Rua das Gáveas / Relâmpagos

Era de noite na rua deserta.

Estávamos a escassos metros do ponto exacto

(e de mau gosto)

onde noutra noite menos negra

as nossas bocas enfim se saciaram.

Tenho esta infeliz inclinação

para fazer as melhores coisas nos piores lugares

para escolher as piores frases

para as conclusões mais importantes.

 

Não te peço a salvação, quero apenas que existas

ao meu lado:

serei instantaneamente melhor

e melhor a cada momento em que possa beber das tuas frases

e meditar no teu sorriso

e suar no teu pescoço

e respirar pelos teus olhos.

 

Era de noite na rua deserta onde

eu consegui fazer o impensável:

como se tivesse uma arma de balas de borracha

a disparar contra o teu corpo

e esperasse que ao esgotar as munições me abraçasses

e me dissesses que compreendias

aquela absurda forma de te dizer:

 

quero-te na minha vida.

 

Esperasse que ao esgotar as munições

o teu corpo não sofresse as convulsões

que a tua voz dissimulava em frieza.

 

Que ao esgotar as munições

não tirasses do teu coldre tu também a tua arma

(e como doía

cada bala que eu merecia).

 

Como se esperasse que ao esgotar as munições

não me invadisse num relâmpago

o pânico e a lucidez e um relâmpago,

 

um relâmpago a rasgar-me o diafragma quando as tuas

mãos feridas

me envolveram o corpo ferido e a tua boca

sôfrega buscou a minha

e por uns segundos um minuto uma vida a eternidade

a todas as feridas veio a salubridade.

 

Depois partiste pela rua deserta.

Era de noite.

 

(Eu estava errado e tu estavas certa.)

 

Deixa-me crer nesta ornitologia de bolso:

antes falhar um golpe de asa ao descolar

do que quebrar estrondosamente em pleno voo.

 

Pousemos pesadamente sobre o chão.

 

Agitemos os braços com força até lhe apanharmos o jeito

há tantas cores que não conheço nos teus olhos.

 

Dá-me a tua mão

voamos juntos para dentro deles

pelo meio dos relâmpagos que nos alumiam o peito.

Os maias

Luzes vermelhas piscavam numa varanda do prédio em frente quando Carlos saiu. Dois andares acima, um Pai Natal pendurado numa escada tentava alcançar uma marquise que tinha todas as janelas fechadas. Desde o início do mês que ali estava, naquela posição, sem subir ou descer um degrau. Há uma semana, quando saíam para beber o café depois do almoço, os pais de Carlos tinham comentado aquele Pai Natal, lamentando viverem no rés-do-chão onde não podiam ter enfeites à janela. Carlos riu-se e gozou com a situação.

Olhou o boneco pendurado e não conseguiu lembrar-se quem dissera o quê. O pai e a mãe às vezes confundiam-se na sua cabeça, formavam uma unidade, composta por pai e mãe, em que não importava já quem fazia o quê, quem dizia o quê. Baixou os olhos para o passeio e caminhou apressado.

Faltava pouco para as dezoito horas e já era praticamente de noite. Na véspera de Natal, já o sabia, esta era a última oportunidade para beber um café. Desceu a rua em passo acelerado, virou à esquerda na esquina e entrou no primeiro café. Não era aquele aonde ia sempre e por isso mesmo o escolheu. Não se lembrava de alguma vez lá ter entrado, apesar de ter vivido quase todos os vinte e nove anos da sua vida naquele bairro, naquela rua, naquela casa.

Também no café havia enfeites dispersos pelo espaço. Três ou quatro clientes falavam sobre doces, presentes, crianças, o que ainda faltava fazer, quantas pessoas iam ter para o jantar, o que ia ser o jantar, e despediam-se sempre com muitos votos de felicidades, de bom Natal, de bom ano novo, se a gente já não se vir até lá. Carlos pediu um café, sentou-se numa mesa perto da porta e saiu assim que o terminou, sem dar tempo a que alguém lhe desejasse o que quer que fosse. Subiu a rua de olhos postos no alcatrão que pisava, enquanto lhe chegavam aos ouvidos conversas dos vizinhos que ainda não tinham recolhido ao lar para a consoada. Toda a gente fazia os mesmos votos.

A luz do prédio estava apagada, sinal de que não havia ninguém a descer as escadas. Não a acendeu. À porta do seu rés-do-chão esquerdo tacteou com a ponta da chave em busca da fechadura. Depois de entrar deu duas voltas completas para trancar a porta e encostou-se a esta respirando fundo. A casa estava imersa em escuridão.

***

 Carlos entrou na sala escura tacteando, dando passos curtos, mal levantando os pés do chão. Com o braço direito esticado alcançou o velho e enorme móvel. Caminhou até à outra extremidade deste, sempre com a mão direita como que acariciando a madeira, até alcançar a porta do mini-bar. Rodou a chave, que estava sempre na fechadura, e ouviu o estalido a indicar que estava aberta. Da cozinha a mãe gritou.

Carlos! O que é que estás a fazer? Não sabes que os chocolates são só para amanhã, quando chegarem as visitas?”

Estava só a ver uma coisa,” gritou de volta, rodando a chave até o estalido se repetir. Era a pior desculpa do mundo, mas a mãe perdoaria. Afinal, ele espreitava muitas vezes os chocolates, como espreitava muitas vezes as prendas, mas nunca abria as caixas nem rasgava os embrulhos antes da autorização.

Saiu da sala para o corredor. A casa estava às escuras. Não havia luz no seu quarto, nem no quarto dos seus pais, nem na cozinha. Carlos estacou. Reentrou na sala, sem acender a luz, e caminhou, agora mais seguro, até ao mini-bar. Rodou a chave, ouviu o estalido e ficou à espera. Nada aconteceu. Voltou a rodar, no sentido inverso, e a abrir novamente. E nada aconteceu.

Deixou cair suavemente a porta do mini-bar, que abria de cima para baixo, formando uma prateleira à altura do peito quando aberta. Do lado esquerdo havia garrafas do pai, whisky, moscatel, Porto, bagaceira, algumas a meio, a de moscatel quase no fim e várias ainda por abrir. Do lado direito estavam as caixas de chocolates, de vários tamanhos, várias marcas, várias cores, todas ainda fechadas em plástico.

Carlos tocou nas caixas de chocolates. Sentiu um arrepio quando as pontas dos dedos deslizaram sobre o plástico. Tirou a caixa do topo. Abriu-a e espalhou os chocolates sobre o tampo de vidro da mesa de centro. Fez o mesmo com as outras sete ou oito caixas de chocolates, espalhando-os sobre a mesa e largando os plásticos e as caixas vazias para o chão. Depois tirou uma garrafa de whisky, que estava a meio, e um copo e pousou-os também na mesa, empurrando alguns chocolates para o chão. Fechou o mini-bar, ouviu o estalido, fez um compasso de espera, mas nada aconteceu.

Quando voltou as costas ao móvel, encarou a mesa de centro, coberta de chocolates de todas as marcas. Não os conseguia distinguir bem na penumbra. Depois viu o vulto da pequena árvore de Natal de plástico a um canto, sobre uma mesinha alta. No chão havia muitos presentes de vários tamanhos, embrulhados em papel colorido. Carlos pegou num, tentando ver através do papel apesar de estar às escuras. Depois pegou noutro e abanou-o no ar. Ouviu qualquer coisa mexer-se dentro da caixa. Quando ia colar o nariz ao papel, com o coração pulando de excitação, para tentar vislumbrar uma palavra, uma imagem, uma marca que denunciasse o presente, ouviu um grito vindo da cozinha.

Carlos! Vai já para o teu quarto! Já te disse mil vezes que as prendas só se abrem à meia-noite!”

Largou o embrulho e saiu a correr da sala, batendo com a canela no aparador do corredor. “Foda-se!” gritou. Tentou perceber como é que batera no aparador e deu-se conta de que estava às escuras. Não havia luz na sala, nem no corredor, nem em nenhuma outra divisão da casa.

Em passo hesitante, regressou à sala. Tinha qualquer coisa na sola de um sapato que se colava ao chão, qualquer coisa pegajosa, que o enojava mais a cada passo. Tacteou até à árvore de Natal, quase tropeçando no sofá. Procurou o fio que pendia da árvore e quando o agarrou ligou a ficha à tomada. Luzes vermelhas acenderam-se num crescendo de intensidade. Atingindo a potência máxima apagavam-se, para logo de seguida começarem a piscar velozmente, para depois exibirem outro efeito luminoso, e outro, e assim em repetição rumo ao infinito. No chão, por baixo da árvore, não havia presentes.

***

 Sentado no sofá, Carlos bebia whisky e comia chocolates. Junto aos seus pés havia uma mancha de um bombom esborrachado, o mesmo que deixara restos na sola do sapato que se colava ao chão. Metia os chocolates inteiros na boca, mastigava-os com violência, três ou quatro vezes, e engolia. Ignorava ou esquecera os ensinamentos do pai. “Não trinques o chocolate. Deixa-o derreter-se na boca, que assim o sabor dura mais.” E acompanhava cada novo bombom de um gole generoso no copo de whisky.

Não demorou muito até que terminasse aquela garrafa. Levantou-se para ir ao mini-bar pisando os restos de chocolate esborrachado, mas não deu por isso ou não se importou. Quando rodou a chave e ouviu o clique não ficou à espera de reacção nenhuma. Pegou numa garrafa de moscatel e sentou-se, sem se dar ao trabalho de voltar a fechar a porta do mini-bar.

A profecia maia, em que a mãe de Carlos acreditava com reservas, sem no entanto conseguir deixar de temer, previa o fim do mundo para o dia vinte e um de Dezembro de dois mil e doze. Carlos bebia moscatel e comia chocolates. Era véspera de Natal do ano da profecia. Lá fora, o mundo parecia continuar, igual ao dia anterior, igual ao próximo, mas ali, na sala escura iluminada apenas pelo piscar vermelho das luzes da árvore, o mundo acabara antes da profecia. Os maias erraram por dois dias. O fim do mundo antecipou-se.

Por cima da cabeça de Carlos havia uma fotografia antiga, com meio metro de altura e uma moldura de madeira trabalhada, com um casal nos seus trintas e poucos anos. Carlos ainda não se atrevera a olhar para lá. Eram os seus pais, juntos, lado a lado, como no acidente que lhes tirou a vida. Iam a caminho do cemitério, a fina ironia da coisa, a filha da puta da ironia de merda, pensara Carlos, quando pelo primeira vez conseguiu pensar depois do choque.

Fechou-se em casa depois do funeral. Desligou o telefone fixo, o telemóvel, a campainha, fechou todas as janelas e persianas, trancou a porta de casa. Só saiu na véspera de Natal. Qualquer coisa dentro dele pediu-lhe um café. E ele acedeu, porque era véspera de Natal, porque haveria pouca gente na rua ao fim da tarde, porque estariam quase todos em casa a preparar o jantar festivo.

O café, entretanto, ou fora absorvido ou diluíra-se no meio do álcool e dos chocolates. E ele continuava a comer e a beber, embora o moscatel lhe soubesse pior, porque era demasiado doce para acompanhar chocolates. Acendeu um cigarro para desenjoar e tremeu de pânico quando ouviu um grito vindo da cozinha.

Cheira-me a tabaco! Carlos? Anda cá imediatamente!”

Sabia que não podia fumar em casa, nem à janela. Não podia, aliás, sequer fumar ao pé da mãe. Ela sabia, mas não tolerava. Odiava. E falava, falava, falava. Que a roupa cheirava a tabaco, que o quarto cheirava a tabaco, que alguém abrira a janela da sala durante a noite e que só podia ter sido ele para fumar. E agora, idiota, acendia um cigarro em plena sala, dentro de casa, com a janela fechada. Não se ia safar desta.

Largou o cigarro no chão, quase intacto pois dera apenas uma passa, e pisou-o, deixando o pé sobre o cigarro para o ocultar. Esperou, mas ninguém apareceu. Nenhum outro grito chegou da cozinha. A casa permanecia às escuras. Só na sala uma luz vermelha piscava, iluminando parcamente uma mesa de centro coberta de bombons de chocolate que transbordavam para o chão, uma garrafa de moscatel, um copo, um chão imundo de chocolate pisado e uma beata e plásticos e caixas de chocolates e restos de whisky ou moscatel ou ambos.

Carlos foi ao mini-bar buscar uma garrafa de whisky ainda fechada, abriu-a e começou a derramar o líquido sobre o cortinado, o sofá individual, o chão. Depois sentou-se no sofá maior, bebeu pelo gargalo o resto que deixara na garrafa, e acendeu um cigarro. Fumou lentamente, observando no whisky derramado o reflexo das luzes vermelhas que piscavam na árvore de Natal.

Tríptico

para a Estela Bento

"(...) É costume dos poetas, dedicam muito."
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

I

Fosses tu um rio e eu
um seixo
lançado por mãos hábeis
para te tocar a pele
uma vez
e outra e outra e outra.
E mergulhar em ti.

II

Ponho as mãos em concha
debaixo da torneira e penso:
Como seria bom que aqui estivesses
e a abrisses.

III

Fosses tu o mar
e eu pedra que submergisse em ti
brotando anéis concêntricos de pequenas vagas
como para te circunscrever
num abraço
inteiro.

Onze

Tinha dezassete anos quando matei o meu primeiro progenitor. Quando digo primeiro quero dizer não apenas o primeiro dos dois, porque utilizo progenitores no sentido de pais, mas também o primeiro porque me refiro ao meu pai, aquele que concebeu a semente que germinou na minha mãe. A minha mãe, matei-a dois anos depois.

Portanto, tinha dezassete anos quando matei o meu pai. Foi num dia igual a tantos outros, sem nenhuma efeméride em particular que me levasse a escolher aquele dia em vez de outro. Na verdade, não escolhi sequer. Aconteceu. Aconteceu ser naquele dia que cheguei ao onze. A psicóloga da escola, há uns anos, antes de eu perceber que aquelas visitas eram inúteis e desistir de lá ir, tinha-me ensinado a contar até dez quando sentisse picos de raiva. Dizia-me: “Conta até dez, Teresa. Antes de dizeres o que te vai na alma ou fazeres qualquer coisa irreflectida, conta até dez. Vais ver que depois serás mais ponderada.” Usei a técnica vezes e vezes sem conta, porém, naquele dia cheguei ao onze e a raiva ainda lá estava.

A minha mãe estava a fazer o jantar enquanto o meu pai estava, como sempre, na tasca da rua, a embebedar-se com os amigos enquanto jogavam à sueca e falavam de futebol, de gajas e de todo o tipo de habilidades incríveis que cada um julgava ter em maior escala do que os outros. Eu estava na sala a ver televisão. Há já muito tempo que desistira de ajudar a minha mãe. Ela gostava que o meu pai estivesse fora, porque lhe dava tempo de preparar as coisas com mais cuidado e afinco. E era preciso todo o cuidado e afinco.

Quando o meu pai chegou a minha mãe tinha já a mesa posta e a comida pronta a ser servida. Eu já desligara a televisão e encontrava-me de pé junto à minha cadeira, conforme ordens da minha mãe, a que chamava regras de bom comportamento, esperando que o meu pai se sentasse para poder imitar o gesto. Quando se sentou, cambaleante, revelou logo que vinha de um dia mau.

“A merda do jantar vem ou não?” disse.

A minha mãe serviu-o sem fazer comentários. Geralmente não acertava nas frases que ele queria ouvir, por isso, na maioria das vezes, decidia nem tentar. Depois serviu-me a mim e só por fim se serviu a ela. Começámos a comer depois de o meu pai levar a primeira garfada à boca. Eu, enraivecida com o estado do meu pai, como que adivinhando a avalanche para breve, comia depressa e sem levantar a cabeça do prato. O meu pai comia lentamente, mastigando de boca aberta, deixando cair pedaços de comida para cima da camisa. Quando a cena parecia pronta a entrar em piloto automático, sem sobressaltos, o meu pai deixou cair os talheres com estrondo no prato.

“Esta merda não tem sal porquê?” disse.

“Eu pus sal, querido,” disse a minha mãe. “Mas sabes que não podes abusar. O médico já te avisou.” Tentava imprimir candura à voz, mas as cordas vocais tremiam-lhe de pavor.

O meu pai levantou-se, muito calmamente, como fazia sempre nestas situações, e dirigiu-se à minha mãe. A minha mãe, que sabia tão bem como eu o que se ia passar, deixou-se ficar, sentada, costas direitas, mãos sobre o colo, como boa esposa que era, à espera da bofetada que ele já preparava. A enorme e gorda palma da mão direita do meu pai embateu com tal violência na face da minha mãe que ela caiu no chão. Ele pegou no prato dela e atirou-o à parede, onde este se estilhaçou em pedaços, deixando um caldo acastanhado a escorrer até ao chão, onde já havia comida espalhada por todo o lado.

“Isto não é comida,” disse o meu pai, já a gritar. “Não é nada! Prefiro comer merda. Se voltas a fazer um jantar assim corto-te as mãos. Que não te servem para nada se nem um jantar decente para o teu marido sabes fazer.” A ameaça disse-a já à porta de casa. Depois saiu. Foi comer qualquer coisa ao café.

A minha mãe levantou-se, tinha a cara vermelha e estava ainda atordoada da forte pancada, e foi buscar a vassoura e o esfregão para limpar tudo aquilo. Tinha que ter tudo impecável antes de ele voltar. Enquanto limpava ia pedindo em voz baixa o perdão de Deus, que havia de ter clemência de uma pobre mulher que apenas se tinha enganado na quantidade de sal. Deus, na sua infinita misericórdia, havia de a perdoar, e se não o fizesse era porque ela, certamente, não o merecia, pois nem um jantar que agradasse ao marido sabia fazer.

Eu observava a minha mãe enquanto ela limpava o chão, ouvia as suas súplicas, e sentia em mim um ódio de morte. Odiava-a mais a ela do que ao meu pai. Odiava-a por se subjugar assim à vontade do marido. E a minha mãe, como se me ouvisse pensar, disse, “Sei que me odeias. Mas odeias-me pelas razões erradas. Devias odiar-me por não saber fazer um jantar. Não conseguir ser uma boa esposa. Nunca sejas assim.” Eu não lhe respondi, limitei-me a olhar com desprezo e a subir para o meu quarto. Ouvi-a, ainda, dizer entredentes, não exactamente para mim ou para Deus, mas para ambos ou para nenhum dos dois, “Deus te perdoe, minha filha, que não sabes o que é o amor.”

Quando fechei a porta do meu quarto e me sentei na cama, disse, também entredentes e não exactamente para a minha mãe ou para Deus, em que nem sequer acredito, “Onze.” Podia ser mais, podia ser vinte, ou trinta, se tivesse começado a contar há mais tempo. Tinha começado há uns dois, três meses antes e cheguei ao onze naquele dia. Ainda me lembro de todos. Um, bife mal passado. Dois, demasiado azeite. Três, arroz empapado. Quatro, bacalhau muito salgado. Cinco, pouco chouriço no caldo verde. Seis, bife mal passado outra vez. Sete, devia haver salada. Oito, demasiado picante. Nove, batatas demasiado cozidas. Dez, o peixe tinha um sabor esquisito. A raiva não me abandonou, não diminuiu. Cheguei ao onze, falta de sal, e sabia o que tinha de fazer para acabar com aquilo. Fiquei acordada até ouvir o meu pai chegar a casa. Sabia que não ia ser preciso especial atenção para o ouvir, porque a bebedeira não lhe permitia ser cuidadoso ou silencioso. Quem tinha de ser cuidadosa e silenciosa era eu, não por causa do meu pai mas por causa da minha mãe, recolhida no quarto, provavelmente ainda acordada, à espera de ouvir chegar o marido.

Saí do meu quarto quando o meu pai começou a subir as escadas. Saí com meias grossas nos pés e umas luvas nas mãos. Provavelmente, esta segunda precaução era desnecessária, mas achei por bem fazer a coisa assim. As meias eram para que os meus passos não se ouvissem. Quando o meu pai estava a alcançar o penúltimo degrau, apareci silenciosa no topo da escada e empurrei-o com força suficiente para o fazer cair até à base dos dezanove degraus. Não fiquei para ver como a cena terminava. Voltei sorrateira para o meu quarto e só de lá saí quando a minha mãe começou a gritar e a chamar o meu nome. A causa de morte foi a queda e as lesões que provocou. A causa da queda foi a bebedeira.

A paz que eu esperava trazer ao lar nunca se aproximou sequer do alpendre. A minha mãe passou meses enterrada numa depressão profunda, chorando copiosamente até as lágrimas se lhe esgotarem e já não conseguir senão soluçar em seco. Fazia-lhe falta o marido. O ódio que eu sentia por ela não só não se atenuou como se transformava dentro de mim em algo mais hediondo do que ódio. Depois de ter sido internada, alimentada a soro, e regressado a casa em melhor estado, durou apenas três semanas a voltar à depressão. A causa de morte foi um mal calculado cocktail de medicamentos, certamente provocado pelo discernimento atrofiado que a minha mãe tinha nessa altura.