Livros de 2020: José Pedro Moreira

“Outra lista dos melhores do ano?” dirá o senhor leitor. Bem, mais ou menos, mas nem por isso. As demais listas dos melhores livros do ano são destiladas por críticos sábios, que lêem todos os livros publicados nesse ano, e têm o discernimento para eleger o que merece ser salvo para a posteridade. As nossas listas são antes exercícios de contabilidade pessoal, que partilhamos entre nós e convosco. Este ano coube-me a mim o salvo de abertura. Cá fica a lista dos livros que mais gostei de ler em 2020.

Tom Bissell, Extra Lives: Why videogames matter (2010)

 Tom Bissell (1974) é um autor premiado, com livros sobre política, religião, cinema, um livro de viagens, um livro de contos, e uma série de artigos em revistas reputadas. Tom Bissell é também alguém que adora videojogos, que escreveu argumentos para videojogos, e que passou dois anos a fazer pouco mais do que jogar Grand Theft Auto IV e snifar cocaína, como conta neste ensaio no The Observer, que é também o texto que encerra Extra Lives. Uma defesa da relevância cultural e artística de videojogos; mas também uma série de crónicas sobre alguns dos seus jogos preferidos e sobre as experiências únicas que só videojogos proporcionam.

 

 Orlando Figes, The Europeans: Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture (2020)

 Ivan Turgueniev, Pauline Viardot, uma das maiores cantoras de ópera do seu tempo, e amante de Turgueniev, e Louis Viardot, marido de Pauline, agente cultural e político, tradutor, memorialista, numa viagem espiritual que atravessa a Europa. Outras personagens nesta viagem: George Sand, Berlioz, Dickens, Wagner, Saint-Saëns, Gounod, Chopin, Flaubert, Massenet, Meyerbeer, Rossini, Liszt, Delacroix, Tolstoi, Dostoievski, e muitos mais. Um livro que prova que o único meio de locomoção civilizado é o comboio.

 A descoberta dos livros de Figes trouxe-me imensa alegria este ano. O seu conhecimento histórico é acompanhada por uma mestria narrativa capaz de evocar pessoas e lugares com enorme detalhe e precisão. Dele li também este ano Natasha’s Dance, uma história cultural da Rússia, e Whispers, que acompanha uma série de famílias ao longo da União Soviética, ambos livros excelentes.

 

 Fernando Guerreiro, Ventos Borrascosos (2020)

 Uma narrativa em verso em torno de Emily Brontë, um ensaio sobre o ofício poético que retoma Lucrécio, uma dramatização do devir da existência. Um dos livros de poesia mais estranhos escritos em português na última década.

 Nunca tive muita paciência para quem se queixa dos críticos em Portugal, sobretudo porque este nem sempre é um lamento desinteressado. Temos a crítica que merecemos. Ainda assim, é difícil não ficarmos escandalizados com o silêncio, quando somos confrontados com um livro verdadeiramente único e importante.

 

Sid Lowe, Fear and Loathing in La Liga: Barcelona vs Real Madrid (2013)

 Eu adoro futebol. A intensidade do meu amor pelo jogo tornou-se dolorosamente clara quando as ligas europeias foram interrompidas, e eu dei por mim, como o amante abandonado examina velhas cartas de amor, a ler livro atrás de livro sobre futebol. Livros que tinha na minha lista de leituras há anos mas para os quais nunca tinha achado tempo, como a autobiografia de Johan Cruyff, Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson, uma história das evoluções tácticas, ou The Ball is Round de David Goldblatt, foram lidos este ano. Todos são bons livros (se bem que o de Jonathan Wilson custou um pouco a ler), mas o que mais prazer me deu foi Fear and Loathing in La Liga, de Sid Lowe, uma história da rivalidade entre Barcelona e Real Madrid, e, implicitamente, uma história dos dois clubes.

 Sid Lowe é um dos contribuidores do The Guardian, cuja secção de futebol reúne alguma da melhor prosa escrita sobre o jogo hoje em dia. As crónicas semanais de Barney Ronay, Jonathan Wilson, Jonathan Liew e do próprio Sid Lowe tornaram-se leitura obrigatória para mim. E recomendo também Football Weekly, o podcast de futebol do The Guardian, em que estes autores regularmente participam.

 

Edwin Morgan, Última Mensagem - 100 poemas de Edwin Morgan (seleção por João Concha e Ricardo Marques, tradução de Ricardo Marques)

 A Fiona, uma amiga de Edimburgo, anda a tentar convencer-me a ler Morgan há anos. Ela gosta mesmo de Morgan, inclusive conheceu-o e escreveu uma tese sobre ele. O seu evangelismo morganiano levou-a a emprestar-me alguns dos seus exemplares da obra de Morgan (autografados). Há anos que acumulam pó na estante. A minha falta começou a ser reparada este ano. Livros feitos por amigos são priorizados na minha lista de leitura, e este é um livro editado (excelentemente) por um amigo e traduzido (excelentemente) por outro. Duas conclusões: Morgan é um grande poeta e eu sou um idiota por não o ter lido mais cedo. Perdão, Fiona. Obrigado, João Concha e Ricardo Marques.

 

Timothy Snyder, The Road to Unfreedom (2018)

 Um estudo sobre as ideias e realidade histórica que formaram a Rússia de Putin, o centro do movimento anti-liberal moderno, que nos deu prendas encantadoras como Trump e Brexit.

Quatro poemas de Ismael Ramos

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Tradução de Daniel Ferreira


 

EM CADA UNIDADE FAMILIAR HÁ UM CARPINTEIRO, FABRICA CAIXÕES

 

O pai fabrica a sua própria morte. Esmera-se na figura. Cuida a forma dos dedos. Os signos do desfalecimento.
Estou a pensar no que me ensinou o meu pai. Lembro-me: não quis aprender nada.
O que não queria dizer é: terei sempre dezassete anos.
O pai constrói os órgãos do filho à sua semelhança. Confia na piedade.
O pai constrói-se dentro do filho. Em madeira. Depois arde.

 

de Lumes (2017)

 

EN CADA UNIDADE FAMILIAR HAI UN CARPINTEIRO, FABRICA ATAÚDES

 

O pai fabrica a súa propia morte. Afánase na figura. Coida a forma dos dedos. Os signos do desfalecemento.
Estou pensando no que me ensinou meu pai. Estou recordando: non quixen aprender nada.
O que non quería dicir é: terei sempre dezasete anos.
O pai constrúe os órganos do fillo á súa semellanza. Confíase á piedade.
O pai constrúese dentro do fillo. En madeira. Despois arde.

 

de Lumes (2017)  

 

 

EOS

 

Às nove da manhã entra a minha mãe num café ao pé da estrada, coxeando, atrás da minha irmã. Tomam o pequeno-almoço em silêncio. No balcão, eventualmente, alguém toma café e está atrasado para abrir o seu negócio. Provavelmente homens que dormiram umas quantas horas e nada mais. De vez em quando cruzam olhares e trocam dois dedos de conversa. A mãe lê o jornal e a minha irmã tira fotografias de tudo com o telemóvel.

Tomam o pequeno-almoço sentadas numa mesa ao fundo. Os donos do café conhecem-nas ainda que não saibam os seus nomes. A mulher por trás do balcão sorri e a minha mãe devolve-lhe o sorriso.

Depois, a minha irmã tem duas horas de inglês, ortografia e matemática. Isto quatro dias por semana. A minha mãe passeia pelas traseiras dos edifícios, duas horas, quatro dias por semana. Às vezes cansa-se e arrasta o pé direito.

À saída voltam ao café ou sentam-se contra alguma parede perto da estrada. O meu pai vai buscá-las na volta do trabalho.

É duro, mas tem de ser. 

 

de Lumes (2017)

EOS

 

Ás nove da mañá entra miña nai nun bar ao pé da estrada, coxean- do, detrás miña irmá. Almorzan en silencio. Poida que haxa na barra alguén que toma café e chega tarde a abrir o seu negocio. Probablemente homes que durmiron unhas poucas horas nada máis. De cando en vez míranse e fan algún comentario a unha da outra. Mamá le o xornal e miña irmá saca fotos de todo co móbil.

Almorzan sentadas nunha mesa do fondo. Os donos do bar coñécenas aínda que non saiban os seus nomes. A muller detrás da barra sorrí e miña nai devolve o sorriso.
Despois, miña irmá dúas horas de inglés, ortografía e matemáticas. Así catro días na semana. Miña nai pasea por detrás dos edificios, dúas horas, catro días na semana. Ás veces cansa e arrastra o pé dereito.

Á saída volven polo bar ou sentan contra algunha parede preto da estrada. Meu pai recólleas á volta do traballo.
É duro, pero ten que ser.

 

de Lumes (2017)

RETRATO DA MINHA MÃE COM UM PÊSSEGO

 

I

 

A minha mãe esfrega um pêssego pela coxa. Há um rasto de cor. Não porque a carne seja branca, mas porque a fruta apodrece.
A minha irmã escreve sobre como as mulheres romanas se maquilhavam usando fruta podre. Diz que é incrível. O que quer dizer é que lhe dá nojo.

 

II

 

A minha mãe arrasta um pêssego pela coxa. Sentada, não há direção.
O gesto não tem função alguma. Por isso é o gesto do poema. Só mancha, cheira, põe em relevo a nudez de tudo o resto.
Eu observo apoiado na porta.

 

III

 

Uma pele roça outra pele. Faz-se ferida, mancha. Desliza antes de chegar ao caroço. Desfaz-se.
E não há voo nem ferida.
Se eu olho, o gesto é quotidiano. Também o poema. O pêssego tem o tamanho do punho da minha mãe.

 

de Lumes (2017)

 

RETRATO DE MIÑA NAI CUN PEXEGO

 

I

 

Miña nai refrega un pexego pola coxa. Hai un rastro de cor. Non porque a carne sexa branca, mais porque podrece a froita.
Miña irmá escribe sobre como as mulleres romanas se maquillaban empregando froita podre. Di que é incrible. O que quere dicir é que lle dá asco.

 

II

 

Miña nai arrastra un pexego pola coxa. Sentada, non hai dirección. O xesto non ten función ningunha. Por iso é o xesto do poema. Só mancha, recende, pon de relevo a nudez de todo o demais.
Eu miro apoiado no marco da porta.

 

III

 

Unha pel roza outra pel. Rompe, mancha. Esvara antes de chegar á semente. Desfaise.
E non hai voo nin ferida.
Se eu miro, o xesto é cotián. Tamén o poema. O pexego ten o tamaño do puño de miña nai.

 

de Lumes (2017)

 

AGOSTO

 

Há barcos e pavilhões em chamas na cabeça da minha mãe. O sol nos recantos da videira.
Um punhado de farpas. Dedos.

 

*

 

Descrevi-o como a queda de uma nadadora. Os pés dobrados sobre a borda da piscina. Mas é mentira.É antes um corpo com varizes, nada parecido a um escorço ou algo redondo. Nada parecido a uma árvore. Tem a ver com a cabeça que bate contra uma pedra. Outra vez. Tem a ver com rezar, jamais com a natação.

 

*

 

Há pássaros a cantar na cabeça da minha mãe. E isso parecia-me belo. Mas os pássaros magoam com o bico, mordem, vomitam. Gotículas de sangue como olhos negros, diminutos.
O pássaro é circunstancial, como a ferida. Mas não cura.
O pássaro jamais se cura e cresce.

 

*

 

É sempre difícil descrever uma queda. Eu vestir-me-ia como o meu pai se tivesse que cair. E estaria calor, porque as coisas caem se estão maduras, se pesam.
Cair, bater, não sangrar.
Debaixo da árvore os homens aguardam a queda da maçã. Ela decidiu apodrecer pendurada.
Não teve escolha.

 

*

 

Eu trouxe toalhas, a minha irmã trouxe toalhas. Mas não havia sangue.
Vestir-me-ia como o meu pai, que apoiou a cabeça da minha mãe sobre o seu joelho e sustentou o que parecia impossível sustentar. Eu chamei-o de ninho de pressões, ainda que ali não nascesse nada.

 

*

 

Talvez foi compreender a cascata. O seu jeito contínuo de quebrar.

 

*

 

Não há fotos porque não se celebra, ainda que se conte.
Se houvesse fotos apareceria uma mulher atrás de uma cadeira com uma máscara de papel castanho. Sem olhos nem boca. E continuaria a ser um rosto.
Se houvesse fotos estaríamos todos juntos na praia. Eu levaria toalhas, a minha irmã levaria toalhas. Duas crianças ao fundo. O meu pai estaria perto da água. Os três vestidos com roupa do dia a dia. Enquanto isso, a minha mãe apanharia sol encostada ao joelho do meu pai, em fato de banho. A luz acariciando-lhe a cara. As folhas da videira que se movem sem deixar cicatriz.

 

de Lumes (2017)

 

AGOSTO

 

Hai barcos e pavillóns en chamas na cabeza de miña nai. O sol nas físgoas da parra.
Unha presada de achas. Dedos.

 

*

 

Describino como a caída dunha nadadora. As dedas dobradas sobre o bordo da piscina. Pero é mentira.
É máis ben un corpo con varices, nada parecido a un escorzo ou algo redondo. Nada parecido a unha árbore. Ten que ver coa cabeza que bate contra unha pedra. Outra vez. Ten que ver con rezar, nunca coa natación.

 

*

 

Hai paxaros cantando na cabeza de miña nai. E iso parecíame fermoso. Pero os paxaros danan co bico, morden, vomitan. Pinguiñas de sangue coma ollos negros, diminutos.
O paxaro é circunstancial, como a ferida. Mais non cura.
O paxaro non cura nunca e medra.

 

*

 

Sempre é difícil describir unha caída. Eu vestiríame coma meu pai se tivese que caer. E faría calor, porque as cousas caen se maduran. Se pesan.
Caer, golpear, non sangrar.
Baixo a árbore os homes agardan a caída da mazá. Ela decidiu podrecer pendurada.
Non tivo elección.

 

*

 

Eu trouxen toallas, miña irmá trouxo toallas. Pero non había sangue.
Vestiríame coma meu pai, que apoiou a cabeza de miña nai sobre o xeonllo e sostivo o que parecía imposible soster. Eu chameino niño de presións, aínda que alí non nacese nada.

 

*

 

Se cadra foi comprender a fervenza. O seu xeito continuo de romper.

 

*

 

Non hai fotos porque non se celebra aínda que se conte.
Se houbese fotos aparecería unha muller detrás dunha cadeira cunha carauta de papel marrón. Sen ollos nin boca. E seguiría sendo un rostro.
Se houbese fotos estariamos todos xuntos na praia. Eu levaría toallas, miña irmá levaría toallas. Dous nenos ao fondo. Meu pai estaría preto da auga. Os tres vestidos de diario. Mentres, miña nai tomaría o sol recostada sobre o xeonllo de meu pai, en traxe de baño. A luz acariñándolle a cara. As follas da parra que abanean sen deixar cicatriz.

 

de Lumes (2017)



NOTA SOBRE O AUTOR

 

Ismael Ramos (Mazaricos, Galiza, 1994) publicou os livros Os fillos da fame (Prémio Johan Carballeira, Xerais, 2016) e Lumes (Apiario, 2017), mais tarde, traduzido para castelhano como Fuegos (La Bella Varsovia, 2019) pelo poeta. Este ano, 2020, Fuegos foi galardoado com o Prémio Javier Morote, concedido pelas livrarias independentes espanholas, na categoria de melhor livro publicado por um jovem autor em 2019. A sua obra integra volumes coletivos como No seu despregar (Apiario, 2016), 13: Antoloxía da poesía galega próxima (Chan da Pólvora e papeles mínimos, 2017), Poetízate: Antoloxía da poesia galega (Xerais, 2018) ou Piel fina: Joven poesia española (Ediciones Maremagnum, 2019). Foi ainda publicado em revistas como A Bacana, Clarín, Dorna, Grial, Luzes, Oculta Lit, PlayGround ou tr3sreinos. Teve poemas seus traduzidos para alemão, castelhano, finlandês, francês, húngaro, inglês e português. Na World Wide Web escreve no blogue O Triste Stephen (otristestephen.tumblr.com).

Três poemas de Os anos (The Years) de Jamie McKendrick

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Três poemas de Jamie McKendrick

de The Years/ Os anos (Arc Publications, 2020)

 Tradução de Tatiana Faia

 

Corte dos Leões

 

Quem saberia distinguir com árduo e suave tão próximos,
líquido de sólido, mármore de água? Qual flui?

Ibn Zamrak

 

Depois de cinquenta anos revisitar Alhambra e testemunhar
a mesma água a jorrar da mandíbula do leão:
lembro-me de usar uma camisa prateada de manga curta
adornada de dragões, e pela primeira vez, 

na pista do aeroporto, ouvir a noite viva
com as minúsculas bigornas das cigarras. Desta vez, a placa de metal
aparafusada ao meu fémur vibra ao seu chamamento, o meu coração
ao murmúrio do mármore, o tamborilar da água. 

 

 

Tardiamoto

 

Por qualquer equívoco cósmico o telefone desligado
disparou um guincho escarlate. – Dei um salto.
Antes das desculpas expirarem pedi e recebi
o número errado que a voz marcara, 

e assim durante um ano inteiro sem uma única conta
fui dono desses dígitos mágicos para dispensar
-- só para chamadas recebidas não feitas
uma ténue linha de salvação apenas para o antigo apartamento 

que na via Torquato Tasso partilhei com a algazarra
de Cerbero a ladrar no pátio – esquece lá a ratazana –
e uma fissura que o terramoto deixou na abóboda do tecto. 

Trinta anos contados, nas mais tardias horas da noite,
tacteio em busca do auscultador de baquelite negra
para ouvir a música de Vénus recuar.

 

A chamada

 

Ainda os vejo a todos, como se apenas
se tivessem juntado em vermelho e cinzento para a chamada da manhã
e cinquenta e cinco longos anos não tivessem passado. 

Walwyn que fala pouco e passa o tempo livre
a enrolar arame à volta de penas berrantes para enganchar
peixe imaginário. Barnes de Tripoli atormentado 

pela asma, que tem uma voz seráfica para cantar.
Rana, o atleta do Nepal, agora encorpado mas
de alguma forma ainda o mesmo, exportador de cigarros 

e pneus para a China. Timmi, o gentil ioruba,
o rapaz mais alto de longe, que morreu de SIDA
há sete anos, um fotógrafo famoso. 

Griffin, difícil de olhar para ele de tão
insuportavelmente belo que era, que uma vez me parou nas escadas
e decidiu “Não gostas de mim tu, pois não?” 

não tive coragem de lhe dizer que não era isso.
Ainda lhes vejo os nomes gravados no livro de ponto:
Lashkari, Maw, Sajadhi, Sewell, Singh –  

o capitão de hóquei que foi poupado ao barbeiro.
Todos começámos em alegria independentemente da
sombria prisão em que nos confinaram.

 

Jamie McKendrick, poeta inglês oriundo de Liverpool, vive em Oxford. É autor de sete livros de poesia, entre os quais The Sirocco Room, Marble Fly (vencedor do Forward Prize), Crocodiles & Oblisks e Out There. De italiano para inglês, Jamie McKendrick traduziu, entre outros, Valerio Magrelli (The Embrace: Selected Poems), Antonella Anedda (Archipelago) e uma tradução completa do Romance de Ferrara de Giorgio Bassani. McKendrick é ainda o editor do The Faber Book of 20-Century Italian Poems.

[O sol crepita no zinco do barracão]

O sol crepita no zinco do barracão.
Os cães espumam encarniçados.
Um vespeiro zumbe na sombra.
Uma foice pende de um prego –

o cabo está rachado,
e a lâmina, romba,
funde-se sob o verdete.
Ulcerado também o prego.

Os ratos urinam pelos cantos.
As batatas apodrecem nas sacas.
O bafio emana das arcas.
Os morcegos oscilam nas vigas.

Decénios de pó acumulado
no chão de terra batida.
Aranhas que disputam as moscas
às osgas e aos morcegos.

Uma brisa salobra desliza
pela frincha do portão,
riçando bolores que foram frutos:
nêsperas, ameixas, pêras, limões.

Ao fundo, no alguidar reluzente,
boia afogada uma ninhada de gatos.
A mãe, ainda jovem, enrodilhada
nos pés da dona, mia, esfaimada.

Seltzer

 

1.

Aqui está o meu quarto, sorrindo como uma floresta

de umbigos                       contudo, em segredo

                                                               tão triste e imundo.

 

2.

respira fundo o suficiente e estamos possessos.

respira novamente e estaremos perdidos.

 

3.

a melhor coisa de hoje

é a ideia do amanhã.

                               faremos um piquenique.

 

4. quem pode argumentar com 6000 andorinhas

voando de uma nuvem única,

                                                               como alegria.

 

5. quando morrermos poderemos ver a Virgem Maria

sentada diante do pai, do filho, e do Espírito Santo

 

agora mesmo contento-me contigo

com o teu soutien desapertado     (sob uma árvore)

no ferryboat da Staten Island.

 

Jim Carroll