As Aventuras do Senhor Lourenço (§7 cortar o galho onde se está sentado)

 (cont.)

Na escola, Lourenço estava irreconhecível: cheio de si, assertivo, capaz de dizer bom dia, com um sorriso à mistura, a toda a gente. Apesar de Manuela não lhe passar muito cartão. Nunca na sua vida tinha tido tanta confiança e sabia que podia agradar à mulher mais bonita da escola porque a “cratera” o aproximava dela.

Mas como noutras ocasiões (embora por caminhos diferentes), Lourenço começou a cortar o galho onde estava sentado. Talvez devido à tentação de si mesmo, a esse medíocre narcisismo que incha os idiotas. Talvez devido ao contrário disso, à incapacidade de se avaliar sem usar critérios suicidas. Por exemplo, achava que escrevia mal porque estava a uma distância incomensurável de Lobo Antunes. – Quem não está? – Disse-lhe uma vez. Respondeu-me que sim, que ele era genial, mas mesmo assim, ambos tinha cérebro e patati, patata. Se era um perfeccionista? Talvez, mas creio que não era bem isto, a mania da perfeição activa a vontade, e Lourenço era predominantemente passivo, na maior parte da sua vida fingiu que estava morto.

Quanto ao desenlace frustrado com a Manuela, no terceiro encontro, já com a parceira pouco entusiasmada, Lourenço, ainda menos lúcido do que era habitual, propôs uma inversão à lógica de dominâncias: ficaria ele por cima e pediu silêncio. Tinha suor nas mãos quando disse as palavras, como lhe sucedia nas poucas vezes em que fazia perguntas, banais diga-se, aos oradores dos colóquios de filosofia. Manuela olhou-o com perplexidade e raiva. Mas assentiu. Na sua alma incorporada (tudo nela tinha, pelo menos parcialmente, matéria, costumava dizer que Deus olhava primeiro para o corpo), porém, apagou de uma só vez o Lourenço.

Este tinha dado um passo em frente, com coragem, e o sexo foi bom, para ele. Manuela facilitou, mas se ele tivesse olhado com olhos de ver para a sua cara, saberia que era uma vez sem exemplo. Abriu as pernas, como se costuma dizer e fazer. Mas fechou todas as outras portas e começou a sentir nojo de Lourenço. Ele fazia flexões em cima dela, penetrando-a como se fosse uma boneca insuflável. Manuela, por sua vez, pensava no tipo de asco que ia sentir por ele. Ao vir-se, Lourenço gritou pela mãe, mãezinha, melhor dizendo, e deixou-se cair em cima da Manuela.

– Sai! Estou com pressa. – Disse ela.

E ele saiu, primeiro movimento de uma ruptura definitiva. Lourenço tinha acabado de cortar o ramo, já frágil, onde estava sentado.

Lourenço não possuía, é evidente, qualquer talento para as relações humanas. Mas teria ele ao menos uma pequena noção do que era o amor? Corroído por uma auto-imagem desoladora, talvez não fosse capaz de sentir uma atracção irremediável por outra pessoa. Essa atracção fatal que um paciente desenvolvimento filogenético inscreveu em nós, vejo, com Schopenhauer, o amor como astúcia da espécie para acasalarmos, por mais requintados que sejamos, o objectivo é chegar ao coito. Foi a filogénese que criou e desenvolveu o êxtase sexual, não a literatura ou o cinema.

Mas Lourenço parecia nascido do nada, um novo homem que num processo anti-darwinista acelerava a decadência da humanidade. O que ele dizia ser o amor que tinha por Manuela, não passava de um vulgar exibicionismo, por detrás do silêncio embaraçado dos colegas imaginava um “O Lourenço é um sedutor!” Na verdade, não era nada disso que a coscuvilhice pensava, quase todos viram nele um oportunista, aproveitando-se da fragilidade pós-divórcio da Manuela.

Enfim, repôs-se a ordem, Manuela deixou bem claro que não “queria mais nada com ele”, Lourenço cismou novamente que era a “pior pessoa do mundo”. Ainda por cima, tinha a boda de diamante dos pais na semana seguinte.

Dante e coelhos: Cassandra Jordão lê a Divina Comédia

Dante, avistado aqui a relaxar no cenário da composição da Comédia.

Dante, avistado aqui a relaxar no cenário da composição da Comédia.

Após muita insistência da nossa assistente estagiária (no último mês entendemos por bem promover Cassandra Jordão de estagiária a assistente estagiária, após tensas negociações em que a jornalista ameaçou trocar o estágio que lhe oferecemos por um estágio no Correio da Manhã – acordámos pagar-lhe uma módica soma mensal destinada a “ajudas de custo”, um pecúlio que a referida estagiária gastará provavelmente em tatuagens, uma vez que aos 27 anos de idade mantém residência em casa dos pais), resolvemos conceder-lhe uma coluna mensal. Trata-se de um espaço dedicado à crítica literária, em que grandes clássicos e obras menores serão alvo da caneta implacável da nossa jornalista de serviço. Aqui fica a primeira escolha, a Divina Comédia de Dante Alighieri.

            NB: A escolha do título para esta primeira coluna é da exclusiva responsabilidade da sua autora. Após acesa discussão com o departamento editorial da Enfermaria 6, a autora justifica a sua opção no espírito Warholiano de praticar a sua arte, a arte do crítico, justamente na intercepção entre arte e quotidiano.

 

Dante Alighieri

Classificação: 3 (três) *** (estrelas)

 

A Divina Comédia de Dante Alighieri é uma obra que, 696 anos após a sua publicação, se continua a ler simultaneamente como uma pedrada num charco e um murro no estômago. Perde apenas por não ser um segredo muito bem guardado. Algumas limitações têm no entanto de ser apontadas ao génio florentino, e sendo que nenhum dos críticos meus antepassados, e quiçá contemporâneos, parece ter apreciado as devidas limitações da obra, é minha tarefa aqui considerar este clássico intemporal a partir de uma perspectiva que me coloca numa posição muito particular, a do crítico que sabe estar a escrever para leitores que leem livros e crítica apenas com um interesse em obter conselhos de escrita criativa.

Deste ponto de vista, a primeira falha (na lógica de vocabulário autoritário, perdão, autorizado, de que disponho enquanto crítica, o termo não é outro) a apontar é a de que se trata de uma obra demasiado longa, que teria ganhado bastante com uma mão editorial mais pesada. Uma pessoa podia perguntar-se se era mesmo necessário incluir o Purgatório. É certo que toda uma secção de cenas imortais na história da literatura do Ocidente desapareceria, mas a leitura seria muito mais rápida, a obra ganharia ritmo sem aquela longa pausa no meio, e resultaria bem menos maçuda.

Outra nota negativa é que o adjectivo abunda, e nem sempre é necessário. Por outro lado, perguntamo-nos se seria preciso nomear tanto contemporâneo, para nada dizer da opção de gosto duvidoso do autor florentino em colocar gente bastante respeitável (cardeais, papas, governantes, poetas) em círculos menos respeitáveis da geografia do poema. Que Nicolau III, que à data da composição do texto já se encontrava morto, pudesse ser encontrado no círculo dos condenados por venderem favores divinos, tudo certo, agora dar um cameo a Bonifácio VIII no Inferno no ano de 1300 (o papa só morre em 1303) é um imperdoável erro de cronologia, que claramente só pode ser interpretado não através do ângulo da proverbial animosidade de Dante contra o papa, uma explicação que críticos anteriores entenderam como legítima, mas inevitavelmente como indício de um trabalho de pesquisa pouco minucioso da parte do génio de Florença.

Outro apontamento menos positivo acerca da nossa experiência de leitura deste clássico vai para a tradução. Não tendo lido o original, temos no entanto de apontar o facto de que encontrámos várias vírgulas fora do lugar. Ora, toda a gente sabe que o mais importante num texto é o ritmo, e o ritmo que se quer hoje em dia é o da rápida batida techno. Estamos em crer que esta tradução teria muito a ganhar com mais vírgulas. A obra imortal de Dante de facto peca por demasiado longa, e lenta em certas partes. O leitor tem o direito de se perguntar: era mesmo necessário dar a Ugolino della Gherardesca aquele discurso tão longo que, como tantos outros (longos) encontros do poeta nos diferentes círculos só atrapalham o enredo principal (chegar ao Paraíso, encontrar a miúda) e quebram o ritmo da narrativa?

Voltando à tradução. Com o rigor que nos é característico, googlámos excertos do texto original de Dante, e, comparando um excerto encontrado ao calhas na Wikipedia com um excerto da tradução, descobrimos três vírgulas fora do lugar. Isto permite-nos afirmar com a segurança que a autoridade da crítica nos confere que a tradução do consagrado poeta australiano, Clive James, há décadas estudante de Dante, é de péssima qualidade.

Má nota também para o princípio da obra: para leitores menos atentos, Dante começa pelo meio, e nós preferíamos saber o que se passa logo desde o princípio. O pseudo-golpe de angst existencial de Dante não é suficiente para convencer o leitor. Afirmar que se encontrava no meio do caminho da vida na verdade diz-nos muito pouco acerca da vida deste irrequieto autor florentino até ao momento de começar a escrever a épica, e tivemos de emparelhar a leitura da Comédia com a leitura da Vita Nuova, obra de juventude, povoada de alusões a outros poetas amigos de Dante – note-se que são até mencionados uns quantos que tornam depois a aparecer mais tarde na Comédia e é bastante difícil entender de onde eles vieram e como é que Dante estava relacionado com eles sem ter lido a Vita Nuova, para nada dizer do que acontece ao nosso entendimento da parte mais hot da Comédia, o romance com Beatriz, sem ter lido este outro livrinho. Para uma obra já tão longa, esperar ainda que o leitor tenha de ler a obra anterior para perceber melhor o que se está a passar é simplesmente um mau golpe de marketing. Nos tempos que correm, a Wikipedia pode bem matar estes dois coelhos de uma cajadada só. É uma nota que gostaria de deixar à consideração dos departamentos de marketing das editoras que se dedicam a publicar Dante.

Por outro lado, tanta repetição de personagens de obra para obra é ilustrativa das limitações da inexistência de um equivalente da revista Caras ou Lux na Florença de finais do séc. XIII/ princípios do séc. XIV, não deixando aos poetas muito mais escolha do que ocuparem-se de matéria que de outro modo, perguntamo-nos nós, poderia ter povoado a cultura pop da época e não a grande poesia. E não nos alongaremos aqui sobre a paixão de Dante pela relação entre poesia e crónica social ter levado à inclusão de personagens com nomes de duvidoso gosto poético: Barbarrossa; Bonagiunta; Buonconte; Buonanotte. Para mencionar apenas personagens na letra B.

Falando de Dante e matar coelhos de uma cajadada só, outro aspecto em que a obra perde pontos é justamente na questão do romance com Beatriz. À parte alguns encontros fugazes em Florença, este romance como linha do enredo resulta pouco convincente. Beatriz é uma mulher que Dante vê ao longe não mais do que uma mão cheia de vezes, se tanto, para mais casada com outra pessoa. O próprio Dante, tanto quanto apurámos, era, também ele, casado com outra pessoa.

Desta forma, é obrigação do crítico, tanto quanto do avisado leitor, perguntar-se se a obsessão do autor deve ser entendida como mais uma peça do enquadramento filosófico de inspiração tomista que, quer Dante levar-nos a crer, é o da Comédia, do amor enquanto máxima aventura espiritual, ou, para leitores mais avisados, os mesmos que, estamos em crer, apreciariam uma Comédia mais curta, um stalker a atirar para o creepy.

Com um texto que gera tantas dúvidas, três estrelas parece-nos uma nota adequada. Não mais, Musa. Não mais. 

tentar o poema


tentar o poema
sem implicar as palavras
noite     rosto     chão
chuva     manhã     tarde
mãe     louco     escuro     
casa     fogo    árvore
mãos     boca     fome
pele     dedos     sombra                              
ave     pássaro     carne     
olhos     sangue     o teu nome
tentar o poema
sem empregar a palavra 

sem nomear o próprio
poema. 

*


A noite é em lâminas.
Luiza Neto Jorge


noite chã noite caída
noite entorno sudário
noite às arestas míope
noite prenhe e oblíqua
noite em púrpuro lio a
noite como fantasma
noite vândala noite cã
noite céptica de luares
a umbilical acuidade nos
meandros da inicial ferida
onde tudo se faz e refaz. 

(a noite é em lâminas dizias)

*


aprendi demasiado cedo: 
qualquer mesa se adequa
à artesanal confecção do
escusado e reles poema.    

Gajas impopulares

Todos têm a sua vez, agora é a minha. Ou pelo menos era o que nos ensinavam no jardim-escola. Não é realmente verdade. Alguns têm mais vezes que outros, e eu nunca tive uma, nem uma. Eu mal sei dizer eu, ou  

meu, tenho sido ela, a ela, aquela, há tanto tempo. 
 
Nem sequer me foi dado um nome; fui sempre a irmã feia , ponham ênfase no feia. Aquela para quem as outras mães olhavam e depois desviavam o olhar abanando as cabeças suavemente. As suas vozes baixavam ou calavam-se quando eu entrava no quarto, com os meus vestidos bonitos, a minha cara inerte e carrancuda. Elas tentavam pensar em algo para dizer que redimisse a situação - bem, ela é forte - mas sabiam que era inútil. E eu também. 
 
Acham que eu não odiava a pena delas, a sua bondade forçada? E saber que, não importava o que eu fizesse, o quão virtuosa eu era, ou trabalhadora, eu nunca seria bonita. Não como ela, aquela a quem bastava estar sentada para ser adorada. E ainda se admiram porque eu espetei alfinetes nos olhos azuis das minhas bonecas e lhes puxei o cabelo até elas ficarem carecas? A vida não é justa, porque é que eu deveria ser? 
 
Quanto ao príncipe, acham que eu não o amei? Amei-o mais do que ela; amei-o mais que tudo. O suficiente para cortar o meu pé, o suficiente para matar. Claro que me disfarcei com muitos véus, para tomar o lugar dela no altar. Claro que a empurrei da janela para fora e puxei os lençóis para cima da cara e fingi ser ela. Quem não o faria, se estivesse no meu lugar? 
 
Mas todo o meu amor chegou sempre a um mau fim. Sapatos a escaldar, barris cheios de pregos. É assim que se sente, amor não correspondido. 
 
Ela também teve um filho. A mim nunca me foi permitido. 
 
Tudo o que vocês quiseram, eu quis também. 

 

Margaret Atwood

Nosocomio (Un hálito silente)

el aire
una hoja
               el silencio

espiral de granito
que brisa
el delirio

se abisma
la podredumbre
de la tierra

como aullido clarividente
el alba tañe
                      voz y forma
                      voz con forma
                      voz deforme

el abismo
es cerúleo

los nombres no
pertenecen a los hombres

filtros enumerados
con signos
de húmedos suspiros

          en las camas
          hay sombras de precipicios

granito – delirio – silencio

tres estigmas
emblemados
con manos amputadas,
              caravana de epitafios
              y segundos marchitos

la sábana:
áspera caridad
que oculta la noche

entre dientes hay mártires mancos

se atisban remolinos,

espigas acolmilladas
                        purpureas
                        avinadas
                        escarlatas

entre pálidas arrugas
que agrietan la sensación de estar

estar en el aire
estar sobre la loza
estar a perpetuidad, ens i l e n c i o


Aldo Vicencio

[Ver perfil de Aldo Vicencio]