Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan

Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan
         que significa
Temos O Osso de Ishango Dentro dos Segredos das Visitas  

 

temos visitas
sobreviventes da exaltação do evento visita
confesso um vulcão para cada passo na direção de uma nova linguagem
vitrola panela colher folha de bananeira nome de gente  
meia furada
ande com a água nessas canecas com brasas nessas brasas com chá 
          a secret was the only horse on the carpet  
          que significa
          em cada brasa uma permissão secreta
  crochê manchado de toalha livro numa página sorteio
  matemática numa escrita quero o verbo 322  
  temos visitas
  sobreviventes da exaltação do evento visita agora
manchada do verbo no espirro gerador para a sequela fibonacci da visita
    a secret was the only fire on the carpet
plimpton plimpton  
    santinho deus te crie  
    temos o osso de ishango dentro dos segredos
    não temos vergonha temos visitas gripadas temos a sopa da galinha mais exata  

 

A Companhia Das Sirenes

Terás sempre a companhia das sirenes nas insónias de uma madrugada
Longe de ti mesmo e que bom é caminhar em direcção ao sono
Por entre sonhos adiados e bêbados, rasgados, alcatrão fora, até ao
Isolamento impossível das paredes que vibram a vida vizinha e alheia,
A noite nem se sentiu levantar e a sua queda foi tão suave e tímida,
Como os olhos que realmente ouvem, sem outro interesse além da tua visita,
Porque se mostra tão pouca gente na cidade gigante, onde não há um minuto
Sem a companhia dos que se despedem, tão estranhos quanto tu.

Tóquio

05/11/2015

 

Ao poeta que me envia árias avulsas

andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos
essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado
abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos
na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto,
serão a maior carta de amor no teu correio,
ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho,
larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos
agarra-te ao boletim de voto e às revisões
constitucionais mas só se te deixarem
sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.

[Ver perfil de Francisca Camelo]

As Aventuras do Senhor Lourenço (preâmbulo II)

O senhor Lourenço sentia no corpo toda a pressão indefinida e prolífica da vida, às vezes julgava-se inadequado ao mundo, devia ter continuado na incubadora do velho hospital onde nasceu (Maternidade Alfredo da Costa) em Novembro de 1975. Talvez por isso nunca tenha desenvolvido “qualquer coisa de amargamente destruidor”, como “o homem sem qualidades”. Não havia nele esses impulsos demoníacos que protegem alguns excluídos de cair na irrisão de si mesmos.

            [visto de costas, serei eu “um príncipe do espírito ou um grande-escritor”? Vamos ao que importa, este é o 2.º e último preâmbulo sobre o Lourenço, depois de Proust, que pode prolongar magistralmente por 100 páginas a descrição das personagens, devemos ser modestos]

Lourenço aperfeiçoou uma metodologia que lhe permitia catalogar rapidamente alguém como amistoso ou perigoso, estimável ou detestável. Um método flexível, saíram e entraram critérios (por exemplo: o “parabéns” passou de pindérico a aceitável; ao inverso do “tal e qual”), fez e desfez ângulos de abordagem. Desta forma, apagava-se o mais possível com um gesto justo, mas evanescente, ao mesmo tempo que sorria ou punha uma face esfíngica. Sonhava, sem sucesso, ser um puro, desses, como Hölderlin, difíceis de discernir e que depois de morrerem alguém recupera para o estrato dos olímpicos.

Um dia perguntei-lhe:

– Não achas que há aí um pouco de batota?

– Como?

– Fazes desse método uma lei universal, mas ele é teu, não?

– Simplificas! Retorquiu, com a superioridade de quem domina o diálogo (coisa raríssima nele).

É verdade que reduzi esta questão quase à caricatura, deixem-me, pois, explicar melhor. Tinha como critério positivo o aperto-de-mão-viril, o que contradizia o seu cumprimento “picha-mole”, e ele estava longe de ser um génio onde a contradição é muitas vezes virtuosa. Sentia-se, aliás, bastante perplexo. Talvez por isso, quando percebeu que violava as sacrossantas leis da lógica tenha ido à net encomendar uma puta. Demorou uma hora a escolher, indeciso entre uma ucraniana de 30 anos em promoção e uma “estudante universitária portuguesa quente e meiga” de 24, poliglota e frequentadora assídua dos quadros de honra cognitivos. Acabou por ficar com a ucraniana por €100 (um bónus de €20 em cartão). Serviço ao domicílio meia hora depois (vantagem de viver em Lisboa).

Toque de campainha.

– Sim?

– Linha do prazer, é aqui?

– Sim, vou abrir.

Entrou no apartamento alguém com pelo menos mais 10 anos do que o anunciado, em sobrepeso e uma pele cheia de crateras mal disfarçadas com carradas de base.

– Senhor João?

– Sim, claro, sou eu. E você...

– Eu chamo o que o senhor quiser.

– Pode ser... Tina?

– Certo. Como vai querer?

– Oral e anal.

– Ai, eu não querer cu.

– Como não queres?

– Não ser bom.

– Mas não sou eu que decido?

– Por favor, eu não querer.

– Está bem, oral e manual (regressava ao fetichismo do aperto de mão).

– Booooom.

E lá fizeram aquilo, ora boca, ora mão, direita.

[esta cena não traz nada de novo à erótica ocidental. Mas ao lado do quadro prosaico há uma peça de sentido que reforça o traço agónico de Lourenço, encarnação de “o último homem”]

– Bem, Tina... aqui estão os €100, espero voltar a ver-te...

– O senhor gostar?

– Sim, sim, foi bastante bom.

Nenhum remorso, há muito que Lourenço usava de vez em quando prostitutas, e muito antes disso já tinha declarado que para si a prostituição era uma profissão pelo menos tão digna como a de medicina. Aliás, as senhoras e os senhores de bata branca faziam coisas bem mais imundas do que meter um pénis cheio de vitalidade num buraco do corpo ou apertá-lo na mão. Em boa verdade, Lourenço achava a prostituição bonita, não bela ou útil, não imoral ou insalubre, mas bonita.

Sem remorsos mas sem certezas também sobre a sua orientação sexual. Tina, ou lá como ela se chamava, não tinha dissipado, como mais algumas antes dela, as dúvidas que o contraste aperto-de-mão-mole / aperto-de-mão-rijo tinha inscrito no seu íntimo. Terá isto marcado uma ruptura profunda no Lourenço, fissurando o dique que continha a certeza da sua identidade? Não sei dizê-lo, foi nesta altura que se re-apaixonou pelo Livro do Desassossego, baralhando as razões que pareciam tê-lo tornado menos clarividente. A opacidade que ganhou por volta dos 40, pode, pois, dever-se tanto à confusão entre estilos de aperto-de-mão quanto a um reforço deslocado de Fernando Pessoa, que para não fazer mal, diz-se, deve ser lido na íntegra até aos 30 anos (a não ser que se viva de bolsas FCT). 

Onde começa a estrela, eu começo a lembrar-te por dentro dos pesadelos

Onde começa a estrela, eu começo a lembrar-te por dentro dos pesadelos
eu começo a lembrar-te onde as orquídeas sangram
eu começo a recordar-te onde os cavalos adormecem com as patas magoadas
enlameadas de pavor
e começo a recordar-te onde este outubro sempre estala
(como um ruído de roseiras a arranhar o coração)

Ouve,
eu sei que outubro chegará celeremente pelo quebrar das violadas fechaduras
com suas chuvas de rosas frias e letárgicas
com suas árvores de argila menstruada
e os seus espelhos baços enevoados de sintomas
e sei que os peixes flutuarão pelos jardins
que as ervas crescerão nas línguas tépidas das pedras
e que os gatos ensolarados de vertigens assoprarão poemas frios no desalento
das clareiras
outubro com as laranjas orvalhadas
com o teu rosto de água límpida obliquamente a contorcer-se
com os teus pés de sangue e seiva entre as navalhas da manhã
com o brilho de fotosféricas papoilas entre a poalha dos cabelos enlaçados
outubro com os mortos ao redor dos tornozelos
os mortos presos pelos dedos felinamente catalépticos
os mortos generosos: apertando para sempre o nosso hibisco arterial
e os teus olhos que sorriem entre a lonjura e a vigília
e a subtilíssima linguagem das trepadeiras delicadas. 

Irmão, 
eu posso ouvir-te sob esta chuva de ossos plúmbeos
que estilhaça as violetas da nossa límpida alegria e dilacera o riso claro
da nossa infância flutuante
eu posso clamar-te até ao topo das circulares catedrais
e escutar-te com os tímpanos de tantas flores suturadas

Que asas perpassaram os alicerces?

Irmão,
brilha uma rosa tumular
e os campos que humildemente percorremos estendem olhos de leopardos
insurretos
e há horas em que esqueço o soçobrar da nossa morte
em que vislumbro a sombra trémula do teu rosto a incendiar-se
com o sopro de uma força ressuscitada
irmão, onde começa a estrela inteira?  
outubro arde lentamente com os seus astros de carvão
e nós permanecemos entre os espelhos inaudíveis e o sangue de vegetações
crepusculares
leves, como crianças desamparadas