que palavra passou além da barreira dos teus dentes?

Mas depois que Ulisses e Penélope satisfizeram o seu desejo
de amor, deleitaram-se com palavras, contando tudo um ao outro.
Homero, Odisseia, canto xviii, vv 300-301

  I

que coisa te direi primeiro? que coisa no fim?
que o medo como a sombra te persegue até dentro da noite?
que os sonhos te dão a mão só até meio do caminho?
a lâmina da verdade é fria e não faz amigos
lança os teus olhos em mim        sou
um homem cujos brancos ossos apodrecem à chuva
numa ilha rodeada por ondas no umbigo do mar
mas cessei todos os lamentos
e cogitações que me mirravam como um veneno
o faz às ervas silvestres nas esquadrias dos jardins

o mais íntimo e pertinente foi para mim
a aventura e a independência como um animal
selvagem        por fora e por dentro
ora partindo de terra em terra ora
o mais frequente                           uma queda
de cabeça boca e olhos
no vazio        Mulher        nessas alturas
o dia jorrava as suas cores às coisas
enquanto me sentava nos cantos entre árvores e flores
que da cidade fica à distância de um grito
até que os anjos e as musas
sobre os meus olhos derramavam o sono

nunca um único dia me vi
livre de desejos mas esse cavalo galopa hoje
no peito com mais precisão e rédea mais curta
perdendo as estribeiras domado pelo frenesi
somente quando os meus olhos se prendem em ti
Mulher incompreensível, mais do que qualquer outra mulher

precisaram o sol e a lua revolucionarem por esta terra
as estações pelo meu corpo para a ti chegar
foi preciso        como uma lição a aprender
                 esmiuçar os bandos de aves de passagem
o teu silêncio na companhia do teu cão
e enfim dizer-te esta noite
Mulher, já tivemos ambos a nossa conta de sofrimento
olhando sabendo de tua boca e
ao ouvir-te sinto qualquer coisa a devorar-me o coração
como pode a vida jogar com dados tão viciados?

II

eu tenho os meus caprichos e quero decidir
quando a distância separa as águas
em vez destas vontades terceiras que se intrometem

saberás quantas noites me sentava à mesa
e tecia planos para nós correndo ambos por este mundo
para logo os ruir porque tardavas? e de braços
em torno do cão segredava ao ouvido        de certo
a vida abandonou-lhe os ossos
e um deus lhe retirou o regresso a casa

fiquei para trás na cidade       ocupei-me
do lar para além da minha vida
privada        preparei o teu regresso
até que a velhice te abrisse a porta
ao decaimento do corpo
mas as tuas promessas são como cabeças de dentes-
de-leão sopradas pelo vento e assim fico
a vê-las brotar da tua boca
e a se dissiparem como a espuma aos meus pés
quando pelas margens me perco em choros

e sei que és sincero e recebo-te todas as vezes
porque é de Zeus que vêm todos os estrangeiros e mendigos
e qualquer dádiva embora pequena é bem-vinda

mas tal como terra e água
se misturam e se limitam        duas vidas
para se entenderem deveriam conhecer o caroço
dessa relação        saber quando construir e erguer
com a lentidão das pedras e montanhas
e saber quando fluir e correr por todos
os caminhos e mesmo se uma ausência
se faz presente ao trazê-la uma e outra
vez à boca ao pensamento
quando surge a que cedo desponta, a Aurora dos róseos dedos
até à noite escura como pez        para uma vida
a dois dois corpos têm de estar presentes
para estar só não preciso do casamento

(e foi sentar-se na lareira no meio das cinzas
junto ao fogo e permaneceram em silêncio)

III

se foi proferida alguma palavra
terrível que agora a levem os ventos da tempestade
a dor que te causo ainda me morde
o corpo        traz-me corvos à soleira dos olhos
antes voltar ao estreito entre Cila e Caríbdis
ser lançado entre uma e outra        engolido e cuspido
mil vezes até nivelar a balança
e fazê-la pender então para o lado
do amor        o que o vento sopra outramente traz
e nessa mão cheia de nenhuma promessa
que ao meu rosto abres te entrego eu
o meu coração e tal como
no campo um homem que não tem vizinhos esconde
uma brasa ardente na negra cinza salvaguardando desse modo
a semente do fogo a ti te guardo
a ti volto
retorno e entrega        sabe-lo bem        que só a morte
mo impedirá de uma vez não cumprir

IV

(beijando-o repetidamente como alguém que à morte escapara
e falando dirige-lhe palavras apetrechadas de asas)

Homem já não roda ao longe
como disse o aedo outrora
                                               o outono        está nas dobradiças das nossas vidas
a água do rio passa por ti
lava a tua carne e ossos
e quando enfim a decisão tomar conta
porque já tudo pesa do teu coração
ou do teu cérebro                                  nenhum olhar
reconhecerá o teu rosto        deixa que te apraze
a cama o lar a brasa nas cinzas
a minha voz o meu silêncio        permite que eu escute
porque sei        Homem
                                      no teu peito está sempre um pensamento
senta-te à mesa com o cão aos teus pés
pega na linha que o aedo te deixou livre
e canta a vida que foste e és ainda a ser

e outra coisa te direi e tu põe-na no teu coração
detesto repetir aquilo que já foi contado com clareza
não leves demasiado tempo        a solidão e a espera
queimam sem rasto a candeia do amor

V

conheço bem essas duas estações
na via de uma vida e não mais te quero
fazer sofrer        a minha intenção é somente
encontrar-te a meio caminho
aí erigir uma casa livre de
desejos sonhos tentações        todos esses pretendentes
que sempre nos apartem e nos arredam do rumo
a essa felicidade que se abre no fim do conhecimento

Mulher mais bela que todas as deusas
não digas nada não penses agora não faças perguntas
vem comigo ofereço a minha própria vida em testemunho

Dezembro 2019-Janeiro 2020
escrito com versos, ligeiramente modificados aqui e ali, da Odisseia na tradução de Frederico Lourenço.

AÇORES: East of the sun, West of the moon*

“Up among the stars we'll find a

harmony of life to a lovely tune”

- Diana Krall

“Alguém se metia no teu silêncio”

- Santos Barros

"A tempo" - Vitorino Nemésio
"Exercício de socorro a náufragos (tranquilos ou (...)" - Urbano Bettencourt
"S. Mateus, por exemplo" - Ivone Chinita
"Alguém nos afoga" - Santos Barros
"Ítaca - I" - Ângela de Almeida
[depois do Isilda ou A nudez dos (...)] - Carlos Alberto Machado
"Pedra-Poema para Henry Moore" - Emanuel Félix
"O caixote e o lixo" - José Martins Garcia
"Quatro regressos e uma confissão" - Emanuel Jorge Botelho
"Um poema da minha terra" - Maria de Fátima Borges
"Salmo" - Renata Correia Botelho
"Berloque" - Nuno Costa Santos
miradouro.png

Miradouro de Santa Iria, norte de S.Miguel, Ribeira Grande, Açores.

*Diana Krall: https://www.youtube.com/watch?v=ElAP4LF4a1o

Nota: Vítor Teves não tem nenhum talento para ler poesia (faltou a todas as aulas de teatro), mas ele insiste porque está farto de leituras estandardizadas, feitas sempre à volta dos mesmos poetas.

Uma Náusea no Elevador 

Houve tempos em que a mesa da cozinha fazia mais sentido 

E os versos surgiam enquanto na janela em frente o Sol acendia 

Os montes em despedida, preparando-se a geada para abrir a manhã, 

Sabia bem acordar apesar do aparente vazio dos dias, 

Mas esse vazio foi-nos tornando o que hoje traímos, 

Mais um gole, porque estamos perdidos, mais um suspiro, 

Porque a mesa da cozinha longe, e aquelas mãos capazes 

De aceitar tão pouco, hoje estranhas somando nadas 

Como cartas em castelos, estamos perdidos há anos, 

Pouco sentido se encontrou no caminho depois da última 

Gota de inocência ser trocada por mais uma direção errada, 

Tomada com a sede que a carne pede ao fogo a perdição, 

As galinhas eram uma companhia segura enquanto se ouviam 

Ao longe os garotos que esperavam o último autocarro 

Que os levasse às aldeias, deus morria, tudo era certo 

Na novidade que lhes pesava, as palavras pareciam dançar 

Como chamas, as páginas ardiam na fome da alma, 

Hoje todos os mares gelaram, a profundidade é algo impossível, 

Não há mergulho que resolva o cansaço de cada inspiração, 

Levamos a solidão aos olhos, o copo aos lábios, 

As memórias ao esquecimento, porque é melhor assim, 

Esquecer aqueles muros de aldeia e as mãos sem carne 

Que um dia passaram dias inteiros a meter pedra sobre pedra, 

Para que depois o tempo e os herdeiros lhes passem por cima, 

Nada dura tanto como os sonhos, no entanto à noitinha 

Já não se teme nada que a almofada possa revelar, 

Falar com um avô morto no tanque onde te tomaram na boca, 

Numa daquelas noites de verão douradas como a palha, 

Hoje nem as letras novas onde os dedos resignados pousam, 

Fazem qualquer sentido, o Big Sur espera, continuando a afogar 

Estrelas até ao fim dos tempos, a ponte Bixby Creek será mais 

Uma daquelas mulheres que se prometeram na língua dos gatos 

Para outra vida, quando nem esta foi realmente tua, 

Depois das andorinhas em Fevereiro, foi só um somar 

De lábios desencantados e gemidos secos, que é feito do pecado, 

Quando se tem certo o ar poluído da eternidade cega, 

Que diria Torga com dois tordos à cinta, se te visse, 

Com esse ar enjoado, esses olhos de ódio desencantado pela humanidade, 

Nunca fomos postos aqui para durar muito, só durar, 

O resto cabe a cada um iludir-se à medida do nome ou da sorte, 

Temo que isto vá acabar num atraso de uma carta que não terá resposta, 

Se ao menos as portas um dia abertas ainda pudessem 

Abrir-se novamente douradas, se ao menos ainda se encontrasse beleza 

Nas folhas que caíram no outono, além da beleza da morte como única justiça 

E igualdade, este mundo de plástico engolido pelos olhos inocentes 

De todos os que nascemos, todos os que fomos completos, todos, 

A estas horas tenho a alma pintada da mesma cor envelhecida da loucura 

Daquelas paredes do Conde Ferreira, um enjoo em lençóis quentes e vazios, 

Robert Louis Stevenson na mesa de cabeceira e uma náusea no elevador. 

 

Turku 

 

15.01.2020

Chagall - l'âne musicien à saint-paul. 1975.jpg

Chagall - “L'âne musicien à saint-paul”, 1975.

Perder, imitar e prosseguir,
de rancor em rancor,
pelos nós do agora.
O medo tanto, cada vez maior.
É tão fácil perecer,
enquanto o sono, as insónias.
 
De devaneio por fome,
de gula por fantasia, cais de joelhos,
Ah a flor das árvores altas.
As pequenas grandes obras,
a engenharia,
os rastos pegajosos.
 
Os olhos caem-te no lençol
e ficas, nuvens baixas,
pelo arquivo das derrotas.
Chove.
Tantos charcos.
Incógnitas.

Charles Ray - The New Beetle, 2006.jpg

Charles Ray - The New Beetle, 2006.