Este rapaz fala muito em russo.

Este rapaz fala muito em russo. 
Como se pode falar tanto? 
Pode-se falar tanto? 
(e o russo até é uma língua  
como a nossa).  

Como se tem vontade de falar? 

Eu fico sempre incomodado, 
e por isso às vezes não me calo.  

Ele não. Tem informações. 
Terá certezas? Pelos gestos, sim, 
tem gestos certos como a jovem
com meias longas que acabam
num vestido que acaba cedo.  

Ela e ele têm medo? 
Não têm medo, quem fala tanto assim
não pode ter medo.  

Eu tenho. Calo-me ou falo não por timidez
mas por um medo vazio. Ele não. 
Fala. Convicto. Intenso. Rápido.  

O russo parece um pormenor falível. 
Amanhã falará cantonês, 
só porque o sol nasceu. O pai, 
que é claramente e muito rico
massaja vinho branco com aseriedade
com que uma vez sorriu ao filho, 
o que diz tudo de uma vez, 
claro que sim, assusto-me, devia, 
devia ter esse entusiasmo, esta ardência, 
esta forma, este juízo.  

Ela tem um gancho no cabelo. 
Fará parte? Cala-se, claro, tomara, 
nunca vi um rapaz falar tanto.  

Em russo.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§24 levar nas orelhas)

(cont.)

– Estás contente? – Perguntou Manuela, mais bela do que nunca, uma pele que só podia ter sido oferecida por Afrodite (em troca de quê?), ao vê-lo cabisbaixo junto à máquina automática do café.

– Não, claro que não. Mas isso importa pouco.

– Sim, sempre quiseste isto, gostas de te amar em mártir, é a maneira que encontraste para esconder os teus fracassos.

– Creio que não, ninguém, nem os masoquistas, gostam de sofrer. A finalidade nunca é o sofrimento, ele pode ser necessário como meio, jamais como fim.

– Não enroles, estou farta de conversa fiada. Pelo que consegui compreender de ti, julgo que és um tremendo anormal. E olha que te amava a sério. No início andei contigo pelo heroísmo, talvez influenciada pelo olhar que as colegas te lançavam. Disse para comigo que tinhas de ser meu, não te ia deixar à estúpida da Joaquina mamalhuda, ou à parvinha seminua do teu grupo, sempre cheia de citações entre os decotes teenager. Depois, consegui ver em ti qualidades que nem sonhas ter, posso não ser muito inteligente, mas tenho uma boa intuição ética (olha o que aprendi contigo, “intuição ética”). Tu és uma boa pessoa, pelo menos és muito melhor do que pensas, darias um óptimo pai, um óptimo avô.

– Não conheces ainda o fogo negro que arde em mim. – Disse Lourenço sem olhar para ela.

– Lá estás tu a forçar a página da desgraça.

– Não, Manuela, recebi isto ainda no útero, e manteve-se indomesticável, faz o que bem lhe apetece.

Faltava dizer ao Lourenço, mas Manuela não tinha nem as palavras nem as ideias certas, que a vida é acrobacia, que por isso se está sempre em risco de cair, atraído pela inata gravidade trágica, sim nós nascemos para a tragédia, é por isso que os primeiros gestos de cultura elaborada de qualquer comunidade, dos semitas ao gregos, passando pelos ingleses isabelinos, procuram reproduzir essa parcela da nossa essência, as primeiras linhas de cultura são sempre sobre o trágico. Ambivalente, Lourenço personificou esse rasgo contra a monotonia do bem e do conforto, mas, simultaneamente, nunca quis ultrapassar os limites, aventurar-se na imensidão, experimentar o abismo. Pelo contrário, Lourenço especializou-se em retiradas.

[bom, não me tomem por um narrador omnisciente, retrato o Lourenço tal como o imagino. Por mais que queiramos, não temos acesso a nenhuma consciência para lá da nossa. Além disso, as palavras que escrevo aqui não são imediatamente portadoras de vida. Por exemplo: tudo o que de magnífico e vital escreveu Hugo von Hofmannsthal se pode sequer aproximar de em Julho de 1929 ter morrido de um ataque cardíaco quando se dirigia para o enterro do seu filho Franz, que se suicidara com um tiro de pistola]

À parte de mim, do Joaquim e da Manuela, todos os professores da escola deixaram de falar com o Lourenço. Alguns ficaram-se pelo silêncio (aquele que dói), mas a maioria adornou o afastamento com impropérios lançados à socapa, facadas linguísticas que não permitiam resposta. Isto não chocava o Lourenço, só confirmava a sua melancolia. Ainda tentou uma resposta interior com um sintagma que viu escrito nas costas de uma cadeira de sala de aulas: “Lambe-me o cu”. Mas depressa se cansou desta táctica pífia, sem confrontar directamente os interlocutores permanece-se no solilóquio autofágico. Para completar a perseguição, lá veio a ordem da Direcção para que fosse ter “com eles” a meio de uma manhã de Exames Nacionais. Depois de entrar, fecharam a porta (mau sinal). A Directora, aquela mesma que tinha engolido o seu esperma, cornucópia inesgotável de humores contraditórios e vestuário “arrojado”, tomou a palavra, a bem dizer mais ninguém falou.

– Afinal, Lourenço, tudo não passou de um grande equívoco, não foi?

– Como assim? – Atreveu-se a perguntar Lourenço.

– Não percebeste a pergunta, queres um desenho? Tu és tanto herói como eu uma amazona.

Lourenço lembrou-se do cheiro intenso da sua vagina húmida, de como o tinha chupado, de ter tido vontade de vomitar quando lhe encostou a cabeça à barriga. Uma angústia muito superior a esta chamada de atenção moral.

– Lourenço, criaste muita perturbação aqui na escola, fomos e somos o centro das atenções, isso não é bom para o clima pedagógico.

– Porquê? – Ah, Lourenço, não se deve pedir explicações às tiradas retóricas.

– Porquê? Ainda perguntas porquê?

– Claro, não percebo a acusação. – Ainda mais Lourenço? Não sabes ficar calado, foste à Direcção para levares nas orelhas, não para um confronto de perspectivas.

– Não percebes?! – gritou a Directora. E continuou, és parvo o quê? Todos os dias a aturar jornalistas, os pais a caem-nos em cima, os colegas desconcertados...

– Não sou parvo, ou pelo menos não tanto quanto isso. Não vejo é razões para este histerismo, nem para o anterior, aliás. Eu só quero que me deixem em paz, percebes, deixem-me em paz! Tu, os colegas e os jornalistas. Deixem-me em paz!  – Virou costas e foi-se embora. E este talvez tenha sido o primeiro verdadeiro acto heróico à escala do Lourenço.

No dia seguinte foi à praia, como sempre a São João da Caparica, e curvou-se, como de costume, perante a beleza de ondas fortes (pouco habituais naquela zona), capazes de limpar todo o desassossego que o consumia. Ficou apenas a vontade de continuar a acelerar o processo, pedindo a algo mais vasto do que ele (uma divindade qualquer) que o apoiasse. A sua distância crónica em relação ao mundo estava mais do que nunca num ponto sem retorno. Mas os deuses são incapazes de assombro, por defeito mais do que por virtude. 

 

nothing can go wrong for us, tell me

O coração parou, naquele dia o meu coração virou uma mancha preta, lodosa, morri, o táxi a escurecer na curva, não fazia sentido, tantas marteladas de nuca contra o travesseiro, sofri como um cão, o mundo, mundo nenhum depois de ti, chorei sem chorar, uma dor seca, demasiado aguda para lágrimas, verti um rio por dentro, recuperei ou tentei ou não tentei superar o teu desaparecimento, mordidelas noutras línguas e o nariz enterrado noutros decotes, não funcionou, não parava de pensar em ti, a tua boca, o teu cabelo, engolia em seco, ainda penso em ti, ainda só penso em ti, agora estás aqui, a minha mão pousada na tua, dizes que ficas, os lábios colados, dizes que não existe passado, que não existimos, que somos álbuns fotográficos, o teu rosto no meu ombro e sou o outro eu perfeito, o eu que mais ninguém conhece, belo, gracioso, Eva, és minha, a felicidade é isto, estes cinco segundos, és minha, e amanhã não sei, quem sabe, vejo carne e vermelho e pernas entrelaçadas e suor e unhas a furar a carne e a saia ao ar e nós escarranchados contra a parede, uma alegria, a baba, o ranho, tu no meu colo, a vida a fazer sentido.

Antes da iluminação, Mariano Alejandro Ribeiro

LONGEST WAY ROUND

aos solavancos
moving steadily toward my fate
se um dia deus quiser
teremos tempo para discutir
como meninos ricos, na esplanada
de um café
ao pequeno almoço
a fumar do mesmo cigarro e a ver
os pobres infelizes a passar no autocarro
e vamos pensar: “céus, graças a deus que não
somos eles”
ah ah ah ah
prima dona e mulher de saltos
um dia ainda vamos ler o ulisses
mas até lá
as palavras grandes são
tostas de queijo vegan na esplanada
e batidos de hortelã e espinafres
e na tua mala uma aversão antiga
uma versão antiga muito antiga
da crítica à razão pura ou então
da fenomenologia do espírito
ou então
do tractatus do outro
mas quem pensas que és

porque o caminho mais longo, amiga
longest way round, amiga
is the shortest way home
e até lá as flores não vão perfumar o passeio
mas sim
a cabeça dos fulanos do autocarro
não te julgues
o último dos moicanos
ainda terás de dar o teu lugar
à velhota bigoduda


DIZ BEIRUTE

Sonhávamos que éramos personagens
Num quadro de Hopper a ver
O nascer do Sol
Carregavas o teu casaco preto
Em jeito de governanta
Mas o que realmente me afligia
Era pensar
Que ser um gajo honesto acarreta
Custos
Que não sei como pagar

Se tu me falares em árabe e eu
Se eu te balbuciar qualquer coisa do meu calão argentino
Aí sim, talvez
Nos possamos entender
Comendo esparguete nesse típico antro que chamamos
Ópera para pobres
A acariciar as paredes de veludo e a cheirar
Um ao outro as roupas dos nossos pais
Amarrotadas na bagagem de
Imigrante
E agora que penso nisso
Tento esforçar-me para encontrar
Um rasto de estilo
Na retirada humilhante que foi
A invasão a Beirute
Tu ligaste-me no dia seguinte
[Há quem goste de recalcar fracassos]
Tu ligaste-me mas a tua voz era serena
Tu ligaste-me e disseste
«Leva tudo o que possas levar»
Olhei para cima
De facto, as cores do céu
Ainda estavam
Frescas

 

SWISH CANTO

Dar-se conta das moças a desfilar
Na marginal
E os miúdos no playground a jogar basquetebol
Sem t-shirt de troncos rijos e na pele
Fina
Tatuada
A serenidade da doutrina
Do budismo Chan

E ainda latinhas de cerveja e coca-cola a um canto e
Um rapazinho de chapéu a gritar
Gandharvas! Bikkus! Escorrega da Samsara
Não liguem às camones que pedalam
Ao som das correntes da bicicleta
Como espuma a bater
Nas rochas do cais
O suspiro do cansaço
Esse sim
O suspiro de me aperceber
Que assim que entrar em campo
Haverá
Atrás de mim
Equipa de fora

 

 

Os Intelectuais e o futebol

Cristiano Ronaldo, a nova aposta messiânica (tivemos de ir ao futebol depois de D. Sebastião se recursar reiteradamente a aparecer), atirou para a água o microfone de um repórter que o abordou. Este gesto de censura será desculpado ao “melhor do mundo”, porque temos mais coisas com que nos preocupar (apesar do optimismo institucional da nova retórica triunfalista) e porque não acreditamos muito na liberdade de imprensa, ou melhor, na liberdade tout court (somos espinosista sem o saber). Quanto a mim, vi naquele impulso mais uma prova do messianismo ronaldino, o enviado da Madeira mostrou-nos como podemos derrotar esse tablóide abjecto, perito em desinformação e em irradiar a ideia de que Portugal é constituído maioritariamente por assassinos e assassinados, estropiados, bêbados e tarados sexuais. Só critico Cristiano Ronaldo por uma coisa (ampla): não leu nem Immanuel Kant nem Proust, nunca hesitou entre Herbeto Helder e Fernando Pessoa, ignora todos os filmes de Tarkovsky, continua surdo à Paixão Segundo São Mateus, nunca quis comprar um Francis Bacon em vez de um Mercedes, não foi ao Louvre em vez de Ibiza ou ao Algarve.[1] É por isto que não acredito no cliché teológico do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, se Deus comandasse a História, Ronaldo teria lido alguns clássicos, autores também eles perfeccionistas, e experimentaria desenhar uma tábua de categorias do futebol ou um silogismo do penálti.

Não acontecendo isto, por lapso do rígido desenvolvimento histórico com certeza, temos apenas mais um jogador de futebol que “abandonou a escola para seguir o seu sonho”. Cabe, portanto, aos cultivadores (é bem disto que se trata, cultivar) da língua e do pensamento procurar a genialidade do Messias. Antigamente, tudo era mais claro, o Estado Novo apostou numa trilogia identitária cujo vértice mais recente era o futebol (devido às transmissões em directo dos jogos da Selecção, enquanto os aparecimentos de Fátima se mantinham na era dos sinais de fumo e das peregrinações a joelho). Todos os portugueses, cultos e incultos, se compraziam em amar este desporto popular cheio de simbologia bíblica e sexual (“meter golo”, “jogador sacrificado”...). Com isto, o Estado corporativo e isolacionista (uma soberania solitária que agora se defende também à esquerda e em cada vez mais vox populi, veja-se o Brexit[2]) manteve durante décadas uma eficaz cortina de fumo que escondia um país miserável e iletrado.

O 25 de Abril denunciou esta alienação que impedia o proletariado de tomar consciência da sua condição revolucionária. No início, ainda se trocaram algumas idas ao estádio por comícios políticos, mas o jornal A Bola e os relatos de futebol (pouco televisionados nas décadas de 70 e 80) acabaram por desacelerar o desenvolvimento do materialismo dialéctico. Hoje, super-mediatizado, abafa qualquer espírito revolucionário dirigido pelos órgãos competentes do Apparatchik. Todavia, se por um lado parte da elite intelectual mantêm um desprezo inabalável no pontapé, e cabeçada, na bola, por outro há um compromisso de respeito crescente vinda de outra parte não despiciente da intelectualidade, habitando sobretudo na esquerda política (continua o debate sobre a possibilidade de haver verdadeiros intelectuais de direita).

Se abrirmos a análise ao planeta, durante muito tempo o futebol foi considerado uma espécie de peste emocional, anátema lançado por cérebros bem pensantes que só permitiam a inclusão de alguns desportos no reino do Espírito (por exemplo, o ténis, jogado de fato branco). Mas houve sempre quem resistisse a esta classificação bastante classista, Norbert Elias (1897-1990) considerava-o um espectáculo civilizado de “violência domesticada”. Se é verdade que o futebol alimenta o sexismo, o machismo, o racismo, a homofobia, o individualismo, o nacionalismo... para alguns pensadores ele parece ter um certo poder de emancipação, de criação colectiva pelo fortalecimento das ligações sociais. Talvez o primeiro intelectual de esquerda a celebrá-lo tenha sido Antonio Gramsci (1891-1937), vendo nele um “reino da lealdade humana exercida ao ar livre.” Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador marxista, falava de uma “religião laica do proletariado”. Longe, portanto, do epíteto de “analfabetos em calções” que muitos lhe lançaram, e lançam. Opondo-se mesmo àquilo que Theodor Adorno disse em Minima Moralia: “Glorificar os infelizes pobres diabos leva a glorificar o maravilhoso sistema que faz deles o que são.”

Para noticiar uma nova tolerância dos intelectuais em relação ao futebol, o jornal francês Libération, de 16 deste mês, traz um artigo cujo título resume uma nova visão do mundo do futebol pelos adeptos do pensamento elaborado: “Desprezo intelectual, desprezo de classe: durante muito tempo o futebol foi uma paixão vergonhosa para os belos espíritos. Hoje, ela ter-se-á tornado um novo conformismo.” O artigo insiste na velha polarização, mas inclina-se, não fosse ele de esquerda, para o reconhecimento: 1) refere as críticas por ser mais uma forma de alienação; 2) mas realça a nobreza, quase revolucionária, por se tratar de um desporto que quis desviar-se das leis evolucionistas e, numa “bizarria antropológica”, centrar a sua acção no pé em vez de na mão. Além disso, citando Jean-Philippe Toussaint (Football, Minuit, 2015), “Diante de uma partida de futebol, o futuro está fundamentalmente irresoluto. É esta qualidade de suspense que faz com que, à maneira de um divertimento evocado por Pascal, o futebol nos mantenha radicalmente à distância das nossas preocupações do quotidiano, das misérias da nossa condição e da morte.” Ainda no campo da quase sagração, agora com Robert Maggiori (jornalista filosófico no Libération e adepto da Juventus): “Todos os desportos reproduzem mais ou menos os quatro pólos da actividade humana: o jogo, a guerra, a arte e o trabalho. Mas o futebol é o único que os sublima a todos.”

E é por isto que não tendo uma força revolucionária, o futebol, no ganho inelutável de reconhecimento social que parece adquirir, se tornou um verdadeiro novo conformismo cheio de intensidade emocional.

[1] Em boa verdade, um futebolista que lesse Kant ou Proust, que tivesse uma cultura alargada e refinada, não podia ser futebolista, ter-lhe-ia faltado tempo de treino para apreender e incorporar (tornar corpo) fintas e remates, corridas e paragens, saltos e quedas. Parece, pois, inevitável, que um jogador de futebol tenha de ser culturalmente (“alta cultura”) limitado.

[2] O belo projecto de um continente unido, solidário e pacífico ficou mais frágil depois deste divórcio.