Entrevista a Paulo Rodrigues Ferreira

Tendo lançado recentemente Sonhos de Lobo, Paulo Rodrigues Ferreira, co-editor da Enfermaria 6, é hoje um homem mais confiante. Poder-se-ia até dizer mais maduro. Encontrei-o numa tasca que tresandava a refogado a ler uma biografia de Napoleão Bonaparte. “Gostaria de ter sido este tipo. Até nascemos no mesmo dia”, confessou com um encolher de ombros que revelava resignação por já não ir a tempo de conquistar a Rússia. Acendi uma cigarrilha, ofereci uma ao autor, que logo recusou dizendo que não era capaz de fumar uma sem fumar duas. O entrevistado é daquelas pessoas que contam piadas sem esboçar um sorriso. Mostra-se sério sem que, no entanto, essa seriedade indicie qualquer tipo de arrogância. Assemelha-se a uma rocha. O mar bate e não se move. Há gente assim. Pergunto-me se terá esta seriedade em todos os aspectos da vida.

 Mal vi o seu livro, fiquei muito curiosa. Adoro gente nascida em Agosto. Leão é dos meus signos preferidos. Muito obrigada por ter arranjado tempo para responder a estas questões. Os seus textos têm muitas vezes um tom de crónica. São textos autobiográficos? Considera-se um escritor confessional?

 Vinha no autocarro a ler uma entrevista de George Steiner em que este cita uma frase de Dostoiévski. A frase era mais ou menos esta: somos livres por podermos dizer não à realidade. Os meus textos têm muito de autobiográfico mas ao mesmo tempo são a negação completa dessa autobiografia. Em The Facts, Philip Roth diz que toda a ficção começa nos factos mas não termina nos factos. Quem conhecer certos acontecimentos da minha infância ou adolescência, reconhecerá muito daquilo que se encontra em Sonhos de Lobo. Mas pensará: isto não é a verdade, as coisas não aconteceram daquela maneira. Os factos são incontornáveis, não podem ser apagados, mas a maneira como decido pegar neles pode transformá-los em algo completamente fantasioso. Sou livre por poder dizer não à realidade, ou melhor, sou livre por poder rescrever uma realidade que foi atroz, modificar uma realidade cruel ao ponto de tornar cómica uma situação que me pode ter trazido um grande sofrimento. Os textos de Sonhos de Lobo são contos da mesma maneira que textos de vinte palavras de Lydia Davis são contos, mas também poderiam ser crónicas ou cartas ou páginas de um diário, mesmo quando se escreve na terceira pessoa e se inventa uma personagem que trabalha na terra e mata os vizinhos. Um dos meus livros preferidos é Cartas a Lucílio, de Séneca. Sempre me pareceu que aquilo era mais do que um conjunto de cartas. Trata-se de uma obra filosófica, de um grande romance sobre nada, sem acontecimentos, sem personagens, só com ensinamentos sobre a vida. Se confessional for algo parecido com aquilo que Séneca fazia, então sou.

 Googlei o seu nome e descobri que este é o seu terceiro livro. Vê alguma relação entre este livro e os anteriores?

 Há uma clara relação entre os três livros: olho para eles e não me vejo a minha imagem. Acabamos os livros e eles desaparecem da nossa vida. Até o estilo com que foram escritos se esfuma. Um foi escrito aos dezoito, outro aos vinte e outro aos vinte e nove. Deve notar-se alguma evolução, tanto em termos de temáticas como de escrita. Quando escrevi os primeiros dois livros, era obcecado pela ideia de suicídio. Tinha até um certo prazer em imaginar situações em que pessoas se matavam. Agora, mesmo continuando com essa atracção pelo suicídio, não tenho tanta necessidade de estar sempre a escrever sobre o assunto. Envergonha-me pensar que publiquei livros numa altura em que nem sabia escrever. Ao mesmo tempo, há algo de fantástico nisto: tentando distanciar-me dos três livros, vejo o esforço de alguém que quer escrever cada vez melhor, o esforço de alguém que é completamente viciado na leitura, que não consegue estar sem ler, que só consegue ler. O caminho de quem lê muito é o da escrita. E a certa altura comecei a escrever. Só não me orgulho de não ter começado a escrever obras-primas com dezoito anos.

 Do que li do livro, dois temas recorrentes parecem ser o ginásio e a literatura. Estas actividades estão relacionadas para si? Lê quando vai ao ginásio? Pensa no acto de escrever como forma de halterofilismo da mente?

 A minha experiência de ginásio é muito curta. Estive uns meses num de bairro chamado “Fábrica do Físico” e assisti a situações hilariantes, como ao desabafo de um pai matulão que já não sabia o que mais fazer para que o filhote melhorasse na escola. Dizia, quase a chorar, que até o tinha espancado e nada, só negativas. Mas lia quando ia ao ginásio, especialmente na passadeira. Agora leio a passear os cães e a exercitar-me no jardim. Ler talvez seja uma forma de halterofilismo da mente. Quanto mais lemos, mais nos habilitamos a ler livros cada vez mais difíceis. Não se começa logo com Wittgenstein. É preciso começar com pesos mais fracos. Pode ser que aconteça o mesmo na escrita, mas parece-me que os processos da escrita são menos conscientes. Não consigo racionalizar. Sei que escrevo cada vez melhor mas não sei se isso se deve a escrever há cada vez mais tempo. O José Rodrigues dos Santos escreve mil páginas por ano e não escreve cada vez melhor. É difícil. O Namora também escrevia muito. E a trampa que aquilo é.

 Num dos textos do livro, duas personagens fogem para os Açores. Porquê os Açores? Não acha que há melhores sítios para onde fugir?

A questão é: haverá sítio algum para onde fugir? A nossa cabeça vai connosco para todo o lado. Os nossos problemas são os nossos problemas, não são os problemas da terra em que vivemos. Os Açores é uma terra pobre o suficiente para personagens que desejam viver longe do mundo civilizado. Fugir é uma palavra central. Talvez una quase todos os textos do livro. O mundo é tão cruel, dói tanto existir em todo o lado, que talvez a solução seja existir num sítio onde não exista nada. As pessoas não fogem para a Jamaica ou para a Tailândia, não vão participar em orgias para o resto da vida: vão fugir para o nada, são campónias e regressam ao campo. É como se não desse para escapar da depressão. Imaginar a vida como um círculo. Fugir, fugir, até regressarmos ao ponto de origem, ao ponto onde se encontram todos os fantasmas.

 Publicou o livro numa editora chamada Enfermaria 6, da qual é também um dos editores. Não acha um nome um bocado triste para uma editora? Não preferia publicar o livro numa editora com um nome mais alegre, como Lua de Papel ou Chiado Editores?

 É preciso respeito pelo nome Enfermaria 6. É só o título de um dos melhores contos de Tchekhov. Quanto à Lua de Papel ou à Chiado Editores, respeito muito as pessoas que lá trabalham mas acho horrível que se pague para editar um livro. Guardo mais carinho por quem paga para ter uma mulher ou por aquele pai que paga para ter a sua cria inscrita num clube de futebol. E Lua de Papel? Como contar isso à família? Já não basta passar a vida a dizer mal da família? Contar à família que se publicou numa editora que lembra origami.

 Um escritor contemporâneo acusou-o de cultivar o humor negro na sua escrita. Como responderia hoje a essa afirmação?

 Primeiro, é preciso esclarecer uma coisa: eu só acho essa pessoa contemporânea. Para ser escritor não basta escrever nem beber vinho nem ser muito famoso no facebook ou ser considerado um guru para meia-dúzia de arrivistas que passaram ao lado de livros fundamentais. A opinião dessa pessoa vale nada. Quanto ao humor negro, isso incomoda-me por considerar que aquilo que faço não é humor nem negro. Dedico-me à escrita. É isto. Vejamos um exemplo: a obra de Samuel Beckett está carregada de humor e de cenas sórdidas. Mas será natural resumirmos o que este génio escreveu ao rótulo “humor negro”? Não. Não faço stand-up. Escrevo. E quando se lê a escrita de alguém é preciso ler com atenção. Não basta pegar em lugares-comuns.

 Para além de escritor é também historiador. Pensa escrever um romance histórico?

 Esse é o maior insulto que já me dirigiram. Eu não sou de todo historiador. Ando há 12 anos a fugir da história. Quando acabar o doutoramento, livrar-me-ei desse fardo. Sou um Papillon. Prendi-me a algo que só me faz sofrer.

 Manteve, ao longo dos anos, vários blogs. Qual o papel do blog no seu processo criativo? Acha que faz sentido escrever literatura em blogs?

  Faz sentido escrever. Os blogs funcionam como cadernos. Nem todos os textos têm a mesma qualidade. Muitos são repetitivos. Não tenho blogs para ser lido. Apago-os, às vezes, passado muito pouco tempo. Sou muito desorganizado. Não tenho paciência para guardar os muitos cadernos que compro. A internet é boa para arquivar material que talvez desejemos posteriormente publicar em papel. Nesse sentido, diria que o blog da Enfermaria segue um pouco essa ideia. É para mim uma espécie de arquivo ao qual, ocasionalmente, se vai buscar bom material para publicar. Os blogs não devem ser levados muito a sério mas são muito úteis.

 Onde costuma escrever? Escreve em cadernos ou no computador? Com que tipo de caneta? De pé, sentado, deitado, a fazer o pino?

 Escrevo em qualquer lado, desde que exista barulho. Se estiver em casa, preciso do ruído da televisão. Gosto de cafés, de restaurantes, de autocarros ou do metro. Gosto de ter muitas pessoas estranhas à minha volta. Sofro de monofobia. Não posso sentir-me sozinho comigo mesmo. Escrevo em cadernos mas depois passo para o computador. Canetas, só pretas e que deslizem bem pelo papel. Canetas rollerbal 0,7 ou 0,8. Gosto de escrever deitado. Gosto de estar sempre deitado. Sou como Oblomov. O ideal seria escrever deitado numa cama plantada no meio de um centro comercial.

 Um reputado crítico português em tempos disse dos seus textos que eram como bombinhas que explodiam nas mãos. Revê-se na descrição? O que acha que o crítico queria dizer com isso?

 Vejo que fez o trabalho de casa.  O  crítico estava a ser literal. Cada texto rebentava-lhe nas mãos e trazia-lhe dores. Provavelmente, não acabou de ler o livro e passou um par de dias no hospital com as mãos enroladas em gaze e a levar colírio nos olhos.

 Escreve muitas vezes sobre cinema. Esta é uma arte que influencia a sua escrita?

 Influencia a minha vida. Não sei se influencia a escrita. Não sei o que influencia a escrita. Nisto sou como aqueles escritores que acham que a mão tem autonomia, que escreve sozinha, independentemente daquilo que a cabeça pensa.

Quais as suas referências cinematográficas?

David Lynch, Clint Eastwood, Kurosawa, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Kubrick, Scorsese, Soderbergh, Wong Kar-Wai, Steve McQueen. 

 Gostava de ir comigo ao cinema? Podíamos ir ver as Tartarugas Ninja. Por falar nisso, viu os desenhos animados das Tartaruga Ninja?

 Terei de recusar o convite. Sou um fetichista. Reparei que ostenta uma tatuagem no ombro. Custar-me-ia deveras sair com alguém cujo ombro se encontra coberto por um golfinho azul. Para além disso, faltam-lhe os sapatos de salto alto e a saia curta. Nisto sou radical, desculpe. Mas deixe-me que lhe diga que fico feliz por ter feito referência às Tartarugas Ninja. Poucos sabem mas ao longo da minha meninice imaginei que era o Donatello.

 O autor ajeitou o blazer, despediu-se aplicando-me um suave beijo na testa e garantiu-me que, não fosse o maldito golfinho que tatuei com dezassete anos, me levaria ao cinema. Fiquei sozinha a fumar uma cigarrilha e a ler um dos contos de Sonhos de Lobo. 

TARANTELLA

E que, por acaso, a dança trepe, do mais plúmbeo 
deste esforço esforçado, 
Que o transe percussivo dos ossos acerte no mais raso deste caso, 
nas carnes da terra, relha rítmica antes de se chamar cultivo, lavradio, 
E que o mundo, por curiosidade, a isso assista, censurando, celebrando, imitando, até ao desejo, mais raro, 
de matar por isso, atear desse êxtase estrito de estado limite, 
as decisões terminais da epidemia, da orgia, 
do sacrifício 
perguntando como quem não quer a coisa 
muito quem me dera morrer assim, 
que bicho lhe mordeu, 
me morda já 

11 Perguntas sobre a internet

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Montaigne dizia, nos alvores do cansaço civilizacional ocidental (talvez ele tenha reinventado o niilismo produtivo, depois do grande cepticismo grego, que estranhamente não foi incorporado por Roma, porventura devido à sua gigantesca aposta na ética estóica), que não fazemos mais do que nos entre-glosar (já que interpretamos mais as interpretações do que as coisas, escrevemos mais sobre livros do que sobre outros temas).

Na era da Web2, da sagração da internet, parece haver ainda mais sobre-sentido, nada, ou quase nada, carece de explicação (pensar a sua qualidade é outra coisa). Usada por 40% da população mundial, a internet parece conter todas as ideias possíveis sobre todas as coisas, reais ou imaginárias, passadas ou futuras. Googlem qualquer assunto, por mais excêntrico que seja, e verão que numa fracção de segundos obtêm uma biblioteca disposta a ser imediatamente consultada. Glosando Walter Benjamin, trata-se, pois, de pensar a informação, os discursos de sentido, nos diferentes suportes, na era da Web2 (parece que a 3 se fará em torno de algoritmos que escapam a quase todo o humano, mas era previsível que a internet viesse a prescindir da nossa supervisão), de investigar como isso mudou mais o mundo do que qualquer outra revolução, política, tecnológica ou económica, antes dela. E mudar o mundo é mudar o homem, trata-se talvez desse sobre-homem de que falava Nietzsche, não mais energético e eticamente sobredotado, à maneira de um Superman, mas de um outro homem.

Portanto, o que direi, e disse, aqui é somente um exercício de glosa; socorrendo-me de Dostoïevski, mutatis mutandis, eu sou glosador e o mais glosador de todos. Por isso, se encontrarem na análise que vou fazer o pecado da paráfrase, julguem-me sabendo qual é a minha, e a vossa, condição.

Perguntas sobre a internet:

1- Espaço de subversão ou de normalização? A massificação traz sempre a mediania, a maioria torna-se dominante e, portanto, normalizadora. A partir daí impõe uma racionalização e um controlo sobre, justamente, os que a querem subverter, no interior (super-progressistas) ou exterior (super-conservadores).

2- Saberá a Google mais acerca de nós do que nós mesmos? Talvez, ela trata mais, e mais rapidamente, informação sobre mim do que eu próprio. Mas, vantagem que pode desaparecer em breve, ela ainda não reconhece muitas mentiras, por exemplo, ainda a posso levar a “pensar” que sou genial.

3- Se 80% do tráfico é gerado por 0,3% do conteúdo, não estaremos a andar em círculo? Há essa possibilidade, há muito “déjà vue”, reinvenções da roda na internet. Mas acredito em bolsas de criatividade, desde que não haja adição à popularidade.

4- O novo pensamento dominante é a primeira página do Google? Em muitos casos, sim. Mas há quem não ligue, os outros arranjariam sempre uma forma de se juntarem ao rebanho.

5- Os justiceiros da Web (“piratas”) são o metrónomo moral que devemos seguir? Nalguns casos, noutros são meros buscadores de fama ou de proveitos materiais. Aliás, é bom que não haja santos na internet (já chegam os analógicos para as festas de Verão), vive-se bem melhor ao pé dos impuros.

6- Estará a internet no centro do processo democrático tradicional? Ela não é um média como os outros, muito mais se podem exprimir, o anonimato promove a participação e a sinceridade das opiniões. Neste sentido, é menos um campo da democracia participativa (onde quase sempre os mesmos têm a palavra) e mais um espaço de igualdade e de democracia directa.

7- Pode a internet aumentar a transparência governativa? Devia, mas os políticos parecem evitar, ou retardar, esse desconforto.

8- Estará a internet a promover novas formas de elitismo? Talvez, há ferramentas e procedimentos que só alguns dominam. Todavia, quase tudo parece acessível, os níveis de dificuldade são sempre esbatidos pelos inúmeros tutorials que originalmente ou pouco depois editam os mais variados tipos de “livros de instruções”.

9- Poder-se-á salvar o mundo vendo vídeos de gatos? Esta frase pode rapidamente passar a sintagma conceptual, quer pelo número elevado, e crescente, de pessoas que vê esses vídeos, inclusivamente eu, quer porque designa uma nova forma de alienação fácil de usar (à semelhança de “A religião é o ópio do povo”). Porém, creio que é possível deleitarmo-nos com os malabarismos dos felídeos e ao mesmo tempo sentirmo-nos inspirados a agir contra uma qualquer injustiça ou a desenvolver fragmentos de beleza. Nem todo o lúdico é anestesiante.

10- A internet altera a nossa identidade, auto-identidade e auto-estima? Bem, a não ser que digamos banalidades ou tenhamos um discurso tão esotérico que se torna incompreensível, arriscamos o “não gosto”, de polegar para baixo ou em discurso verbal ofensivo. Na internet pululam os profissionais do ressentimento, e mais tarde ou mais cedo atacam, em alcateia, tudo o que mostre alguma positividade. Daí que alguns possam começar a duvidar da sua inteligência e integridade ética.

11- A internet instituiu uma nova economia da visibilidade? Talvez, mas analisada a questão com mais cuidado, creio que se mantêm as condições ancestrais: erotismo, anormalidade, maledicência, extraordinaridade..., isto é, o velho critério dos extremos e da sexualidade. O surpreendente é que são os “normais” que elegem estes campos, como se quisessem fugir, por projecção, da sua própria banalidade ou falta de impacto erótico que provocam nos potenciais parceiros. 

Para finalizar: I love internet.

Cola

Já não corro atrás do tempo perdido em cafés Cola. Segura a memória para não perderes o único rasto que ainda nos liga. Amanhã deixa de ser verão, as ruas esquecem-se de nós, o tempo aleija na persistência de nunca parar. Onde vais? Ainda não terminei de falar. Aperta a consciência e lembra-te do que dissemos naquela loja, que haveríamos de comprar aquele filme, viver aquela vida e tentar ser aquela felicidade. Lembras-te? Eu também não. Mas gostava que tivesse sido assim.