"Fim, meio, início", de Anne Sexton

Tradução: João Coles

Havia uma criança indesejada.
Abortada por três métodos modernos
agarrou-se ao útero,
enganchada nele
a construir a sua casa nele,
e de nada servia
boicotá-la.

À nascença
ela não chorou,
levou as palmadas,
mas não berrou -
em vez disso caiu-lhe neve da boca.

Ao crescer, ano após ano,
o seu cabelo tornou-se como uma rosa num vaso,
e sangrou pelo rosto abaixo.
Colocaram-lhe pedras em cima para manter
o crescimento em silêncio,
e embora pisassem,
não matavam,
embora a mortandade nela estivesse enredada desde o início.

Fecharam-na dentro de uma bola de futebol,
mas ela meramente encolheu-se
e fingiu que era uma acolhedora casa de bonecas.
Empurraram para dentro insectos para a comerem às dentadas
e ela deixou-os rastejar para dentro dos olhos
fingindo que eram um espectáculo de fantoches.

Mais tarde, mais tarde,
já crescida, como soem dizer,
deram-lhe um anel,
e ela usou-o como uma raiz
e disse para si própria,
“Não ser amada é a condição humana,”
e estendeu-se na cama como uma estátua.

Então uma vez,
por um terrível acaso,
o amor tomou-a no seu grande barco
e ela escavava o oceano
em escaldante alegria.

E então,
lentamente,
o amor esvaiu-se,
o barco transformou-se em papel
e ela, por fim,
sabia qual o seu destino.
Vira para onde pertences,
para o surdo-mudo
aquela casa de metal,
não deixes que ele te perfure em ninguém.

Do livro póstumo 45 Mercy Street.


End, middle, beginning

There was an unwanted child.
Aborted by three modern methods
she hung on to the womb,
hooked onto it
building her house into it
and it was to no avail,
to black her out.

At her birth
she did not cry,
spanked indeed,
but did not yell-
instead snow fell out of her mouth.

As she grew, year by year,
her hair turned like a rose in a vase,
and bled down her face.
Rocks were placed on her to keep
the growing silent,
and though they bruised,
they did not kill,
though kill was tangled into her beginning.

They locked her in a football
but she merely curled up
and pretended it was a warm doll's house.
They pushed insects in to bite her off
and she let them crawl into her eyes
pretending they were a puppet show.

Later, later,
grown fully, as they say,
they gave her a ring,
and she wore it like a root
and said to herself,
'To be not loved is the human condition,'
and lay like a statue in her bed.

Then once,
by terrible chance,
love took her in his big boat
and she shoveled the ocean
in a scalding joy.

Then,
slowly,
love seeped away,
the boat turned into paper
and she knew her fate,
at last.
Turn where you belong,
into a deaf mute
that metal house,
let him drill you into no one.

3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022

Sete andamentos em torno de Córtex de Hirondina Joshua

Primeiro andamento:  um possível auto-retrato

  

pássaros chamam: — "hirondina"
convocam a limiar vocação das imagens:
o que assusta é a nitidez:
a possibilidade da fala em exercício.
a tirana condição de escapar do sangue.

 

Segundo andamento: Exterioridade em relação à língua

Córtex tem um conjunto  de poemas, que poderíamos dizer dissecam a língua, e a anatomizam em experiência criativa. Trata-se aqui de um olhar de exterioridade em relação à língua, pensada como heterogeneidade, percecionada e sentida como léxico objectal, e ritmo sintáctico, decomposto e ou reconfigurado.

A poeta moçambicana fala outras línguas como o chope  e o changana por exemplo, a par do português; quero com isto dizer, sem entrar em simplificações, que a sintaxe da língua portuguesa se reconstrói num cruzamento de outros ritmos e a escrita é pensada como quase um trabalho de escultura rítmica, lexical e sintáctica , desconstruindo  a força do sentido normativo das estruturas da linguagem.

de repente as palavras estão na minha cara
brincam no meu rosto
basta olhar os animais diante da pedra
nos corredores da insónia
os fortes animais trilham na noite
pelas mãos cruzam a remota
barbárie  
alumiam
velocidades.
às vezes o rosto é
palavra  que os
animais trilham.
 

Terceiro andamento: “Não se pode escrever com as chaves no bolso”

Um dos poemas diz: “Não se pode escrever com as chaves no bolso,  implicando que a porta do sentido é múltipla e nas “gargantas ancestrais” outras línguas se movimentam. Leia-se o poema:

o poema rebarbativo exalta a inocência nos pontos cruciais da fala
poderia trazer o sol na saliva
nas gargantas ancestrais da vocação  erro ao chamar-lhe falo
não se escreve permanentemente com as chaves no
bolso    
nem com a gnose diante dos olhos

O Córtex é a sede do entendimento, da razão. Se não houvesse córtex não haveria linguagem, percepção, emoçãocognição e memória. Aí se situam aspectos básicos da percepção, movimento e resposta adaptativa ao mundo exterior; e outras importantes actividades como a linguagem e o pensamento abstracto.

Tomando em linha de conta esta relação entre córtex e linguagem, o livro de Hirondina Joshua permite, entre vários veios temáticos possíveis de leitura, revelar esse trajecto pela observação da língua enquanto materialidade.

Quarto andamento:  um espaço kórico da linguagem

Ocorre-me aqui a distinção que Julia Kristeva estabelece entre dois planos e modalidades constituintes da linguagem e da significação, um semiótico, pulsional, rítmico, que designa como Kora, pura significância, anterior á figuração, e outro simbólico, lógico, lugar de significação, organizado em discurso, planos que se interpenetram.

Esse plano rítmico, semiótico, é fundamental no livro Córtex, e corresponde talvez àquilo que Mallarmé designou como Mistério das letras,  escrita indiferente ao intelegível, ao sentido, à noção de sujeito; um espaço musical e dispersivo:

desfaço o mioma nas regiões da dor o que fulgura está nas danças
a gravação do solo
o idioma atravessado 

Não se faz um poema com ideias, mas com palavras, afirmava Mallarmé. Com isso, queria assinalar que o poema deve ser também encarado como um objeto em si mesmo. Cito o poeta: "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor". É com essa mesma ideia que ele termina o seu poema experimental:  Un Coup de Dés jamais n’abolira l’hasard. (Um lance de dados nunca abolirá o acaso).

 

Os poemas de Mallarmé representam um esforço para esgotar as formas poéticas tradicionais, como nos sugere um dos versos do poema acima citado: “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados. Considerado um dos mais importantes poetas franceses de todos os tempos, promoveu uma grande revolução na poesia durante a segunda metade do século XIX e, mais tarde, influenciaria movimentos vanguardistas do século XX, principalmente os de vertentes futuristas e dadaístas.

 

Quinto andamento: como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”

 

Poderíamos dizer que a poesia de Hirondina Joshua também se radica nessa família ancestral de desarrumação das estruturas linguísticas, e que no espaço da língua portuguesa, a poeta vai ler/recolher, muito especialmente, em Herberto Hélder uma vocação, que sintetiza a surrealidade, não em expansivo, mas em económico e contido verso, como um “chifre equilibrado no cimo dos poemas”.

queria falar das linhas africanas nos orifícios dos rinocerontes
o chifre equilibrado no cimo dos poemas
alguém diz não entender a veia no meio da cara dos rinocerontes
a severa desordem do ouro no centro das paixões
o chifre equilibrado no cimo dos poemas

Com efeito neste livro parece que o córtex está ameaçado de uma certa desorganização lógica e sintáctica da linguagem,  de um certo “caos”, recuperando a kora rítmica da linguagem, “antes de o poema parir o mundo”:

o mais terrível era o personagem saído das esferográficas gigantes
chamando pelas cidades
agarrado ao silêncio mortal
antes do poema parir o mundo
com as formas cálidas dos fonemas.

Sexto andamento: “Que farei com esta boca feroz?”

 

Roland Barthes em A Lição afirma que “A língua é fascista”, porque obriga a dizer, na sua normatividade sintáctica; a poesia e a literatura trapaceiam a língua, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem. Uma espécie de ferocidade e de manducação da língua, diríamos, retomando um verso da poeta, que nos diz: que farei com esta boca feroz?

 

de súbito vejo um animal carnívoro diante do poema

basta ter fome, a fome vem.
alucino ao esquecer a potência maior dos olhos
escrever é uma demência que patina a cada instante

 

Sétimo e último andamento: “o braço anterior, o lado etéreo da mão”

Esse espaço kórico, rítmico da linguagem - “o braço anterior, o lado etéreo da mão” - vem representado no livro de Hirondina em alguns poemas, associados ao espaço uterino  de abertura ao mundo, à infância primeira, lactente, lactência, câmara pulsional anterior  à noção de sujeito:

construo a ferocidade no seio da mãe,
o resto que vai à boca
desmancha o lado etéreo da mão. 

braço anterior ao líquido.
escolho olhar antes de deitar a pálpebra no rosto
o buraco na minha cabeça aquece
— pai! vem e me olha.

 

A poeta Hirondina Joshua constrói o poema, abrindo o córtex, imergindo no caos da pulsação inicial dos sons, nesse lugar sem luz, em que “está escuro”, para auscultar e simultaneamente analisar, construindo, a formação da linguagem e do verso.

   está escuro acendam a luz
—  a luz está acesa

a cegueira um cheiro que se move no centro do caos
acendam os peixes nas vulvas salgadas
ou dentro da fala toquem na ortodoxa abundância das imagens

Ana Mafalda Leite
(Itálicos meus)

Fleabag

Atenção, contém spoilers.

Estou e não estou inscrito na economia da atenção. Tenho assinaturas digitais nos jornais Público, El País, Le Monde e The Guardian, na revista Philosophie magazine, Netflix, HBO, Amazon Prime e Spotify, uso, embora com uma certa sobriedade, o Facebook e mantenho contactos presenciais e à distância com pessoas muito informadas que vão preenchendo algumas das minhas lacunas . Parece, a mim parece-me, pletórico. Mas com uma certa disciplina do esquecimento e leituras lentas, não me sinto afogado na atualidade e no efémero. Demonstra-o só há pouco ter descoberto uma série, Fleabag, cómica à sua maneira, com duas temporadas entre 2016-19. Em boa verdade, já havia sido informado dos seis Emmys maiores que ganhou e visto uma entrevista da criadora / produtora / escritora / atriz principal Phoebe Waller-Bridge, com um sentido de humor arrebatador. Foi esta entrevista, aliás, que me despertou o interesse, mas como tinha presente alguns episódios do Killing Eve, é ela a argumentista e produtora, mantive a moratória. Não digo que Killing Eve seja má, o talento de Phoebe para narrar histórias possíveis e impossíveis é invejável, mas há demasiados deus ex machina.

Finalmente, até porque tem 8,7 no IMDb (embora o rating desta plataforma digital deva ser contextualizado, há séries e filmes francamente maus que ultrapassam os oito pontos em dez), e, menos importante, apeteceu-me justificar o que pago pela Amazon Prime (na realidade, os portes grátis dos livros e de algum material de ténis compensam bem a anuidade), vi o primeiro episódio (o on demand é incrivelmente tentador, uma quantidade enorme de mundo está permanentemente ao nosso dispor; por outro lado, ficamos mais caprichosos, uma cronologia que depende somente de nós torna-nos reféns dos impulsos).

E foi então que a pequena promessa de felicidade inicial se amplificou até um incondicional deslumbramento.

Phoebe Waller-Bridge compõe uma personagem, Fleabag, que torna risível, e sobretudo auto-risível, situações, diálogos e poses individuais, sem cair nos clichés gastos da comédia mainstream. E faz tudo isso mantendo um realismo só ligeiramente extravagante.

Fleabag gere um restaurante (durante parte das duas temporadas da série sem muito sucesso económico), cuja sócia morreu atropelada quando tentou ter um pequeno acidente para simular um suicídio, queria mais atenção do namorado. A desatenção resultou, numa ironia quase trágica, de ter dormido com a cogerente e melhor amiga, Fleabag. Esta desenvolve então um sentimento de culpa que a lança, muitas vezes sem critério, à procura de redenções. O acontecimento, que nunca ultrapassa o quase-trágico, serve também para expor o apetite sexual um pouco discricionário de Fleabag, incompatibilizando-a com um namorado demasiado straight, pelo menos na cama. E em parte com uma irmã neurótica, mas financeiramente bem-sucedida. Há também um cunhado infantil e libidinoso, um pai que raramente completa as frases, contrastando com a agilidade nos diálogos da filha, e uma madrasta que tem o melhor cinismo que vi nos últimos tempos (interpretada pela magnífica Olivia Colman). A mãe, essa morreu, mas só assombra em pequenas doses a economia das peripécias.

Destaco o aparecimento de um padre, Andrew Scott, na segunda, e última, temporada (o primeiro episódio, em torno de um jantar cheio de mal-entendidos e com uma vertiginosa economia de réplicas, é divinal). Os diálogos à volta da fé, das razões que a podem sustentar, a libido, espiritual e carnal, os prazeres mundanos, puros e impuros, o significado das práticas religiosas, a hesitação entre namorar com Deus ou com Fleabag, tornam a segunda temporada ainda melhor do que a primeira. O padre permite melhorar a complexidade dos diálogos, introduzir mais ambiguidade nas personagens (um aspeto essencial para a qualidade da série, parece, aliás, que a autora se exercita a surpreender-nos com uma dose extra de ambiguidade sempre que uma ou outra personagem consolida um traço de personalidade, é assim sobretudo com a madrasta e com o pai). Ambiguidade que emerge também no jogo que estabelece com os espectadores; o espetador estético, de que falava Nietzsche, é surpreendido pelos apartes que Fleabag, ou Phoebe Waller-Bridge, não sabemos, estabelece diretamente (bom, há sempre mediações) com ele, desviando o olhar da ação ficcional para o confrontar em modo metaficcional. Um achado que sofre uma torção quando o padre julga que essa cumplicidade com os espetadores é, afinal, um vislumbre de uma metacomunicação, talvez com o divino. De igual modo, num momento específico Fleabag, ou Phoebe Waller-Bridge, também não sabemos, tem um gesto pudico (contrariando o seu natural despudor) relativamente à equipa técnica, lembrando-nos de que há uma realidade real, chamemos-lhe assim, a par da realidade ficção. Isto serve também para não normalizar a extravagância, nenhuma personagem se acomoda na caricatura.

Finalmente, em jeito de aviso, reafirmo que Fleabag não tem nenhuma linha de fuga para a tragédia, e isso é voluntário, a autora mostra-nos bem onde tal poderia ter acontecido (na morte da amiga ou quando o padre diz que quer continuar a estar casado com Deus), para deixar claro que o compromisso é exclusivamente com a comédia. Se quiserem uma comédia a cair bastante para o trágico (das pequenas coisas, da vidinha, com personagens comoventes), vejam a excelentíssima The Rehearsal da HBO.

"Lugares Comuns" de Ana Luísa Amaral

In memoriam Ana Luísa Amaral (1956-2022)

Um dos meus poemas preferidos de Ana Luísa Amaral passa-se num café inglês. Chama-se “Lugares Comuns.” Nele, uma mulher a fazer tempo para apanhar um avião entra num café manhoso em Londres. Em parte, gosto desse poema porque aquele café me é familiar. Tenho a certeza de que já lá entrei muitas vezes, embora não faça a mínima ideia de onde fica ou que café possa ser ao certo. Na verdade, à medida que vamos lendo o poema, fica claro que todos sabemos que café é este e que todos já lá entrámos, em Londres e noutras cidades. A qualidade do café não é má, mas também não é espetacular e muitas vezes temos sido cúmplices deste café. A qualidade é, na verdade, melhor do que tínhamos esperado em face do sítio. Neste poema, no entanto, a familiaridade do lugar aponta constantemente para a absoluta necessidade de o estranharmos. E acho que esta tensão entre estranheza e familiaridade, tantas vezes traduzida num jogo entre escala épica e quotidiano noutros poemas de Ana Luísa Amaral, é um dos aspectos mais singulares da sua poesia. É algo que está muito vivo na relação com coisas, pessoas, lugares que aparecem noutros poemas. É uma das coisas de que mais gosto no seu estilo.

Neste poema em particular, este manhoso café inglês que é um lugar-comum está povoado de homens. Exactamente vinte e três, diz-nos a narradora. Uma mulher entra então num manhoso café inglês onde está sentada uma tribo de vinte e três homens e apenas uma mulher (quieta, a ler a um canto) e, assim nos é dito, ao entrar, “todos os preconceitos” de mulher da narradora vieram ao de cima: só havia homens a comer bacon com ovos e tomate. O outro preconceito não tem muito a ver com comida, mas a narradora repara que, estando sozinha neste café onde só há homens, não é necessário querer saber muito deles, que os homens ingleses até nem se metem muito com mulheres, ao contrário dos “nossos” (homens portugueses, isto é). Reparo que nunca em momento nenhum do poema o cheiro do café é descrito, mas a impressão desse cheiro entranha-se em nós à medida que vamos lendo. A narradora diz-nos que o café é manhoso, mas não é mal-intencionado e que ao ver a mulher que lê a um canto se sentiu mais forte e que não sabe porque é que se sentiu mais forte, mas que assim foi. A voz que se ouve no poema é parte da instabilidade que constantemente nos acompanha ao lê-lo.

A instabilidade do olhar da narradora, que se expressa com uma ironia sarcástica, mistura de familiaridade e desconforto, que não é muito raro uma mulher sentir em certos cafés manhosos por esse mundo fora, é decisiva na forte impressão opressiva que nos é comunicada. Este poema sobre este café que é um lugar-comum lembra-me um pouco a cena de abertura do Inglorious Bastards de Quentin Tarantino. E imagino que talvez Ana Luísa Amaral se risse desta comparação e talvez discordasse. Mas é uma mistura de opressão e potencial de violência que só sentimos quando damos com as forças mais opressivas da história. Começa com o facto de que, com um sarcasmo magistral, que satiriza em apenas uma estrofe tanto o colonialismo português, quanto o inglês, quanto o provincialismo mesquinho de ambos, deixando-o a pairar sobre o palco do poema, e que segue uma linha que continua no breve diálogo que a narradora tem com o homem que lhe serve o café, cujo sotaque cockney se houve de longe numa das frases mais batidas que empregados de cafés manhosos gostam de dizer a mulheres em cafés de Londres: “There you are, love.” Consigo ouvir o sotaque e a inflexão com que esta frase é pronunciada não só quando a imagino proferida em poemas de Ana Luísa Amaral passados em cafés manhosos de Londres, mas dita por motoristas de autocarro, vendedores de bilhetes de comboio, polícias... e reparo que é sempre um homem que a profere. Claro que numa década de viver em Inglaterra é bem provável que em algum ponto uma mulher que me tenha vendido um café algures me a tenha dito, talvez até muitas vezes. Mas nunca me lembro dessa frase dita numa voz feminina. Admito que é um preconceito de mulher dizer que esta é uma frase para ser dita por um homem.

A outra coisa que causa tensão e instabilidade no poema, e que explica porque é que ele me faz pensar em Tarantino, é a resposta que a narradora imagina dar a este homem, “go to hell,” mas é uma frase que nunca é proferida. E a outra ponta solta do poema é a mulher calada a ler a um canto, com a sua força inexplicável, com o seu “That’s it” de leitora absorta, pronunciado quase no fim do poema, que comunica força à outra mulher. E penso que parece que este poema não muda nada, mas há nele um olhar profundo que denuncia tudo. E uma vez visto o que ele descreve, não é possível deixar de o ver. Denuncia a complacência com que olhamos os lugares-comuns, as nossas baixas expectativas em relação a eles, o facto de que queremos passar por eles incólumes, não respondendo apenas para beber o nosso café em paz (não parece, mas neste café há um eco oblíquo de outro café, um pouco mais mítico, que um poeta português bebe noutro sítio da Europa, o de “Em Creta com o Minotauro”), um tipo de violência quotidiano e intolerável que de tão entranhado deixamos de o ver, tão entranhado que destrói até o outro mais provinciano dos mitos e preconceitos portugueses, o de que lá fora é que é, porque dentro das nossas fronteiras já não há nada a fazer. Exceptuando que esta mulher que entra neste café sai dele e sabe exactamente o que ele significa, e sabe explicar o que é que ele quer dizer, e no fim está menos sozinha porque encontra até a voz da outra mulher.

            O meu café preferido em Londres fica em Monmouth Street. Vou lá normalmente para encontrar-me com uma amiga que gosta de se sentar ali a ler ou a escrevinhar. E nunca entrei neste café, que não é manhoso, nem nunca os meus olhos deram com os desta amiga quando ela os levanta do que está a fazer, sem me lembrar deste poema de Ana Luísa Amaral. Talvez os poetas de quem gostamos continuem vivos no amor que temos aos poemas que deles mais amamos, na forma como vemos o mundo pela lente desses poemas. Podemos perder coisas que nunca nos aconteceram. Sinto uma tristeza indizível de não ter conhecido melhor Ana Luísa Amaral e de agora não a poder levar a beber um café em Monmouth Street. Mas quero crer que ela está agora no céu dos poetas, a beber um café com Emily Dickinson.

O poema pode ser ouvido lido e ouvido aqui na sua voz.

 

Tatiana Faia
Oxford, 7 de Agosto de 2022