Cola

Já não corro atrás do tempo perdido em cafés Cola. Segura a memória para não perderes o único rasto que ainda nos liga. Amanhã deixa de ser verão, as ruas esquecem-se de nós, o tempo aleija na persistência de nunca parar. Onde vais? Ainda não terminei de falar. Aperta a consciência e lembra-te do que dissemos naquela loja, que haveríamos de comprar aquele filme, viver aquela vida e tentar ser aquela felicidade. Lembras-te? Eu também não. Mas gostava que tivesse sido assim.

Harmónica #1

Ontem dormi muito pouco. Às vezes acordo durante a noite com a sensação de que isto, o mundo ou sei lá, me foge, quase não o consigo agarrar. E depois lembro-me dos viajantes que usam calções azuis, as terras colocadas sobre uma bandeira às cores, o apito vermelho junto ao vaso na casa do avô. Por vezes vem também o cheiro a morcela e a barba ruça. Esses momentos sabem-me bem, sabem-me muito bem. Nunca poderia imaginar que um dia voltasse a comer morcela ou chouriço preto, desde aquela vez que comi tanto que acabei a madrugada a vomitar. Durante anos parecia que mantinha o sabor do vomitado de morcela na boca. Como uma má recordação, uma passagem triste na vida, a que nem por nada queremos reviver. Mas recentemente comi chouriço preto novamente, acredito que um dia esteja a comer morcela também. É como se tivesse crescido e apagado as más imagens do vómito, que podiam muito bem ser outra coisa qualquer. Talvez perdoar seja isto. É ser capaz de comer morcela outra vez. 

Volta à ligadura

Atrapalha-me o passo quando penso regressar. Digo baixinho palavras supostas, convenço-me de que dois gloriosos dias bastam para me atrever a olhar em frente. Sinto cansaço e digo adeus às casas baixas, àquelas varandas onde se afirmam ingénuos e percorro em desequilíbrio estas ruas uma última vez. Para trás fica gente bonita, sabes. Gente cuidada e lágrimas tantas. A aldeia vai ficando para trás e o meu coração soluça ao tentar acompanhar o ritmo apressado da locomotiva. Isto não devia ser assim: todas as viagens de despedida deviam ser acrescidas de um tempo extra. Duas horas mais dez minutos em ritmo lento, à força de querer olhar uma vez mais para trás. Aconchego-me no banco desconfortável e observo a manhã seca. Ali está a minha mãe. Alcanço-a com a minha mão, “estás tão perto”. Imagino a minha cara encostada ao vidro, construo frases de dezasseis palavras, entretenho-me. Havia um tempo em que a minha operação linguística bastava para me render aos novos hábitos citadinos. Mas hoje não. Hoje sou analfabeta, levo rebanhos numerosos, divago em montes alicerçados. Voltei. Mas é sempre por tão pouco tempo. Chego à cidade e ainda sou pastora. Talvez por isso as pessoas me olhem com sermão. Nada digo, avanço os pés apertados habituados à rotina do campo. Há ligaduras invisíveis sobre o meu corpo. Receio as mentiras que se adivinham, os dias passados no silêncio do centro, o dialecto correcto que afugenta sorrisos alheios. Ah, cheguei. Sem saber onde. 

 

Gastos

Mão em contra

Um dia olhar para trás e ver a estrada percorrida em contra-mão. O coração prestes a saltar, a pedir licença para expulsar todos os inconvenientes trazidos por meses (contei-os hoje contigo) passados numa espécie de tenda. Uma tenda montada no seio de um universo reduzido a leis e conversas de café. A tenda tão bem apetrechada de sonhos, conversas, descobertas ritmadas por tempos e acordes diferentes. Os meus, os teus. E aquela voz que, como hoje, sussurra ao meu ouvido palavras escritas para tu as leres. Oiço cada uma delas e apetece-me carregar um quadro branco, vazio, às costas, onde poderás contribuir com sonetos e didascálias ainda por inventar. A estrada segue em contra-mão, meu amor. E a tenda tão bem montada. Contigo ao meu ouvido. 

 

Enleado

Tentei bater-lhe. Beijo-o mas ele vive enleado e temos nada que dizer ou adivinhar. Aceitas-me namoro? Entender-nos-íamos, a gente quase não sabe. A tua vida, sigo-a. Contemplava-me e disse-me certa vez: vens para o telhado? Encurtamos caminho e despia-me, a aguardente a tirar a gravata, tomava banho, esperava. Era uma época e havia semanas. As velhas benzem-se “tudo perdido” para nós e, ah, sonhos vagabundos, bandeira igual a igreja, um Avô respondão e corneteiro pôs à janela objectos bonitos, frutos que não merecem pedidos de desculpa.

 

Éramos pobres

Éramos pobres. Lembro a luz baça na mesa-de-cabeceira. Quer entrar e inclina-se. Chega e apaga, aconchega-me a roupa no pavor de ficar só. Quarto onde dormíamos, habitado por nós até manhã. Vamos sair desta vida e ingressar noutra, levar pastéis de bacalhau, não largar as mãos; aparecerão todos (rasto que as mãos deixam) no palácio real iluminado. E a voz de dentro: aceitas-me casamento?

 

Até qualquer dia

Tantos gestos. Comer pão com morcela a subir a calçada, a barbicha ruça lendo o jornal, ver surgir ruas transversais e beijar na manhã clara as sonolências antigas. Ali, operários amigos perguntam onde vamos. É o oficio conjunto, alvo da felicidade: comer e beber, de mãos atadas, sexos juntos: emprego para a vida. Até qualquer dia!

Era o Primeiro de Agosto.