AS NECESSIDADES DO MERCADO

“Nós queremos a Barbara Stronger,

 precisamos de mulheres. Queremos

              mulheres poetas”

                              - anónimo

Olga de Vasconcelos (1978 - )– Nasceu em Mirandela. Fez o secundário no Porto e prosseguiu os seus estudos em Psicologia na Universidade do Minho. Trabalha como secretária numa clínica dentária. Tem dois filhos, o Pedro e a Ana, de 6 anos e 8 anos. Depois do divórcio vive com a mãe viúva em Paredes. Escreve poesia sentimental, próxima de Florbela Espanca, o seu grande ídolo. “A poesia tem de emocionar o leitor, dar-lhe asas e emoções fortes”, disse-o recentemente numa entrevista à Time out. É de todas a mais velha. A sua obra deve ser procurada no sítio de poesia www.Noites disformes.pt.

 Rita Pereira de Almeida (1981 - ) – Nasceu em Celorico de Bastos. Fez os seus estudos em Direito. É advogada na empresa do seu tio Ricardo, em Gondomar. É solteira e dedica-se a cuidar, aos fins-de-semana, dos dois sobrinhos. Nos seus tempos livres vê filmes de ficção científica e joga ténis com a sua melhor “amiga”. Escreve poesia desde sempre. Defende os direitos das mulheres, por isso escreve sobre os casos que aparecem no seu escritório. Além de pequenas crónicas, à maneira de Agatha Christie, para o jornal de Gondomar, escreve policiais em pequenos poemas. Detetive Olga Olivier é o seu mais recente poema/policial a sair em breve pela editora Cães & Gatos.

Joyce Dumont (1985 - ) – Nasceu na ilha do Faial, Açores. Aos 19 anos foi estudar enfermagem na Escola Superior de Enfermagem do Porto.  É casada com Carlos Pinto e não tem filhos. Escreve poesia desde os 30, depois de ter encontrado, na Feira do Livro do Porto, o livro Poemas de Judith Teixeira. Dedica-se aos haikus (escritos com a grafia: AiCus) e às quadras, muitas delas dedicada a Nossa senhora do Ó.

Liliana Sousa (1987 - ) – Nasceu em Coimbra, mas vive atualmente em Lisboa. Vive com o namorado num apartamento e mais três pessoas. Divide o seu tempo entre o bar Noite Negra e a Academia dos Rebeldes, onde faz um Workshop de escrita criativa. Nunca quis ir para a faculdade porque sempre soube que era um desperdício de dinheiro e de tempo. Escreve poesia pelo bar e nas suas folgas vai lendo A Comédia Humana de Balzac. Tem Rimbaud e Che Guevara em todos os cantos da sua casa, vários cartazes e t-shirts. Tem dois livros de poesia: Vaginas Negras e Cá estamos nós!

 Teresa Eanes (1987 - ) – Nasceu em Leiria, mas vive no Porto. Estudou artes visuais no liceu até ao 12º ano e dedica-se à olaria e à poesia. Além de pintar dragões de barro à mão, pinta azulejos e outros diversos potes. Gosta muito de Virgínia Woolf e escreve longos poemas narrativos sobre a opressão masculina. Namora com a Carla que é polícia e não gosta de poesia. Prepara o seu primeiro livro de poesia: “Nunca mais”.

Paula Sousa Freire (1989 - ) – Nasceu em Paredes. É investigadora em estudos feministas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Criou a plataforma “Poesia Top -” e dirige a plataforma online “Mulheres unidas”, onde todas as mulheres podem partilhar os seus poemas. Foi uma das principais organizadoras do Festival de Poesia – Mulheres ocorrido em Paredes de Coura, em 2009. Tem três livros publicados. Vive em casa dos pais e é namorada do diretor do departamento. Detesta crianças.  

Amanda Botelho (1993 - ) - Nasceu em Évora e atualmente estuda em Lisboa. Trabalha em part-time na Zara e anda a terminar a licenciatura em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa. Tem dois livros publicados e um blog - Mulheres Foda. Gosta de falar de Marx e de Nietzsche com os seus colegas de trabalho. Sempre que pode, falta ao trabalho. Vive numa relação a três com o Jorge e a Rita. Tem um caniche.  

 Jéssica de Jesus Sousa (1995 - ) – Nasceu no Porto e estuda História da Arte na Universidade do Porto. Vive com os pais e sonha vir a abrir uma fábrica de pronto a vestir, uma marca com o seu próprio nome. Aos sábados ajuda a tia Teresa na sua galeria de arte, uma que fica na Miguel Bombarda. Começou a escrever poesia há duas semanas e já tem dois livros para sair. A tia aconselhou-lhe a criar um blog chamado “Jesus Sousa poesia”. Esta semana deu entrevistas ao Correio da Manhã, Time Out e Jornal de Notícias.

Paula Vieira Lino (1998- )- Nasceu em Valongo. Estuda psicologia na Universidade Católica do Porto. Começou a escrever poesia aos 15 anos. É uma leitora assídua de Manuel Alegre, Pedro Jerónimo de Aguiar, Matilde Sottomayor e Sousa de Almeida. Tem um livro prestes a sair. Foi convidada do Porto Canal para falar de poesia, ao lado do ilustre poeta Jerónimo Galvão e da poetiza Teresa Sousa.

Maria Teixeira (1999 - ) – Nasceu em Viseu e vive em Lisboa, onde estuda ciências da comunicação. De todos os poemas que escreveu, apenas guardou três, aqueles que não queimou. De momento lê Homero, a Odisseia, mas risca todas as repetições. Sonha em escrever uma epopeia apenas com mulheres – Amazonas.

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Edward Burne-Jones - “O espelho de Vénus”, 1875

Três textos e três desenhos de Thiago Barbalho

Pra elas continuarem

Por muitas épocas que ando com minha rede de caçar aparições. Um dia um mendigo falou: leva suas caças pra carimbar com atestado de autenticidade. Aí eu levei, porque o mendigo falou que marca de carimbo era coisa boa. Mas o moço do carimbo fez careta e contestou minhas aparições.

Passou.

Continuei praticando a mesma realização sem pensar muito, mas com um desgosto crescente de lidar com gente, de não concordar com razões de me contestarem, de não conseguir me equilibrar no absurdo das ordens. O mundo dos homens me sugava com seus mistérios ruins.

Por onde passei pra descansar fiz amigos, e dei de presente a eles várias aparições. Aí eles também disseram que já era hora de tentar ganhar carimbo de mundo de novo, que ia ser bom pra mim de algum jeito que eu ainda achava torto.

Estranho que a gente espere permissão pra se dar.

Mas como sou manco da lógica direita, aceitei e tentei.

De novo: não.

Ampliei uma coleção triste de nãos e fiquei muito quieto e etílico. Tiago, Rogéria, Vini e Luis foram pessoas que me acudiram e têm me ajudado a caminhar até o terreno dos ninhos. Estou reaprendendo a habitar pessoas, plantas e bichos. Agora quando meu olho brinca as aparições são mais tranquilas.

Se eu ainda gostasse de caçar era capaz de ter empalhado cabeças douradas, mas quem precisa de troféu?

Na aparição das coisas existe um sorriso sem nome que quando eu pego a minha rede ele diminui. É assim: que nem um vaga-lume doador de lágrima. Por isso escolhi ficar só olhando mesmo. Em vez de prender encantos eu fico calado, e dou meu olho às coisas pra elas continuarem.

sem título XI [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

sem título XI [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

Lanterna 

Uma vez eu me perdi numa floresta. Não estava sozinho. Um homem me acompanhava. Eu ainda não sabia que ele era louco. Quando digo louco não digo livre, digo assombrado por seus próprios demônios: visitado pela sombra do próprio perigo. Ele já tinha falado sozinho várias vezes perto de mim e eu notei que ele só falava de tragédias, assassinatos, pessoas que se matam saltando de montanhas e cachoeiras, gente carregada pela água da chuva, assassinos, acidentes. Esse homem sem disfarce tinha o poder de me confrontar com tudo o que não se controla, por mais precavidos que sejamos – e acho que foi por isso que comecei a ter medo. Até ali eu não desconfiava. Eu sei que ele tinha um coração puro. É o tipo de coisa que você percebe. Mas isso não exclui ninguém do perigo. Então eu o ajudei e paguei pra ele me guiar pela floresta. E ele topou. A gente passou dois dias caminhando. Ele me contou que as pedras nos fazem susto, e eu olhava as pedras e via formas de rosto. Eu tinha medo de ficar com medo do que ele me contava, mas não tinha nenhum medo de ele ser violento ou se voltar contra mim. Eu tinha medo de me dar conta de que éramos iguais. O mal não precisa ser intencional, consciente. Ele é mais perverso quando dissolvido? Mas eu não pensava nessas coisas, e o silêncio habitado pelo vento nas árvores era bom. Até que a gente se perdeu. A trilha sumiu. Por uma hora ficamos desesperados à procura do caminho. Seguimos uma nascente, mas nada de reencontro. A tarde ia se despedindo e a noite nos queria sobre sua língua. A minha boca ficou seca e o meu coração não cabia. Quando o perigo é real não temos tempo pra imaginar. O louco que me guiava estava mais apavorado do que eu. Ele se sabia responsável por dois. Até que resolvi tomar a frente do seu pânico e propus voltar muitos passos. Quem reencontrou o rumo de continuarmos vivos fui eu. Descarregamos alívio nos nossos corpos. Alcançamos o abrigo e adormecemos seguros de nós mesmos enquanto a noite passava por dentro dos nossos estômagos. No dia seguinte me dei conta de que preferia viver. Disso eu não sabia tão bem. Desde então passei a caminhar com a minha própria lanterna.

sem título XIV [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

sem título XIV [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

Igual ao seu

Enquanto seu nome é de chumbo, o meu é de apóstolo. O seu nome de trás pra frente é o nome do meu irmão que não nasceu. O meu nome, quando pronunciado, espalha fé nas varandas. O seu, terror sobre os prédios. O meu nome de cabeça pra baixo é um dos nomes de deus. O seu nome é embaçado pelo pó que você disse nunca mais cheirar. O seu corpo tremendo de tristeza e você sem admitir que isso se chama vício, e não liberdade. São coisas tão próximas. Azar. A minha arrogância quis trucidar em você o anticorpo da dor só pra me expandir. E aí, antes que eu me desse conta, deixei o caminho aberto e você se ampliou em mim. A ambição é uma lâmina sem disfarce. Eu queria te convencer a se curar da maldade. Mas a maldade também é arrogante. Prefere não se saber. Você me pedia ajuda pra escapar da jaula que fabricou ao redor de si, e eu disse sim porque sim é a palavra que eu mais digo, porque sim é sinônimo de dois, mas você não queria liberdade, você só queria se esquecer por um momento e depois voltar à prisão. Que retrocesso. Tempo perdido, dor ganha. O seu uivo por socorro era o que eu queria ouvir e foi o que você deitou no meu colo. Mas, como todas as coisas que nascem em você, esse apelo era vaidade, e eu dei de cara com a sua distância. O vaidoso é o mais solitário dos homens. Eu queria te penetrar com meu raio de sim até que você entrasse em êxtase por aceitação. Por ter sido um homem que ambicionou, eu rachei. A generosidade que em mim é ordem me atravessa e me faz sofrer. Minha lucidez, ilusão, aponta pra iluminação. O meu nome vem de deus. Tudo o que chega até mim quer melhorar. A sua maldade me purificou. O meu nome é fera sem limite, brisa, pássaro, stultifero vegetal. Agora eu só uso roupas sem estampa. O que eu faço é delírio de bondade. Meu delírio é acreditar no sorriso. Você precisava acreditar comigo. Quando duas pessoas acreditam na mesma coisa, nasce um deus. Aí você não ia sofrer porque eu te daria razão. Que é na razão que o meu nome ganha forma, é real e bom, e que pode ser igual ao seu.

sem título IX [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel

sem título IX [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel

Três tempos sobre uma praça vazia

Três tempos sobre uma praça vazia
Pedro Braga Falcão

Quem confundiu os três tempos

com uma praça vazia deixou desperta

a cidade de um cinzel ou de um escultor

que esculpiu letra a letra uma esfinge

mas ela desta feita não devorava homens

sorvia almas a três tempos como se

a humanidade adormecesse sempre

prostrada e quem confundiu a praça

despida de páscoa ou os ramos caídos

nunca se preparou para o sorriso da estátua

nunca se preparou para uma rota no deserto

e nunca viu uma planta a três tempos

uma roseira ou um acanto ou um papiro

que nunca puderam rasgar a secura

da tua voz que declamava areia e pronunciava

enigmas de praças agora sim silenciosas

como pequenas sombras sem graça ou escuras

como sempre fingiram os planaltos quando

quando os profetas lhes reclamavam a altura

a três templos três tabernáculos tu nunca

tu nunca confundiste a noite com os teus joelhos

mesmo que eles nunca repousassem sobre lajes

três tempos    reclamavas     a tua língua vermelha

descansava na boca a imaginação do céu

e de lá vinham sussurrantes os últimos planetas

e eu decorava os seus nomes ou melhor

decorava o último dos três     o que num lamento

morreu da minha infância agora agora

que vejo a praça vazia não espero vestes

vestes brancas ou anjos ou esfinges agora

prostrado sou eu que pergunto que animal

que animal tem três valsas e nunca se despede

nem quando a terra o cobre com o esquecimento

que eternidade tem essa alma que vive

mesmo que a escuridão da praça vazia

o convide ao pó e à sombra mesmo que

ainda que todo o silêncio seja provisório

mas já tu me preparas a esfinge     a afias

a embotas     a tornas macia     manejável

já tu de dia lhe chamas uma história     a aninhas

a acalantas com pequenos gestos de acanto

e logo no deserto as raízes procuram não a água

mas três tempos de praças vazias sem que nunca

nunca se tivesse perguntado o que faremos

de todo este espaço quando apenas os nossos filhos

os nossos tristes filhos andarem por cá o que será

dessa escada que construíste em madeira

e que nunca levou a lado nenhum    apenas sabia

o que será de nós    os mortos    quando confundirmos

a praça vazia com a solidão do tempo

nem que fosse em valsas de mil tempos

e nunca me apercebesse de ti no deserto

o que será de nós quando a areia chover

e a água nos cobrir de tempo o que será

da esfinge quando dela restar apenas o enredo

o que será dos que confundem a lentidão

com os três templos arrependidos os três

os três tabernáculos o que será de mim que pergunto

a mais humana das perguntas    se és tu

e vejo estarrecido uma esfinge degolada

a mil tempos    isto é   todos os romances escritos

de todas as praças vazias.

 

 

Marinheiro com Residência fixa

Com Navalhas e Navios – Poesia Reunida 1972- 2012-

de Urbano Bettencourt (2019)

Prefácio: Carlos Bessa; Edição Companhia das ilhas

     A primeira vez que ouvi o nome de Urbano Bettencourt foi no ano de 2003, em Ponta Delgada. Tinha, como se pode facilmente confirmar, 20 anos. Lembro-me ainda hoje desse dia, ou melhor, da conversa em que o nome apareceu. Um dos meus amigos, um rapaz que na altura estudava Filosofia na Universidade dos Açores, e que gostava de livros como eu, referiu o nome do poeta contemporâneo açoriano numa conversa sobre poesia, onde andaria, provavelmente, autores que andávamos a ler e, inevitavelmente, Antero. Digo inevitavelmente porque, bem ou mal, a memória do grande poeta sempre esteve bem presente nas ilhas, e no espírito de quem lê poesia nas ilhas, o que era o nosso caso, rapazes de letras e na casa dos vinte.

     O mesmo Antero aparece como título de um livro de Urbano Bettencourt, já em 2006, e que, por algum motivo que ainda não sei bem, me fez pensar no livro de Armando de Silva Carvalho – Anthero, Areia & água, de 2010. Desse livro Antero, de 2006, o poeta só nos deixou, nesta antologia, um único poema, o que criou em mim, desde logo, uma curiosidade em ler a totalidade do livro. Será mesmo um livro? Ou será apenas um poema solto escrito em 2006?  Eu poderia ter perguntado diretamente ao poeta, mas preferi não o fazer, pois o leitor é que tem de ir à procura do que lhe falta, algo que terei de fazer quando estiver em S. Miguel, porque bem sabemos, e quem não sabe digo-o já, ter acesso a livros das ilhas, estando no continente, é um tormento, sobretudo se os livros já estiverem fora do mercado. (Esse tema dava pano para mangas, mas deixemos para outro dia).

     Embora passasse a conhecer, em 2003, o nome de um dos maiores poetas açorianos contemporâneos – Urbano Bettencourt – a leitura da sua obra foi sendo feita de forma dispersa e muito tardiamente, um ou outro poema apanhado por acaso em revistas ou antologias de poesia açoriana. E isso deveu-se por minha culpa e não pelo poeta que foi publicando com alguma regularidade livro atrás de livro. Ao contrário do que a maioria das pessoas possa pensar, sou um leitor muito lento, e quero continuar a ser um leitor lento. Refiro-me, não à leitura do livro propriamente dito, mas, sim, à sua absorção. Um poema pode ser lido em dez minutos, mas a sua compreensão pode demorar meses e até, em determinados casos, anos. Esta é a leitura que me interessa, e a que deveria interessar a todos. Acredito que há poemas que exigem uma vida inteira para serem compreendidos e outros em que uma vida não chega, os que ficarão sempre por ser compreendidos.

     Digo tudo isto para se compreender duas coisas: primeiro) a importância desta antologia para minha geração e para as gerações mais novas, passamos a ter uma visão global da obra de um dos maiores poetas açorianos vivos; e segundo) para dizer que precisei de algum tempo, alguns meses, para entrar na poesia de Urbano Bettencourt. E não sei até que ponto terei entrado inteiramente nela, o que deve ser entendido como um elogio ao poeta, pois exige do leitor tempo.  Ora, quando comecei a ler o livro, não consegui parar, pela simples razão de que me surpreendeu imenso o livro. Aqui é preciso fazer um parenteses, para dizer que Urbano Bettencourt, já com 70 anos, faz parte da geração dos poetas que, realmente, me interessam, ou seja, os poetas que começaram a publicar nos anos 70, ou seja, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Nuno Júdice, etc. Mas também quer dizer, Santos Barros, Marcolino Candeias, etc . Ou seja, estamos perante um autor que vem de uma geração que me fascina, uma geração em que a narrativa e a contenção metafórica estão de alguma forma ligadas. Posto isto, depois desta observação, há que entrar no universo de Urbano Bettencourt.

     O que me chamou à atenção, no imediato, foi a ideia de estarmos perante um ponto fixo que deambula por três universos espaciais/ geográficos diferentes. Ou seja, o ponto fixo será os Açores e a deambulação poética de Urbano Bettencourt anda por: a) Portugal continental b) Madeira c) Canárias e Cabo Verde. Se quisermos podemos resumir em Macaronésia e Portugal continental. O que quero dizer é que  estamos perante uma poesia cheia de referências culturais de diversos pontos do Atlântico, uma poesia tipicamente pós-moderna, rica em relações intertextuais com outros poetas e obras. Dito isto, torna-se claro que a minha compreensão da poesia de Urbano Bettencourt fica aquém do que é exigido pela sua poesia. O que parece ser uma desvantagem é antes uma enorme vantagem, pois é um livro que me obriga a ir atrás de outras coisas, um livro que estimula a minha curiosidade, um livro sempre em expansão todas as vezes que o leio. Ao mesmo tempo, é um livro sobre o universo familiar, a ilha, as coisas simples da vida, o amor, a morte, a saudade, a que se associa algum humor e algum sarcasmo (ver por exemplo o poema “Exercício de Socorro a náufragos (tranquilos ou não) depois de falhar a respiração boca a boca)”). Este poema talvez seja o meu preferido.

     Esse ponto fixo que se move num espaço geográfico extensíssimo, e, diga-se muito claramente, do qual há um enorme desconhecimento no Portugal Continental, tem a sua melhor expressão num dos seus mais belos títulos: Marinheiro com residência fixa, de 1980.  Nesse título, creio, podemos sintetizar toda a poesia de Urbano Bettencourt. Carlos Bessa diz exatamente o mesmo no prefácio de Com Navalhas e Navios: “Marinheiro com residência fixa, que pode ser entendido como a síntese de uma arte poética. É o mar português tão presente na nossa lírica e na nossa épica, um mar agreste e um mar de heróis, mas também território de gente anónima, de diferentes tipos de anti-heróis que deram a vida em nome da pátria ou que dela fugiram à procura de um eldorado.” Por mais que se navegue entre ilhas e arquipélagos distintos, a residência fixa, as raízes de Urbano, está nos Açores, o que faz desta poesia uma poesia rica e cosmopolita, uma poesia insular cosmopolita.

      À primeira vista, parece ser um paradoxo este entre Insular e Cosmopolitismo, mas não o é. Ou seja, a ideia de que a poesia açoriana é um universo provinciano fechado sobre si é a ideia mais errada que se possa ter dela; ela, e sobretudo uma poesia como a de Urbano Bettencourt, é, sim, uma poesia insular com traços de cosmopolitismo de toda a ordem, que vai da poesia das Canárias passando pela poesia de Cabo Verde, até às nacionais e internacionais (veja-se por exemplo Alguns poemas de Wang Yong). É preciso dizer isto claramente, porque eu escrevo do Porto e a maioria das pessoas que vão ler estas notas estão no Portugal Continental, num espaço geográfico que reduz tudo o que pertence à natureza das ilhas ao meramente insular e provinciano. A condição de ser diferente não pode ser reduzida a uma categoria inferior, ela é, sim, o seu contrário, uma poesia rica onde o local encontra-se com o nacional e o internacional.

     Ora, tudo isto para dizer que não percebo a dita e “majestosa crítica” (gosto de ser irónico) deste país. Esta antologia saiu em Setembro de 2019 e, pelo que sei, tem passado despercebida, tem sido até ignorada. É mais fácil escrever umas notas sobre um miúdo da minha geração do que tentar entender 40 anos de poesia de um autor que vive numa ilha no meio do Atlântico. É exatamente para dar atenção a esta antologia que resolvi escrever estas notas, para chamar a atenção de que esta antologia exige mais atenção da parte do leitor, dos bons leitores.

      Com Navalhas e Navios, título retirado de um dos seus poemas, pode também ele resumir toda a obra de Urbano: Navalhas, instrumento de corte capaz de ser tão útil à sobrevivência como ferir, magoar, matar; Navios, meio primordial para a viagem marítima, é também o meio para o sonho, a evasão de si mesmo e o contacto com os outros. Temos assim esse dualismo entre dor e sonho, entre realidade difícil e a possibilidade de imaginação, entre ficar e partir. Temos assim, duas palavras essenciais aos marinheiros: navalhas, a que permite escamar o peixe e cortar as linhas de pesca; e o Navio, o barco que lhe permite recolher o seu sustento e, ao mesmo tempo, sair da sua residência fixa, para mais tarde regressar a ela. Em alguns poemas a marca da dor está bem presente, talvez relacionada com a experiência do poeta com a guerra colonial, na Guiné (ver os poemas Remuniciar o tempo, atente-se à palavra Remuniciar, vinda de municiar, munição) e com a do exílio das ilhas, dos anos em que viveu em Lisboa longe dos seus Açores.

     Num conjunto de poemas de título “Alguns nomes de circunst/ânsia”, são feitas homenagens a Domingos Rebelo, a Virgina Woolf, a Santos Barros, Ivone Chinita e Garcia Lorca. A ideia já referida de viagem marítima é retomada com a ideia de “circum-navegação”, através do uso palavra “circum-negação (uma palavra que desdobra o sentido), uma das primeiras palavras que aparece nos primeiros poemas do livro. Aqui esta circunstância, circum-navegação, está associada à palavra ânsia, o que pode apontar para uma ânsia de conhecimento do mundo (uma curiosidade sem fim) e ao mesmo tempo uma ansiedade que despoleta a criação literária.

     Uma das críticas mais comuns ao livro, é a de que o poeta teria cortado demais, teria selecionado demais para esta antologia. Pode ser verdade. Desta antologia faltam os poemas em prosa e as pequenas prosas, muitas delas com um elevado sentido de humor e de ironia. Neste ponto, não posso deixar de dizer que é uma das facetas que mais me atrai na poesia de Urbano Bettencourt, o que a coloca próximo de outro autor seu amigo e grande poeta –  Santos Barros. E convém referir que Urbano Bettencourt trabalhou sobre a obra de José Martins Garcia, cuja obra é de uma fina ironia e humor fabuloso. Sem querer desvalorizar outros poetas açorianos, estes são, para mim, os três grandes, os que me fascinam e que recomendo vivamente. Contudo, como não sou monóculo, nem ciclope, direi que outros poetas merecem a devida atenção para as suas obras, como por exemplo Emanuel Jorge Botelho, só para citar um exemplo.  

     Com Navalhas e Navios merece mais leituras, mais descobertas. Exige que se leia a antologia de ponta a ponta e, se possível, se recorra às primeiras edições dos seus livros, para melhor entendermos a obra de Urbano Bettencourt. Só assim, o objeto pode ganhar maior amplitude. Não foi minha intensão esgotar o livro nestas notas, mas sim despertar algum interesse, para o lerem com maior atenção. Em nota final de rodapé, não posso deixar de elogiar a capa, pela beleza e simplicidade, porque estou cansado de ver Bruegel e pintura inglesa mutilada e a encher supermercados, como se a pintura só servisse para atrair a compra de livros. Recomendo vivamente a leitura desta antologia. E faço votos para que os seus ensaios, com os quais tenho muito que aprender, e as suas pequenas prosas saem muito em breve.

Ps- Quando terminei estas notas, soube, pelo facebook, que o Urbano Bettencourt ganhou um prémio de reconhecimento pela “Letras Lavadas”; assim, envio-lhe deste lado, os meus parabéns.

notas - Porto, 21.04.20

    

Charles Bukowski, "o homem ao piano"


Buk at the piano.jpg

Tradução: João Coles


o homem ao piano
toca uma música
que não compôs
canta palavras
que não são suas
num piano
que não lhe pertence.

enquanto
as pessoas à mesa
comem, bebem e falam

o homem ao piano
termina
sem aplausos

e logo
começa a tocar
uma nova música
que não compôs
começa a cantar
palavras
que não são as suas
num piano
que não lhe pertence

enquanto
as pessoas à mesa
continuam a
comer, a beber e a falar

quando
termina
sem aplausos
anuncia
ao microfone que
vai fazer
uma pausa de dez minutos

vai
à casa-de-banho
dos homens
entra
numa cabine
tranca a porta
senta-se
puxa dum charro
e anima-se

está contente
por não estar
ao piano

e
as pessoas sentadas à mesa
comendo, bebendo e falando
também estão contentes
por ele
lá não estar

é assim
que as coisas funcionam
quase em todo o lado
com tudo e todos
enquanto ferozmente
nas montanhas
o
cisne negro pega fogo


in Dangling in the Tournefortia, 1981


the man at the piano

the man at the piano

plays a song
he didn't write
sings words
that aren't his
upon a piano
he doesn't own

while
people at tables
eat, drink and talk

the man at the piano
finishes
to no applause

then
begins to play
a new song
he didn't write
begins to sing
words
that aren't his
upon a piano
that isn't his

as the
people at the tables
continue to
eat, drink and talk

when
he finishes
to no applause
he announces,
over the mike, that he is
going to take
a ten minute break

he goes
back to the men's
room
enters
a toilet booth
bolts the door
sits down
pulls out a joint
lights up

he's glad
he's not
at the piano

and the
people at the tables
eating, drinking and talking
are glad
he isn't there
either

this is
the way it goes
almost everywhere
with everybody and everything
as fiercely
in the highlands
the
black swan burns


in Dangling in the Tournefortia, 1981