Íris negra

A partir de: Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar e Enrique Vila-Matas, Suicídios Exemplares, «As Noites da Íris Negra»

 

Norubu acabara de pegar no almoço frio embrulhado em papel que a mãe preparara, antes de sair para a loja, em Motomachi. Os restantes elementos do grupo, o Chefe, o n.º1, o n.º 2, o n.º 4 e o nº 5 esperavam-no junto à linha férrea. Ele era o n.º 3, e tinha 13 anos. Os pais, como sempre, julgavam que eles iam nadar para Kamakura.

Vaguearam durante algum tempo. Alcançaram o Cais Ymauchi, em Kanagawa, fora da cidade. Encontraram um desvio ferroviário coberto de folhas e ferrugem, atrás de um hangar onde se lia «Propriedade Camarária», com vista para uma escola abandonada, com vidros empoeirados e partidos, e cadeiras que pareciam ter sido arremessadas para cima das mesas. O local ficava a céu aberto, e Norubu receva que Ryuji, o animal fantástico saído do mar que à noite dormia com a mãe, aparecesse novamente. Voltaram para trás. Mais à frente, encontram um armazém com uma enorme porta preta e um tanque onde, ao espreitar, podia ver-se um pedaço de mangueira rasgada. Sentaram-se aí para ter a reunião do costume, e discutir questões como a inutilidade da Humanidade e do não sentido da Vida e da sociedade, que não passaria de um banho romano misto, e da escola, onde um punhado de homens cegos dizia-lhes o que deviam fazer. Comeram sanduíches com vegetais crus e pastéis à sobremesa, e beberam chá gelado de garrafas térmicas, enquanto treinavam, ao olhar uns para os outros, a ausência de paixão absoluta.

Naquele dia, o Chefe tinha conseguido obter fotografias que mostravam duas pessoas a fazer sexo em posições diferentes, e explicou-as detalhadamente, para provar que não havia nada de especial naquilo. Enquanto falava, Norubu pensava na mãe, que espreitava através do buraco na parede, despida junto ao toucador, de olhos vazios como que arrasados pela febre, e com os dedos perfumados entre as coxas. Depois, o n.º 4 lembrou-se de que ainda não haviam encontrado um gato, razão por que ali tinham ido. Ao fim de algum tempo, viram um, e embora parecesse uma ratazana escanzelada, servia perfeitamente.

Passou de mão em mão, porque todos queriam sentir o seu coração, quente, batendo contra o seu peito nu, molhado. Quando finalmente chegou a vez de Norubu, o gatinho foi agarrado pelo pescoço e imediatamente lançado contra um cepo. Não morreu logo, por isso Norubu agarrou-o e lançou-o uma vez mais contra o cepo. Das narinas e da boca do gato escorria um sangue vermelho escuro, a língua, torcida, estava colada ao céu. Não sentira nada. A prova estava vencida.

O Chefe calçou as luvas e procurou uma tesoura no bolso da camisa. Furou a pele do peito do gato e fez um corte vertical. Debruçado sobre ele, começou a puxar a pele com as duas mãos, até chegar a uma superfície branca e macia, uma vida interior parada, branco lustrosa.

Não estamos ainda suficientemente nus.

 

*

 

Chegaram finalmente a Costa Brava, à aldeia de Port del Vent, onde o pai de Vitória, homem de notável mau feitio, que ela nunca chegara a conhecer, passara os últimos meses de vida. Disseram-lhe que morrera ao tropeçar no alto da igreja da aldeia, quando fazia de personagem secundária num filme rodado ali.

Vitória quisera ver o lugar. Na pousada onde ficaram instalados, conheceram Catão, o dono (com um nome que, segundo ele, dizia do imenso amor que os pais tinham à antiguidade clássica), que de imediato se ofereceu para lhes mostrar o cemitério onde estaria o pai. Catão mostrou-lhes Bonet, Sabdell e Norberto Durán. No túmulo do primeiro, pescador da aldeia, lia-se «Não te impeça o caminho da liberdade. Se te apraz, vive; se não te apraz estás perfeitamente autorizado para voltar ao lugar de onde vieste». No de Sabdell, poeta, cujo corpo desaparecera na mar, «Joan Sabdell. Nos dias ímpares, a vida afogava-o muito. Nos dias pares, a vida parecia-lhe uma faca sem lâmina a que falta o cabo». E no de Durán, médico da aldeia, «Nunca a fruta é tão saborosa como quanda passa; o maior encanto da infância encontra-se no momento em que acaba». Em comum, a inscrição tumular C.D.M.S.S.C. – «Morreu com dignidade. A sua sombra passa.» Todos eles tinham feito parte de uma organização secreta – a Sociedade da Noite da Íris Negra – cuja máxima era: desaparecer digna e serenamente após uma grande festa de espírito e após uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à filosofia, à maneira de um Catão ou de um Séneca, cujas mortes seriam o mais perfeito exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno, profundamente mediterrânico.

O pai de Vitória fora o primeiro a matar-se, a saltar para o vazio, do alto do campanário. Na altura ninguém esperava aquilo. Não tenham pressa, costumava dizer-lhes. O suicídio é um acto afirmativo, podem praticá-lo assim que o desejarem, qual é a pressa? Tenham calma. O que torna suportável a vida é a ideia de que podemos escolher quando escapar.

Catão e Uli, o irmão, homem de cabelos curtos e brancos e a cara muito sulcada, e com aspecto de passáro, que coxeava ligeiramente do pé esquerdo, eram os únicos que ainda estavam vivos. Uli vivia atormentado, por ainda não ter tido coragem de se matar.

Paul Thomas Anderson

 

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Quando, em Novembro do ano passado, fui ver The Master, o mais recente filme de Paul Thomas Anderson, lembro-me de nem conseguir dormir de tanto que fiquei a pensar no que acabara de ver. O mesmo já me tinha acontecido quando vi There Will Be Blood, o filme anterior de Anderson: também não soube bem o que pensar. Dos seus anteriores filmes, coisas como Hard Eight ou Magnolia faziam crer que Anderson era uma espécie de fruto de um caso amoroso entre Robert Altman e Martin Scorsese; Boogie Nights era uma mistura de GoodFellas com Spinal Tap. Punch Drunk Love já era algo vindo de outro planeta, mas o estilo era o mesmo. There Will Be Blood não – parecia ser algo realizado por Kubrick, com planos longuíssimos mas sem o movimento constante que os filmes anteriores exibiam. Era brilhante, sim, mas não aquilo a que eu estava habituado.

Tal como com There Will Be Blood, o amor ilícito que deu à luz The Master foi o de Kubrick e Terrence Malick em vez do de Altman e Scorsese. Mas sendo o segundo filme que Anderson faz nesse estilo, desta vez não foi isso que me deixou “desorientado”. Desta vez, foi outra coisa: se uma pessoa for rapaz (ou rapariga) de certa predisposição mental e emocional, The Master esmurra-nos a cara sem piedade com tanto brilhantismo que é impossível perceber exactamente o que acabou de acontecer.

O filme centra-se na relação entre um veterano da Marinha americana na II Guerra (Joaquin Phoenix) e o líder de uma seita religiosa (Philip Seymour Hoffman) que o “acolhe”. Nas duas horas que se seguem, Phoenix e Hoffman entretêm-se a tentar mostrar-nos quem é o melhor actor, e fica provado à sociedade que é impossível escolher: há uma cena passada entre os dois numa cela de prisão que toda a gente mencionará como prova da qualidade sobrehumana das duas interpretações, mas honestamente qualquer outra poderia servir de exemplo. E depois há Amy Adams, que até a ser execrável e assustadora consegue ser adorável: sempre que aparece, Adams puxa tudo na sua direcção e (em alguns casos literalmente) agarra o que vier com as duas mãos, só largando quando quer e depois do trabalho estar feito.

Anderson dá espaço e tempo para estes três brilharem: a câmara fica neles enquanto for preciso. Mas ao contrário de There Will Be Blood, não é quase estática. O uso do “slow-motion” que enchia Hard Eight, Boogie Nights ou Magnolia está de volta, como se Anderson quisesse combinar as duas fases da sua carreira num só filme. The Master é, no fundo, o filme mais Paul Thomas Anderson –como adjectivo- que Paul Thomas Anderson já fez: pode não ser o seu melhor filme (e talvez seja), mas é sem dúvida aquele em que o seu estilo está mais amadurecido, em que tudo aquilo que ele já fez se junta num só filme. Se Anderson não quiser (e eu espero que queira), não precisa de fazer mais filmes – tudo o que havia para fazer, fez com The Master.

E fê-lo de forma ainda mais conseguida do que havia feito até aqui: nenhum dos travelling shots scorsesianos que celebrizaram Anderson é tão deslumbrante como um em que Phoenix foge por uma plantação agrícola ao nascer do sol; nenhuma das sequências em “slow-motion” dos filmes anteriores é tão encantatória como a de uma festa em que Hoffman é o convidado de honra; e se as personagens de Mark Whalberg ou Julianne Moore em Boogie Nights, ou qualquer uma em Magnólia, arrasavam o bem-estar emocional de qualquer um, em The Master basta olhar para a cara perturbadoramente alterada de Joaquin Phoenix para questionarmos a nossa própria sanidade mental.

Tudo isto salta para a nossa frente quando se vê o filme. Violentamente: o filme é um assalto de brilhantismo e é impossível acabar de o ver sem se ficar impressionado (nem que seja a detestar o filme, o que vai acontecer a muitos dos que o virem). O que parece ser difícil é perceber o que tudo aquilo quer dizer, qual o significado de todas as coisas que nos são atiradas à cara durante mais de duas horas. Talvez o filme não tenha significado, talvez não queira dizer nada: talvez seja só um olhar sobre a vida daquelas três pessoas, uma “experiência” – nada mais que um conjunto de “estados de espírito” filmados para os reproduzir em quem estiver a ver. À medida que a insónia dessa noite em que vi o filme se prolongava, comecei a achar que não, que o filme tinha um significado, que bastava pensar nos outros filmes de Anderson para perceber qual era.

 

«ben zakhai»

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de Teatro de Rua, Tatiana Faia, do lado esquerdo, Coimbra, 2013.

três da manhã em budapeste
no piso subterrâneo de um hotel
um homem e uma mulher
deixam-se ir ficando para a privacidade
suburbana de um parque de estacionamento 

dentro do carro conversam
como quem joga xadrez
sacrificando peça após peça
com uma atenção metódica
indício talvez de um punhado
de critérios mais sábios 

eles lembram-te de outra história de rabis
ben zakhai negociou habilmente sobre jerusalém
preparou em desespero o render da cidade
ele e o imperador tinham conversas de planos
entretiveram com tacto grave
discussões de sucessivas estratégias 

mas por enigmas desencontrados
cada um deles reclamava ainda outra coisa 
quetudo a perder mais vale
querer cada vez mais, imagina que 

ben zakhai talvez tenha dito a vespasiano
uma destruição esconde sempre
outra destruição e a destruição seguinte outra
até não sobrar nenhuma casa
tu daqui vais para roma e eu sabe deus 

e não há-de haver já nada
dentro de nenhuma das casas nesta cidade
contidas como soldados demasiado jovens
escondendo-se ao perceber o primeiro dever do medo,
o de se enterrarem no refúgio circular das muralhas 

nada das coisas que compõem uma cidade
o nosso comércio o discreto barulho
das nossas mulheres no seu ir e vir
coisa calada de com os filhos pelas mãos 

as intactas paredes das nossas casas
o recolhimento sossegado pela tarde
da sombra dos nossos pátios mais interiores
o sussurrar na fala grave de homens
entretidos em conversas de negócios
nada, não há aqui metáfora nenhuma 

começando por uma coisa qualquer
é possível
se assim quiseres
continuar a partir tudo indefinidamente
tudo pode ser minuciosamente destruído 

contra esta mais espessa noite
a ideia de um nó tão fundo que só isso explique
uma cidade inteira calcinada
para que a mesma cidade possa recomeçar

*

O livro será apresentado no próximo sábado, dia 30, pelas 18:00, na  Fyodor Books. Apresentação da exclusiva responsabilidade do duo Barros/Faia.  

Acordámos e estava tudo branco

Folheamos o álbum de família, suas imagens têm a secura térrea das fotos que se arquivam nos registos dos cárceres largando nostalgias por sais de prata. Nelas balizados os devidos marcos cronológicos: as núpcias, a viagem transatlântica, o primeiro filho, o dia em que nevou pela primeira e última vez na nossa cidade. São os marcos que hoje nos escapam: não sabemos como representar as núpcias desenlaçadas antes de fundida a aliança, a viagem em pouca terra, o filho incriado, os dias sem fenómenos. Deixámos por isso de dar continuidade às imagens. A linhagem desemboca onde cessámos a representação. O álbum termina nessa fotografia do dia em que nevou pela primeira e última vez, a paisagem registada como um campo sobre cujas flores um manto branco havia descido sem razão. Fenómeno único, de uma beleza de parábola, nesta cidade do Sul, datado com precisão para que se dissesse neste dia acordámos e estava tudo branco. Uma transformação externa a envolver por dentro. A uniformidade oblíqua de telhados cobertos de neve só interrompida pelas irregularidades das clarabóias. E as coisas sendo então concebidas sob o véu da neve, já mordaça. Pergunto-me em que quartos, em que lucarnas se continuou a pintar com cores pardas as telas atiradas contra as paredes. Pergunto-me quem eram os que se retiravam, incapazes de representar a vida, cristalinamente, sob a imposição do branco.