[entrega-me o mar]
/entrega-me o mar
como se a boca
fosse um cântaro
com as asas arqueadas
sobre a fala
e como se os rios
desaguados nos olhos
fossem lagos
inábeis para entender
a rota da sede
entrega-me o mar
e voa
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
entrega-me o mar
como se a boca
fosse um cântaro
com as asas arqueadas
sobre a fala
e como se os rios
desaguados nos olhos
fossem lagos
inábeis para entender
a rota da sede
entrega-me o mar
e voa
a Ricardo Reis
Mestre
quando a guerra terminar
farei um abrigo de rosas brancas
e lá nos encontraremos
e olharemos o futuro
em que juntos traremos o rio nos olhos
e conforme dizias
deixaremos que o dia passe leve
e sem pesar
entregando a agonia aos deuses
nossos cuidadores incautos
e ausentes de qualquer enleio
falaremos do exílio na pátria
que não no Olimpo
e soltaremos cada hora
roubada ao nosso momento
quando o dia acabar
e o abrigo de rosas secar
cada um de nós partirá
tranquilo
para o seu jardim indefeso
porque
as nossas mãos continuarão vazias
e os nossos sonhos
esses
estarão guardados no intervalo do tempo
o cansaço alonga-se
nas ruas da cidade
exilada
sem rios para desaguar
a dor
roça as paredes das casas
e espraia-se nos bancos
dos jardins
não há notícia das chuvas
nem dos bandos de corpos
que mastigavam a sede
sobrevivem
meia dúzia de janelas
indefesas
e os acenos da memória
o último habitante feriu-se
quando tentou escalar
os dias
Livros, filmes, ideias.