Caderno 5

Caderno 5

os pastéis de nata ali não valem uma beata [antologia de 2017]

Enfermaria 6, Lisboa, maio de 2018, 220 pp.

Editado por João Coles, José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira e Tatiana Faia

Capa de Gustavo Domingues

12€

Autores

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Tudo isto para dizer que o Caderno 5 da Enfermaria 6 é uma antologia dos textos que mais agradaram ao quinteto editorial da Enfermaria publicados no site durante 2017. Que o objectivo deste caderno talvez seja agarrar e perder, e não lamentar perder, essa coisa fugidia implícita na longa corrida de personagens arquetípicas do romance português do século XIX: mais do que deixar uma imagem da literatura a acontecer, ou um cânone lusófono em formação (nunca teríamos a isso pretensão), ou gabarmo-nos de publicar o melhor poeta do nosso bairro, simplesmente queríamos deixar aqui um quadro vivo das coisas que aconteceram na Enfermaria 6 durante um ano, aberto para um impulso de olhar para a frente. Esta é uma recolha de ensaios, poemas, contos, notas, breves apontamentos. A sua função pode bem ser vista como a nossa tentativa de mapear os gestos de alguns autores que, generosamente, connosco, tentaram a sua corrida e tentaram registar o significado de determinados momentos, no seu peso histórico, filosófico, político, poético. No seu peso jogando contra eles ou a favor deles. A favor da beleza do quotidiano, contra o lado reles da burocrática rotina cívica. Enquanto blog, a Enfermaria 6 é actualizada quase diariamente, com textos sobre coisas que ferem e sobre coisas que nos fazem pulsar, de autores maioritariamente oriundos de Portugal e do Brasil. Acreditamos que muitos destes textos merecem um registo menos efémero do que o tempo entre uma actualização e outra do nosso blog. Deixamos aqui então esta nossa proposta de anuário. E comprometemo-nos a tentar voltar para o próximo ano.

"Uma espécie de Editorial", Cassandra Jordão & Victor Gonçalves

 

Dois poemas

Temos braços
e com eles, desenhamos uma linha aberta
no ar

O silvo do vento é íngreme
e inclina as chuvas para dentro

Deus tem postura de Deus
mas os homens pouco sabem
sobre o que é isso

Também há o som que
habita no gosto das palavras

E em nós

E nós que de tão juntos
nos descobrimos mais estando em Um

Nossos braços abraçam e afastam
E
Só o são porque vivem a liberdade

Nossos braços que abraçam e afastam
Cortam as ações pelo gesto
E o gesto é presença em nós

__ 

Nossa voz é uma rua larga
onde não adianta olhar para todos os lados. 
A travessia é o perigo. 

 

Poema Victor Prado e Aldovano Barbosa

Page Break

para Ana de Araújo

No campo, as manhãs se formam


No campo, 
as manhãs
se formam

Isso já foi dito, 

Mas novamente: 

No campo, as manhãs se formam como
pequenos adornos que as crianças carregam
por ai

Pequenos brinquedos, esses nossos
velhos dedos: tão sóbrios, tão retilíneos

Distantes dos rizomas, do
líquido viscoso da vida, 
do orvalho, da
coisa bêbada como o vento

Essa dança é uma espécie
de sistema hidráulico
Essa curva é um ritmo verde

Mas a mula sempre empaca
ou
O caminho sempre exige, em sua
rigidez, outras chegadas

II

O fedor da casa antiga, 

igual o da pele a muito presa
dentro do gesso, 

sempre acha um canto, que respinga
tranquilo nos encaracolados das plantas

III

Trabalhosa estação, pronta
a ser onda brava: 

Mãe que dá sua benção
a cria que logo adormece: 

Essa casa erguida no primeiro Sol
Ereta e rija, 
Mas também aberta

IV

A natureza observa

E atua

Tão cotidiana quanto um milagre.