solo. Delos, que se tornaria, por uma enorme extensão de tempo até à época romana, um dos santuários mais prósperos da antiguidade, invoca o terror que sente de que o deus a calque com os pés mal nasça e a lance para o fundo do mar, onde os polvos e os peixes fariam dela sua casa. Desesperada a deusa persuade a ilha, prometendo-lhe que Apolo teria para sempre ali o seu templo, e que isso garantiria a sua fama e a sua opulência entre as outras ilhas. O último argumento de Leto, o argumento com que ela convence Delos, é pragmático e bastante pouco lisonjeiro. A deusa recorda à ilha a pobreza aflitiva do seu solo, o quanto ela é inóspita e inabitável, o quanto ninguém a quer, o que continua a ser verdade hoje como no século VII ou VI a.C., quando este hino foi composto. Ainda hoje, quase nunca ninguém dorme em Delos. A ilha, com as suas ruínas que atravessam diferentes séculos, que vão do período em que Naxos floresceu como potência das Cíclades até quase à decadência do império romano, é de uma esterilidade austera, pontuada de promontórios e ervas daninhas que se estendem por um solo pedregoso. É também profundamente caminhável e é possível percorrê-la a pé num só dia, qualquer coisa nela faz pensar na beleza violenta de Apolo, torna lógico o pensamento de que, quase imediatamente depois de nascer, o deus parte de Delos para matar Píton e instituir o seu outro santuário, em Delfos, de onde as pessoas receberiam dele esse dom ambíguo e angustiante da profecia, que não pertence ao mundo de um entendimento aberto, essas frases que uma sibila proferia em delírio, sondando em quem a escutava a perfeita intersecção entre uma profunda angústia e uma esperança irracional. Por alguma coincidência difícil de explicar, o Hino Homérico a Apolo é o único texto homérico que encerra uma descrição vagamente física e biográfica da voz a que chamamos Homero. Pedindo a um grupo de raparigas que não se esqueçam de mencionar a quem por elas passasse quem era o melhor aedo que elas alguma vez tinham escutado, ele pede-lhes que elas digam que é ele, o cantor cego da ilha de Quios. É para mim um momento de uma intensa emoção, esse breve acidente do registo da voz muito remota de um poeta muito arcaico, que foi passando de sopro em sopro até chegar a nós. O motivo pelo qual eu amo os clássicos, penso, tem menos que ver com a sua eventual sabedoria, amo-os às vezes mais nos seus erros e nos seus acidentes, nas suas intricadas encruzilhadas cómicas, como aquelas que vêm narradas por exemplo no Hino Homérico a Hermes, nas trocas entre Apolo e esse outro deus, bem diferente dele e para mim mais benigno, o motivo por que amo os clássicos, dizia, tem qualquer coisa a ver com o espanto perante esse cuidado de tentar cuidar e preservar essa memória de mortos muito longínquos. Os gregos, que se preocupavam tanto com a memória, apreciaram isso. Esse cuidado é uma das poucas coisas que está entre nós e a história da destruição que parece em nós por vezes obscenamente natural de escrever. E, já agora, também esse amor cego da destruição vem dos gregos, basta pensar na trajectória de Aquiles.

Delos

O que me leva de novo a Delfos. Da última vez que lá estive, há cerca de duas semanas, observei como as temperaturas se têm mantido tão altas que as folhas das árvores de folha caduca mal chegaram a mudar de cor. De alguma forma, a angústia da terra sente-se, respira connosco até no ar em Delfos. Haveria a perguntar o que é que a relação dos gregos antigos com Apolo, para eles ao mesmo tempo o deus da poesia e da profecia, nos diz da nossa relação com a linguagem e com o modo como ela pode construir ou destruir o mundo. Muito haveria a dizer sobre isso, eu queria apenas acrescentar que, pensando sobre Delfos e sobre a dádiva mais ambígua de Apolo, a da profecia, essa voz interior que vinha, para os gregos, de um lugar anterior à inteligência, me ocorre que ela na verdade servia, ou parece-me que servia, para pelo menos tentar rejeitar o lado absurdo do mundo, fixar na escuridão desesperada do que ignoramos, a rota de um caminho, a sua visão mais ou menos desajeitada. E que isso talvez fosse uma tentativa de não acrescentar mais absurdo ao mundo.

Da mesma forma que continuo sem poder dizer se o mundo é sagrado e tem um centro, e se esse centro será Delfos – talvez o mundo tenha vários centros, de que Delfos seja apenas um – posso, no entanto, confirmar que o complexo arqueológico continua a conter uma próspera família de gato cinzentos, de alucinantes olhos amarelos, da qual se distinguem claramente pelo menos três gerações. Porque são gatos de Delfos, pode deles ser dito, com a aprovação do deus, que há neles qualquer coisa de sibilino, oracular. Essa qualquer coisa de sibilino e oracular pode, ou não, apontar para alguns versos que Sophia escreveu, de resto num livro preocupado com as relações entre nomes e coisas, O nome das coisas, em que num poema intitulado “A forma justa” encontramos os seguintes versos. São talvez os meus versos favoritos de Sophia:

Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

sacerdotes de apolo em delfos, séc. XXI d.C.

Dois Templos

Não há luxo, nem opulência que ultrapasse a importância da primeira fase da vida, não há nada que satisfaça tanto como algo simples, que nos permita de alguma forma um vislumbre daquele tempo, algo que nos leve, por um momento, de volta, algo como o cheiro do musgo.

 

Ah a frescura

do musgo

em Ginkaku-ji.

 

Como uma verde geada

na cara a frescura

do musgo em Ginkaku-ji.

 

Por isso entre o Kinkaju-ji e o Ginkaku-ji, o que me tocou mais profundamente, foi o segundo. Apesar do dourado ter habitado durante anos a minha vontade adulta, uma ideia quase mítica, contruída em parte com a ajuda de Yukio Mishima, uma vontade quase erótica de lhe pôr os olhos em cima, como de possuir aquele corpo, que depois do alívio da consumação, se torna apenas em algo demasiado real, levando o desejo,

 

Tão grande o desejo

rapidamente

sucumbe à beleza.

 

Incendiar o desejo

dourado

que te queima.

 

preferir o que leva de volta às tardes passadas nas fragas a contruir casinhas com pedras de granito e paus de giesta, cobertas com musgo, ou à altura de fazer o presépio, os primeiros natais, com aquelas figurinhas de barro, quase brinquedos, mas com as suas sérias imperfeições, aquele cheiro, quase o cheiro da infância, que se trazia impregnado na jovem pele.

Por isso o ouro, ao qual reconheço o valor que me foi doutrinado, o magnetismo e a beleza que me atraem, perde para a humilde frescura do musgo que rodeia o templo prateado (Ginkaku-ji):

 

Entre ouro

ou prata

escolho o musgo.

 

 

Quioto, Novembro 2023

 

Anne Carson

Anne Carson

O percurso de Anne Carson enquanto escritora é bastante difícil de classificar. As designações mais óbvias poderiam descrevê-la como poeta, tradutora e ensaísta mas estas três práticas contagiam-se umas às outras mais ou menos constantemente. Por exemplo, em 2009, Anne Carson publicou uma tradução da Oresteia. A Oresteia, assim explicará qualquer estudante do primeiro ano de clássicas, é uma trilogia composta de três peças de Ésquilo (Agamémnon, Coéforas, Euménides). O Agamémnon narra a história do regresso do Rei Agamémnon de Tróia e da morte deste às mãos da sua mulher, Clitemnestra, depois de este ter morto a filha de ambos, Ifigénia, para propiciar os deuses e poder partir para Tróia. Coéforas narra o dilema e a decisão do filho de ambos, Orestes, de matar a mãe para expiar o homicídio do pai. Orestes é instigado a tomar esta decisão pela irmã, Electra. A última peça é um marco na história do teatro na Europa e na história da filosofia ocidental sobre a justiça, talvez ainda mais do que todas as outras. É sobre como Orestes é perseguido pelas Fúrias, divindades tresloucadas que o enlouquecem por causa do crime que ele cometeu e de como, em Atenas, ele é finalmente julgado segundo uma nova forma de justiça, no tribunal do Areópago, o que põe fim a um ciclo de violência ancestral que, de outra forma, se perpetuaria infinitamente. Tudo isto estaria certo, mas a peça de Anne Carson não é nada disto. Anne Carson desconstrói a Oresteia de Ésquilo, agrupando três peças que não estas exactamente: passamos do Agamémnon de Ésquilo para a Electra de Sófocles e daí para Orestes de Eurípides, cujo final opõe ao peso da justiça esquiliana (e à narração vagamente propagandística do mito fundador de um respeitável tribunal ateniense) uma acção tragicómica, preocupada com a mesquinhez humana e com a vingança, com muito humor negro e melodrama à mistura, numa das representações mais negativas de Helena de Tróia que a tradição clássica nos legou. A peça termina com o casamento de Orestes com Hermíone, filha de Helena. É só depois de casado com a prima que Orestes é enviado para Atenas para ser julgado.

Há nos clássicos uma intensidade e uma violência que de várias formas são profundamente próximas do estilo de Anne Carson. Em Grief Lessons, outro volume de traduções de tragédias gregas, desta vez dedicado à tradução de quatro tragédias de Eurípides, Anne Carson escreve a propósito de Eurípides:

 

Who was Euripides? The best short answer I’ve found to this question is in an essay by B.M.W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) said of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind from doing so.” Knox’s essay is called “Euripides: The poet as Prophet.”

 

E continua:

 

There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point. It breaks experiences open and they waste themselves, run through your fingers. Phrases don’t catch, theories don’t hold them, they have no use. It is a theatre of sacrifice in the true sense. Violence occurs; through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time; that’s all it is.

 

“There is in Euripides some kind of learning that is always at the boiling point...” e “through violence we are intimate with some characters onstage in an exorbitant way for a brief time…” Há qualquer coisa nesta frase que podia servir para descrever a inteligência de Anne Carson e a experiência de a ler. Pensamos, por exemplo, nas suas traduções dos fragmentos de Safo, a mais importante das poetas líricas gregas, intitulada If Not Winter onde, com um cuidado que relembra um pouco o cuidado mítico dos tradutores do Pentateuco em Alexandria, Carson traduz todos os fragmentos de Safo, enfatizando assim a nossa relação com a perda desses textos e expondo a paixão da nossa curiosidade pelo que é fragmentário, enquanto ao mesmo tempo somos envolvidos nas paixões fragmentárias de Safo. Este “some kind of learning that is always at the boiling point,” por outro lado, assoma no seu primeiro livro de ensaios, Eros the Bittersweet, o seu estudo das representações da fragmentação das emoções na literatura erótica da Grécia antiga.

Há depois livros que são alicerçados num dos traços mais vincados do estilo de Anne Carson, as ligações inusitadas, extremamente improváveis, que definem o seu pensamento crítico. Anne Carson é provavelmente a grande poeta comparatista do nosso tempo, se bem que esta etiqueta não descreve exactamente o seu método. Mas, The Economy of the Unlost, por exemplo, é um longo ensaio sobre a relação entre outro poeta lírico grego, Simónides de Ceos, o primeiro poeta a colocar um preço a um poema e a vendê-lo por dinheiro e não por outra coisa qualquer, e o poeta alemão Paul Celan, que, tão isolado no seu contexto como Simónides, teve de escrever poemas sobre coisas às quais é impossível colocar um preço. Penso que esta ideia de quanto vale um poema é uma obsessão de poetas de um modo geral, mas uma obsessão muito particular de Anne Carson, que, por vezes, nos seus livros, encontra expressão indirecta noutros contextos. O que vale um poema em face do suicídio de um irmão é uma das perguntas que pode parecer estruturar Nox, o livro que ela escreveu após a morte do irmão e sob a influência de um poema do poeta romano Catulo, um poema também ele escrito sobre a morte de um irmão, o chamado carmen 101.

Ou, para falar dos livros que a não edições tem traduzido e editado em Portugal, eles às vezes expandem a nossa percepção do que os géneros literários podem fazer para lá de quaisquer designações mais óbvias. Por exemplo, em teoria, Autobiografia do Vermelho, originalmente publicado em 1998, publicado pela primeira vez em Portugal em 2017, em tradução de Ricardo Marques e João Concha, é uma reescrita do mito de Gerião, mas é também algo que nunca antes tinha sido escrito, é um bildungsroman, um romance de formação, que é também a autobiografia de uma metáfora. Gerião é Gerião mas é também a metáfora de uma infância e adolescência de um artista, definidas pelo trauma e pela desadequação, pela auto-descoberta e pela auto-invenção. Gerião, a personagem e a metáfora, apesar do trauma, não se fecha, continua a procurar fora de si qualquer coisa que o traduza, apaixona-se, descobre-se parte de um triângulo amoroso, e regressa para uma sequela, red doc. Anne Carson chama a esta autobiografia um romance em verso.

Autobiografia do Vermelho, não edições, 2017

Alguma relação entre consequência, sequela e crise existe entre os outros dois livros que Anne Carson publicou e que eu traduzi para a não edições, A Beleza do Marido e Vidro, Ironia e Deus. A Beleza do Marido é o mais recente dos dois, foi publicado originalmente em 2001, enquanto Vidro, Ironia e Deus foi publicado pela primeira vez em 1995. A não publicou-os inversamente, A Beleza primeiro, em 2019, e Vidro, Ironia e Deus em 2021. Estas coisas confundem-se na cabeça dos leitores, mas A Beleza do Marido foi um dos primeiros livros de Anne Carson que li, durante um verão parcialmente passado no quarto de uma residência de estudantes que ficava nos arredores de Budapeste. Estava a dividir este quarto com uma jovem académica oriunda de Israel que encheu as minhas noites de um relato épico sobre a complicada linha de contactos a cultivar se queria ver os meus artigos publicados numa determinada revista da especialidade, um discurso cheio de confiança debaixo do qual se escondia a terrível precariedade e a competição muitas vezes amarga que são a condição da vida de jovens investigadores. Partilhava esse quarto e pensava constantemente em voltar a Oxford para desistir da tese de doutoramento que estava quase a acabar de escrever para escrever outra tese, o que na verdade acabou por acontecer. Dentro da minha mochila tinha viajado comigo de Inglaterra esse livro de Anne Carson, The Beauty of the Husband: a fictional essay in 29 tangos e eu costumava pôr um fim abrupto àquelas sessões gratuitas de aconselhamento profissional de alguém que, bem vistas as coisas, estava tão perdida como eu, dizendo que precisava de ir fazer um telefonema e ia lá para baixo, para o campo de basquetebol, ver os jogos e ler A Beleza do Marido. Eu estava nessa altura a vários anos de distância de começar a traduzir Anne Carson e de me cruzar com um famoso poeta norte-americano que tinha sido colega de Anne Carson na NYU e que, quando lhe contei que estava a traduzir este livro de Anne Carson, disse que quem lia o livro ficava com a impressão de que o marido era o único responsável por aquele divórcio. Noutra altura eu teria querido mesmo saber mais, mas não me interessou perguntar. Algures entre 2012, quando eu primeiro li A Beleza, e 2018, quando ouvi este comentário, a minha curiosidade febril acerca da biografia de Anne Carson tinha passado. Não há muito que se possa dizer sobre o grande trauma de um divórcio que seja particularmente original ou edificante quando o tom com que a conversa começa é normativo e aponta para questões de justiça retributiva. Nunca tinha pensado em A Beleza do Marido como um livro óbvio desse ponto de vista. O marido que aparece em A Beleza do Marido é certamente uma figura peculiar e tóxica, caracterizado como é pelas infidelidades recorrentes, pelas mentiras compulsivas e desnecessárias, pela fascinação com os jogos perigosos. Mas há qualquer coisa na natureza da mulher que é atraída por esse comportamento e que permanece inexplicada, o que talvez sugira uma natureza elusiva como a do marido. A ambiguidade do marido e a ambivalência da mulher, por outro lado, têm paralelos com o tipo de inteligência conjugal que se encontra na Odisseia, tornam-nos parte de uma longa tradição de literatura acerca de gente casada. Ao longo desses vinte e nove poemas talvez se reconstrua a linha de atracção, decepção, perda e, finalmente, resgate da beleza que podem sobreviver ao fim de uma relação. Pode-se então dizer que A Beleza do Marido é um livro que é um pouco como algumas das tragédias gregas que Anne Carson gosta de traduzir, é sobre expiação e veneno e sobre o veneno enquanto cura também. Desta forma, o livro evoca o lado inexplicável de certos laços que nos definem e da beleza que se agarra a esses laços, coisas que não se confinam puramente a uma lógica da tristeza – amantes, amigos, fragmentos de conversas, torradas, quartos de hotel, bolos de casamento, bagos de romãs, Tolstoi e Homero.

Vidro, Ironia e Deus, que acaba de ser publicado, é um dos livros mais estranhos de Anne Carson, embora pareça, em teoria, um dos mais convencionais. De todos os que aqui mencionei é aquele que em termos de classificação de género literário parece mais fácil de arrumar: cinco longos poemas e um ensaio. Mas os poemas são ensaísticos. Criam até o efeito estranho de subordinarem a uma dicção que muitas vezes parece convocar o tipo de estranheza que caracteriza a linguagem de um poeta difícil e caro a Anne Carson, Ésquilo, versos decididamente prosaicos, de onde qualquer musicalidade parece estar ausente. Este estilo de poesia ensaística gera cortes e elipses que se enchem de associações inusitadas, é fonte de drama e paródia, instaura muitas vezes o ritmo que se podia dizer que é o de alguém a pensar na própria música silenciosa do pensamento.

A Beleza do Marido, não edições, 2019

Vidro, Ironia e Deus é um livro que começa com a crónica de uma leitura obsessiva de O Monte dos Vendavais de Emily Brontë e que termina com um ensaio sobre o género do som ou, melhor dizendo, um ensaio sobre interpretações misóginas de certas vozes. Entre um texto e outro, muitas outras vozes se ouvem: a da narradora, a da mãe da narradora, a de Anne Brontë, a de Sócrates, a de Heitor, a de Deus, a de Isaías, a de uma mulher romana chamada Anna Xenia a quem morreu um filho. À medida que estas personagens se sucedem questiona-se o lado nocivo de sociedades estruturadas por convenções patriarcais, o que sabemos do passado, como reconhecemos os outros, como é que eles nos conhecem a nós, porque decidimos viver de determinadas maneiras, porque viajamos ou empreendemos longas caminhadas pelo gelo. Sentimos, à medida que lemos, que nos tornamos “…intimate with some characters… in an exorbitant way for a brief time…” Porquê essa exorbitância?, é uma pergunta que Anne Carson, que gosta de analisar primeiras causas aristotelicamente, poderia colocar. Não sei se existe uma resposta exacta a esta pergunta, mas no último parágrafo de Vidro, Ironia e Deus lê-se:

 

Ultimamente comecei a questionar a palavra grega sophrosyne. Interrogo-me sobre este conceito de auto-controlo e se realmente é, como acreditavam os gregos, uma resposta à maior parte das perguntas sobre bondade humana e dilemas de civilidade. Pergunto-me se não haverá outra ideia de ordem humana para lá da repressão, outra noção de virtude humana para lá do auto-controlo, outro tipo de eu humano que não um fundado na dissociação de interior e exterior. Ou, de facto, outra essência humana que não o eu.

 

Anne Carson, Vidro, Ironia e Deus, não edições, Lisboa, 2021, p.162 (tradução minha).

VIdro, Ironia e Deus, não edições, 2019

Pier Paolo Pasolini, "O ódio racial"

Pier Paolo Pasolini, capa do livro “Il caos” (Garzanti); fotografia: Archivio Angelo Palma

Pier Paolo Pasolini, capa do livro “Il caos” (Garzanti); fotografia: Archivio Angelo Palma

Tradução: João Coles

Em “Os cães do Sinai” (De Donato editores) Fortini faz, no corpo do seu discurso, pessoal e pouco límpido, sobre a guerra entre Israel e os árabes, uma observação: no futuro o racismo aumentará de intensidade e de frequência em vez de diminuir: e isto por causa da pressão de um poder, que sendo menos visível e pessoal, não será menos esmagador: pelo contrário, será de tal maneira esmagador a despedaçar e pulverizar a colectividade que constitui o tecido conectivo do processo de produção e consumo; tal pulverização da sociedade em tantas formas diferentes, igualmente oprimidas, fará precisamente aumentar o racismo, pois todas as pequenas partes separadas, nas quais será despedaçado o mundo esmagado, odiar-se-ão racialmente entre elas.

É um ódio racial difícil de imaginar.

É, em geral, difícil, mesmo agora, que vigora com tanto furor, e nós acabámos de sobreviver a isso, imaginar o que é o ódio racial. Este é, na verdade, constituído por muitos ódios raciais, diferentes e por vezes também contraditórios.

Há um primeiro nível histórico – onde permanece o popular – no qual o ódio racial é mágico: e, como tal, sobrevive em cada um de nós (que, nos nossos estratos profundos, permanecemos pré-históricos e populares). Este tipo de ódio racial é o único suficientemente verosímil de imaginar, e é também, de certa maneira, justificável, dado que precede a fase da razão.

As nossas “antipatias” por certos tipos de pessoas, o desconforto violento que nos dão certos “corpos”, são arquétipos de um determinado ódio racial, que experimentamos, seja mesmo de maneira defeituosa ou embrionária, e que portanto recai sob o domínio da nossa experiência.

Todo o restante quadro do ódio racial faz parte de um fundo social, que uma pessoa dotada do uso da razão tem dificuldade em acreditar que verdadeiramente exista. Neste momento histórico, parece-me que o ódio racial seja o ódio que experimenta um burguês perante um camponês: ou seja, o ódio que experimenta um homem integrado num tipo de civilização moderna e citadina contra um homem que representa um tipo precedente de civilização, que ainda ameaça a presença da actual: demonstrando fisicamente que o retrocesso é sempre possível (socialmente). Eis porque se odeia racialmente os negros, enquanto pobres, e os pobres, enquanto, inevitavelmente, diferentes de pele, sendo adidos aos velhos trabalhos que comportam necessariamente o ar livre e o sol (o efeito do sol na pele parece ter um valor decisivo no ódio racial de quem vive em casas civis, e, se trabalhar no campo, fá-lo enquanto patrão, ou industrialmente).

Negros, europeus do sul, bandidos sardos, árabes, andaluzes, etc.: têm todos em comum a culpa de ter os rostos queimados pelo sol do campo, pelo sol dos tempos antigos.

Porém, para voltarmos a Fortini, e à sua observação sobre a pulverização da sociedade graças ao poder e à multiplicação dos racismos, talvez, nos nossos dias – e precisamente nestes últimos dias – alguma coisa tenha caído antecipadamente no círculo da nossa experiência directa.

Verificou-se, efectivamente, em certos estratos que se consideravam muito bem estabilizados da sociedade, uma pulverização devida ao movimento subversivo dos estudantes: tratam-se de estratos muito peculiares: isto é, os estratos das elites intelectuais (como sabemos, extremamente sensíveis e vulneráveis).

A pressão exercida por um poder até àquele momento não só inexistente mas até mesmo inimaginável, o dos jovens, pulverizou estes estratos: e disto nasceu, de entre os vários fragmentos de tal pulverização, uma espécie de ódio racial recíproco.

Nasceu, enfim, uma divisão terrorista entre “justos” e “réprobos”: que não é apenas moral, e portanto perdeu todos os rituais e fair-play. Não, perante o “réprobo”, o justo sente uma antipatia física de tal maneira forte que, mesmo conhecendo-o há anos (e, até ao outro dia, pertenciam ao mesmo genérico círculo social com ideias políticas análogas), quase que sente uma espécie de repugnância; não lhe aperta a mão; evita-o; fica-lhe ao largo; começa a preparar-lhe uma espécie de clima de linchagem.

Viu-se isto, por exemplo, recentemente, no mundo literário (o pobre e decadente mundo literário italiano), pela ocasião dos Prémios: a pressão estudantil, derivada de um certo fascismo de esquerda, exerceu uma forte pressão (social e de consciência) sobre as elites culturais italianas, pulverizando-as e lançando-as no caos.

Cada pessoa encontrou-se (como que por acaso, ainda muito longe de um exaustivo exame de consciência) num fragmento à deriva deste caos: e experimentou um ódio inaudito, uma espécie de nojo físico, pelos seus adversários. Enfim, a pressão de um tipo de poder novo, sem importância decisiva, para já, para o “sistema”, mas assaz importante, pelo contrário, para as consciências, alargou o quadro do ódio racial para tipos de ódio racial novos.

A grande surpresa nisto tudo é que o poder “esmagador” não é o poder constituído. Creio, contudo, que o poder dos estudantes – tal como se instituiu mal-grado estes – se enquadre na problemática do poder tout court.

Os sociólogos até hoje haviam previsto para o futuro (nem podiam fazer outra coisa) somente dificuldades técnicas: vemos pelo contrário, através dos jovens, que as dificuldades do futuro não são de maneira alguma dificuldades técnicas, mas políticas.

Durante muitos anos fomos encantados pela sereia da técnica, seja como problema actual, seja como grande incógnita do futuro (problemas técnicos de dormir, de comer, de habitação, de ocupar os tempos livres, de usar os veículos, de fazer filhos, de envelhecer, etc. etc.), e acreditámos estupidamente que estes problemas técnicos se deviam resolver no âmbito da técnica.

A nova geração de jovens na casa dos vinte – que, nas nações “avançadas”, vive pela primeira vez, inteiramente, deste lado da bacia hidrográfica; vive, isto é, no nosso futuro – como primeiro acto quis demonstrar-nos que as soluções dos problemas técnicos são, também no futuro, políticas.

Os bons administradores que, atormentados no momento pelas oposições, se desafogavam felizes pensando no futuro como um campo puro de especialistas, ficaram a ver navios. E igualmente os intelectuais, que não esperavam que o seu pequeno poder fosse posto em causa tão cedo, e com tanta e inaudita má-educação e violência (eles, que imaginavam ser os novos jovens de vinte anos como tantos bons alunos, os melhores da turma, integrados, afáveis, eficientes, como deve ser). Mas não é por acaso que o primeiro aspecto com que os jovens se apresentam seja o aspecto do poder; que nasce de uma consciência agressiva dos próprios direitos.

E com isto pretendo dizer poder político, além de cultural, de consciência e de opinião: se não tivesse sido político, garantidamente a sua capacidade de “pressão” não teria sido tão violenta ao ponto de desencadear entre os seus pobres pais mais vulneráveis – os intelectuais – este furioso e feroz ódio recíproco de animais enjaulados.

“Tempo” n. 34 a. XXX, 20 de Agosto 1968

in Il caos, Garzanti


L'odio razziale

Nei "Cani del Sinai" (De Donato editore) Fortini fa, nel corpo del suo discorso, personale e non molto limpido, sulla guerra tra Israele e gli arabi, una osservazione: nel futuro il razzismo aumenterà di intensità e di frequenza, anziché diminuire: e ciò a causa della pressione di un potere, che essendo meno visibile e personale, non sarà però meno schiacciante: anzi, sarà così schiacciante, da frantumare e polverizzare la collettività che fa da tessuto connettivo al processo di produzione e consumo; tale polverizzazione della società in tante forme diverse, ugualmente oppresse, farà appunto moltiplicare il razzismo, perché tutte le piccole parti separate, in cui si frantumerà il mondo schiacciato, si odieranno razzialmente fra loro.

É un odio razziale difficile da immaginare.

É, in generale, difficile, anche adesso che vige con tanto furore, e noi ne siamo appena sopravvissuti, immaginare che cosa sia l'odio razziale. Esso è, in realtà, costituito da molti odi razziali, differenti e qualche volta anche contraddittori.

C'è un primo livello storico - che è rimasto quello popolare - in cui l'odio razziale è magico: e, come tale, sopravvive in ognuno di noi (che, nei nostri strati profondi, rimaniamo preistorici e popolari). Questo tipo di odio razziale è l'unico che sia abbastanza possibile immaginare, e che sia anche, in qualche modo, giustificabile, dato che precede la fase della ragione.

Le nostre "antipatie" per certi tipi di persone, il fastidio violento che ci danno certi "corpi", sono archetipi di un tale odio razziale, che proviamo, in modo sia pure monco o embrionale, e che cade quindi sotto il dominio della nostra esperienza.

Tutto il restante quadro dell'odio razziale fa parte di un fondo sociale, che una persona dotata dell'uso della ragione stenta a credere realmente esistente. In questo momento storico, mi sembra che l'odio razziale sia l'odio che prova un borghese verso un contadino: ossia l'odio che prova un uomo integrato in un tipo di civiltà moderna e cittadina, contro un uomo che rappresenta un tipo precedente di civiltà, che ancora minaccia la presenza dell'attuale: dimostrando fisicamente che un regresso è sempre possibile (socialmente). Ecco perché si odiano razzialmente i negri, in quanto poveri, e i poveri, in quanto, inevitabilmente, diversi di pelle, essendo addetti ad antichi lavori che comportano necessariamente l'aria aperta e il sole (l'effetto del sole sulla pelle sembra avere un valore decisivo nell'odio razziale di chi vive in case civili, e, se lavora la campagna, lo fa da padrone, o industrialmente).

Negri, sudeuropei, banditi sardi, arabi, andalusi, ecc...: hanno tutti in comune la colpa di avere i visi bruciati dal sole contadino, dal sole delle epoche antiche.

Ma, per tornare a Fortini, e alla sua osservazione sulla polverizzazione della società dovuta al potere e alla moltiplicazione dei razzismi, forse, nei nostri giorni - e proprio in questi ultimi giorni - qualcosa è anticipatamente caduto nel cerchio della nostra esperienza diretta.

Si è verificata, infatti, in certi strati che si ritenevano molto ben stabilizzati della società, una polverizzazione dovuta al movimento sovversivo degli studenti: si tratta di strati molto particolari: gli strati cioè delle élites intellettuali (si sa, estremamente sensibili e vulnerabili).

La pressione esercitata da un potere fino a quel punto non solo inesistente ma addirittura inimmaginabile, quello dei giovani, ha polverizzato questi strati: e ne è nata, nei vari frammenti di tale polverizzazione, una sorta di odio razziale reciproco.

É nata insomma una divisione terroristica tra "giusti" e "reprobi": che non è soltanto moralistica, e ha quindi perduto ogni rito e fair- play. No, verso il "reprobo", il giusto sente un'antipatia fisica così forte, che, benché magari suo conoscente da anni (e, fino al giorno prima, appartenente a una stessa generica cerchia sociale con analoghe idee politiche), sente quasi una sorta di repugnanza; non gli stringe la mano; lo evita; gli gira al largo; gli prepara intorno una specie di clima da linciaggio.

Lo si è visto, per esempio, recentemente, nel mondo letterario (il povero, squallido mondo letterario italiano), in occasione dei Premi: la pressione studentesca, mutuata da un certo fascismo di sinistra, ha esercitato una forte pressione (sociale e di coscienza) sulle élites culturali italiane, polverizzandole e gettandole nel caos.

Ciascuno si è trovato (come per caso, ben lontano ancora da un esauriente esame di coscienza) in una parcella alla deriva di questo caos: e ha provato un odio inaudito, una specie di schifo fisico, per i suoi avversari. Insomma la pressione di un tipo di potere nuovo, senza decisiva importanza, ancora, per il "sistema", ma assai importante, invece, per le coscienze, ha allargato il quadro dell'odio razziale verso i tipi di odio razziale nuovo.

La grande sorpresa, in tutto questo, è che il potere "schiacciante" non sia il potere costituito. Tuttavia io credo che il potere degli studenti - così come si è istituito malgrado loro - rientri nella problematica del potere tout court.

I sociologi avevano fino a oggi previsto per il futuro (né potevano far altro) soltanto delle difficoltà tecniche: vediamo invece, attraverso i giovani, che le difficoltà del futuro non sono affatto difficoltà tecniche, ma politiche.

Per molti anni siamo stati incantati dalla sirena della tecnica, sia come problema attuale, sia come grande incognita del futuro (problemi tecnici del dormire, del mangiare, dell'abitare, dell'occupare il tempo libero, dell'usare i motori, del fare figli, del divenir vecchi ecc. ecc.), e abbiamo stupidamente creduto che tali problemi tecnici si dovessero risolvere sul piano della tecnica.

La nuova generazione di ventenni - che, nelle nazioni "avanzate", vive per la prima volta, interamente, al di qua dello spartiacque; vive, cioè, nel nostro futuro - come primo atto ha voluto dimostrarci che le soluzioni dei problemi tecnici, anche nel futuro, sono politiche.

I bravi amministratori, che, tormentati, per il momento, dalle opposizioni, si sfogavano felici a pensare al futuro come un puro campo di esperti, sono rimasti con un palmo di naso. E così gli intellettuali, che non si aspettavano che il lor piccolo potere sarebbe stato messo in discussione così presto, e con tanta inaudita maleducazione e violenza (essi, che si immaginavano i nuovi ventenni come tanti primi della classe, integrati, affabili, efficienti, perbene). Ma non è un caso che il primo aspetto con cui i giovani si presentano, sia l'aspetto del potere; nascente da una coscienza aggressiva dei propri diritti.

E intendo dire proprio potere politico, oltre che culturale, di coscienza e d'opinione: se non fosse stato politico certamente la sua capacità di "pressione" non sarebbe stata così violenta da scatenare tra i loro poveri padri più vulnerabili - gli intellettuali - questo furente, feroce odio reciproco di bestie in gabbia.

Tempo n. 34 a. XXX, 20 agosto 1968

in Il caos, Garzanti