evidências

                                                        

uma mulher furta uma lata de ervilhas no mercado. o segurança vê e chama o gerente. a mulher anda pelas bancas das frutas e agora furta um abacate. o gerente e o segurança a seguem. a mulher percebe, eles percebem que a mulher percebe e passam a tentar perceber pelas frestas, entre produtos, sanha e algum tipo de medo. ela simula interesse em furtar uma imensa quantidade de laranjas. aponta uma laranja e segura o seio, como se o plano fosse esse, esconder aquela laranja naquele bojo magro. aponta outra laranja, segura a fruta, cheira e devolve ao bando, aperta a região da vulva. aponta outra laranja. agora é a bunda a medida do plano. outras duas e os joelhos. mais outras duas e os ombros, as ombreiras que sairiam da blusa para viver no curral de laranjas, enquanto laranjas sairiam do mercado aos moldes de ombreiras. o segurança fica aflito pois o gerente não sabe gerenciar o quadro. outra laranja é apanhada e cheirada pela mulher. do cume do pequeno sol, ela encara o gerente que se mija todo, não sabe gerenciar. o segurança fica sozinho na esquina do corredor das cervejas com o corredor das frutas e legumes. um senhorzinho escorrega, cai no mijo do gerente e logo uma porção de funcionários aparece para socorrer a saúde da dignidade do mercado. a emergência chega e o senhor é imobilizado numa maca que rapidamente reaparece na ambulância a caminho do hospital de fraturas. some a mulher da lata de ervilhas e do abacate. igualmente somem a atmosfera de caos, o fascinante jogo jogado por ela, a salivação, a secura nos olhos, a coceira nas partes. o segurança avalia as laranjas. ousa um pouco mais, apanha uma e cheira. o gerente trocou de calças e aparece por trás do segurança, pousa a mão direita sobre o ombro do funcionário, sussurra: “graças a deus, o sistema de monitoramento estava desligado”, “ufa”, “ufa”, “ufa”.

nos autofalantes do mercado uma voz andrógina se sobrepõe à dupla sertaneja e anuncia a promoção relâmpago de uma marca de ração para gatos castrados.

Leituras de Verão

Façamos o seguinte: pautemos as nossas férias de Verão pelos naturais delírios estivais e por um conjunto de livros que usaremos como exercícios espirituais (Pierre Hadot) ou artes de existência (Michel Foucault). Ler como ação afrodisia, mas também como prática de higiene (arrumar a banalidade) e de desenvolvimento mental e emocional. Se acharem esta indicação demasiado prescritiva, sigam os vossos impulsos, desde que leiam pelo menos 3h diárias. E aqui, sim, defendo um imperativo, como um desportista, quem pensa precisa de se exercitar, diariamente e bastante tempo. E ler e escrever continuam a ser a práticas mais eficazes para se ter uma «cabeça bem feita».

No meu caso, com 30 dias úteis de férias (não me invejem, o Estado ainda me deve cerca de 60), espero poder ler os livros infra (embora necessite de mais de 3h por dia em média). Poesia (estimular a atenção à palavra, a cada palavra,  com autores tão diferentes e tão bons); filosofia (revisitar grande parte de Jürgen Habermas de uma só vez, usando o projeto das Obras Escolhidas das Edições 70, e o celebrado This Life, para me inteirar de um pensamento que questiona imerso na vertigem do dia a dia, neste caso lerei no Kindle, o dispositivo ideal para a praia); teatro (depois de ver a peça Obstrução (Artistas Unidos), magnífica, o livro, um texto que revisita a Grécia Antiga, a que vivia dos e nos mitos, para inventar novas possibilidades de desejo, mais corpo-a-corpo); Romance (um inédito de Céline, esse homem sinistro que foi um génio da língua).  

Janela Aberta numa Noite de Tempestade 

 

Tornou-se isto na espera por uma catástrofe definitiva, 

Tudo passa na língua com a textura de um vazio absoluto, 

Mais um crepúsculo, mais um gole, mais uma ejaculação, 

Tudo no vazio, a cópia de uma cópia estropiada pelo tédio, 

Continuar como quem é levado, moribundo, a um autocarro, 

Que nos levará de volta ao cansaço, depois do fim, de tantos fins, 

Gastam-se as ilusões em copos vazios e mesmo assim, 

Caminha-se com o glorioso peso de todos os fracassos, 

Verões que prometeram ser infernos e se tornam em dilúvios, 

Pandemias que terminam em guerras e novos medos, 

As balizas enferrujam, as giestas tomam conta do campo da bola, 

Quantos segundos serão dedicados por dia às glórias pequenas, 

Relembrar na água que escorre numa janela o mais precioso tempo, 

As mãos vazias, tão grandes na ilusão do seu alcance, 

Um poeta, como se nisso houvesse alguma salvação, 

O resto já se sabe, nas entranhas o tumultuoso emaranhado 

De tudo o que foi perdido, que só a perdição derradeira aliviará, 

Entretanto abre-se mais uma garrafa de vinho, antes da partida 

De mais alguém, do próximo trovão ou da própria derrota final. 

 

14.07.2022 

 

Turku 

"Pictures from Knopfli's airport" de Larry Sultan

para a Tatiana,
que conhece as margens do exílio

Não querias lembrar-te de nada,
além da soma de dois exactos impossíveis:
este nada que se recorda.
Nenhum futuro, nenhum passado
subsiste, além deste equívoco. E o presente
prende-nos como se fôssemos um assento 
perpétuo e infranqueável

num cinematógrafo.

Os nossos olhos, dentro de nós, abrem-se
como uma tela, revelando-nos a derrota
na sua mais plácida brancura.

Em vinte versos, dizem-me, escreveste a tua despedida.
Mas por muito mais de vinte anos lembraste
o teu rosto menino, o perfil 
dessa cidade.
Ainda aqui estás. Ouve-me. Leio-te, Rui,
sentado no terminal 1 de Madrid. E em vinte versos
invento um livro: voltas, abraças Kok Nam. 

Sultan apanha-vos.

E eu teimo acrescentar um 21.º verso,
em que vos crio a alegria e a saudade: de novo

Dois poemas traduzidos: Mark Strand e Garcia Lorca

Tradução de Tatiana Faia

Não sei ao certo onde Mark Strand se terá sentado para escrever o primeiro dos poemas que traduzo aqui, “Keeping Things Whole,” mas foi um poeta e tradutor galego, Jesús Castro Yáñez, quem por sinal me o mencionou. É um poema que ensaia uma justificação da necessidade de movimento, mas também ele se move, chega à revelação que encerra. O outro poema que aqui traduzo é um dos Seis Poemas Galegos de García Lorca e há outro elo galego. Sabemos onde García Lorca estava sentado quando o escreveu, ou talvez o reescreveu, não é claro, a pedido de dois editores galegos: no café Moderno em Pontevedra, em 1932.  Talvez Lorca esteja a falar aqui sobre a natureza de normas opressivas, mas de certeza que entre ter sido e haver de ser há qualquer coisa que é desarrumada pela liberdade de movimento que aí fica implícita, pelas imagens inusitadas e pouco conformes a qualquer cânone de representação realista. Achei então que fazia sentido ler estes dois poemas juntos.  

 

Manter as coisas inteiras

Num campo
sou a ausência
de campo.
É sempre
assim.
Onde quer que esteja
sou o que está em falta.

Quando caminho
separo o ar
e o ar move-se
sempre
para preencher os espaços
onde o meu corpo esteve.

Todos temos razões
para nos movermos.
Eu movo-me
para manter as coisas inteiras.

 

Mark Strand, “Keeping Things Whole",” Selected Poems, 1979. Publicado aqui.

 

Eu sei que o meu perfil será tranquilo

Eu sei que o meu perfil será tranquilo
no musgo de um norte sem reflexo.
Mercúrio de vigília, casto espelho
onde se quebra o pulso do meu estilo

Que se a hera e a frescura do fio
foi a norma do corpo que deixo,
o meu perfil na areia será um velho
silêncio sem rubor de crocodilo

E ainda que nunca assuma sabor de chama
a minha língua de pombas enregeladas
mas antes o deserto gosto das giestas,


livre signo de normas oprimidas
serei, no pescoço da hirta rama
e num sem fim de doloridas dálias.

 

Frederico García Lorca, in Seis Poemas Galegos (1935).