isto e aquilo

não me contentaria com uma morte discreta
dizia-me depois de acabarmos de ouvir
um álbum dos The Smiths e
admirando o vazio questionamos
a nossa existência com mais tédio que êxtase
talvez a vida seja afinal um sonho perverso isto
até a fome se instalar e então o mistério
da descoberta da linguagem outra vez:
o prato vegetariano Esse Sim
Posso pagar com uma nota de dez?

 

*

olha: mãos inexperientes
isto é o mais próximo que estive da indigência
o rio corre esta tarde e a menina da televisão
anunciou
     a) chuva ligeira sem sombra de ironia
     b)  quebra do verso já não é
motivo para ter medo.

 

*
delicadeza como se delicadeza
fosse uma palavra comum
que rola do bolso das calças
o seu nome e ao que vem?
um longo ano em perspectiva
com fortes probabilidades
de amor e burguesia

 

*
encolhido debaixo da mesa
sabes o que vem a seguir
foste feito para o evitar
mas não o conseguirás
as palavras deles não deitam som
eu não não – M – quase feliz
as patinhas a proteger a cara
e as costas contra a parede
daqui não saio

nada disso
essa trampa que lês nos livros não serve para nada
isso são só histórias inventadas com que enches a cabeça
a realidade é bem diferente

demasiado jovem para sofrer

o espectador diletante diria
como um animal acossado

            nada disso
já está na idade           ou
andei contigo às costas muitos anos ou
já é tempo de começares a contribuir

Alexandre

Alexandre era ainda mais gordo do que Filipe.  Gabava-se: Lá nos acampamentos é uma diferente todas as noites. O seu uniforme de escuteiro e as queixas, quando jogavam à bola, de que tinha o rabinho assado haviam-lhe granjeado fama de larilas. Só se for uma pila, mariconço. E os rapazes riam. Alexandre ria também. Era um tipo alegre. Acompanhava a mãe à missa, acompanhava a mãe às compras. Um bom menino. Quando tirava más notas – e não o podiam acusar de falta de afinco – era sempre a mesma ladainha: se o teu pai fosse vivo isto não acontecia.

Filipe

Apesar de serem incontáveis os seus feitos e repetidas vezes ter dado provas de valentia – expedições aos quintais da vizinhança premiadas com o saque de muita fruta, a morte de pelo menos dois cães à pedrada, ter sido o primeiro a apalpar as mamas à Marisa, apenas para mencionar as mais gloriosas – era por vezes lamentado entre nós por levar nas trombas do pai. O cabrão do velho desta vez arreou-me bem, mas esta merda não vai ser sempre assim. Quem ri por último ri melhorE mostrava com orgulho as marcas da penitência. Suando de boas intenções o patriarca acendia mais um cigarro para acompanhar a cerveja. Sr. João Marques, eu já tentei de tudo, não há maneira de meter o puto na linha.

dava de comer aos gatos no quintal às escondidas da minha mãe
 e eles vinham o pior era quando
 
as gatas escolhiam o quintal para dar à luz
 
e a minha mãe matava os pequeninos
 
a minha mãe enchia a banheira de água
 
e metia lá os pequeninos até eles deixarem
 
de miar eles já não miavam e depois
 
atirava-os para o caixote do lixo como se fossem lixo
 
e já nem eu podia dizer que eles eram outra coisa
 
e ela chamava-me não
 
dês de comer à merda dos gatos
 
já estou farta de te dizer para
 
não dares de comer à merda dos gatos
 
e a gata miava à volta do limoeiro
 
miava debaixo do tanque e eu chorava
 
a gata miava até a minha mãe a enxotar
 
a gata fugia da minha mãe a minha
 
mãe com a vassoura não voltes
 
gata de merda nunca mais te quero aqui ver
 
e a gata fugia mas voltava mais tarde
 
e eu dava-lhe de comer e quando
 
a minha mãe me apanhava batia-me
 
dizia estou farta de te dizer
 
para não dares de comer à merda dos gatos