Onde tudo se encontra e cresce: posfácio a 'para um outro dia Lázaro', de Fernando Machado Silva

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Em 2012 um pequeno livro de poemas do Fernando fez parte dos primeiros seis títulos da editora que então sob a minha orientação dava os seus primeiros passos. Seis anos depois, novo livro do Fernando, na mesma editora – que, entretanto, não soçobrou. Um e outro foram, antes de tudo, actos de amizade. E este, o de deixar nas últimas páginas de um livro do Fernando um “posfácio”, sendo embora acto mais modesto, é selado com a mesma amizade.

Na poesia que até hoje publicou, o Fernando Machado Silva tem aberto os seus caminhos, uns mais a bordejar, com a necessária distância, as suas próprias vivências: as relações familiares, 


de entre todos os meus irmãos
eu sou a minha mãe e o meu pai
para o bem e para o mal vejo em mim
os dois intercalando a sua presença
não há quem ganhe e nada há para ganhar
só o lento massacre no lançamento das culpas
do que se fez ou se sacrificou para o outro
(“eu sou a minha mãe e o meu pai”)
os percursos sinuosos do amor, 

(…)

escura é uma boca que procura
o nome que não há e assombra
e do medo semeia o tempo para
o sonho de perdurar depois de tudo

mas estrelas talco arroz são
do mesmo pó da tua pele
tinir de outro tom
nódulo em outra corda

(…)

 (de “para habitar a comunidade ou justo o amor”)


outros em busca do justo dizer poético, 

(…) a vida que tento numa escrita permanece
desconhecida é só mais um tijolo na muralha
de papel um nome no barro onde os dedos mergulham
misturando memória imagens o gosto
(escreve escreve) de cifrar um mundo

(…)

(de “1.”  de “A escrita do amor por entre quartos e corredores”)


ou de modos de pensar, 

com a escrita adio a morte

quando a mão se suspende
no ar       falcão ao alto
de olhar vertical no ataque
a cada palavra       a morte instala-se
no intervalo da escolha
no pensamento

adia a escrita

(de “de mão suspensa”)


aproximando-se, hesitantemente, mas com intensidade, de uma poesia que conjuga todo o seu dizer lírico com os jogos de linguagem que fazem mundos. É esta, parece-me, uma das singularidades da poesia do FMS – mas este livro, em particular, pertence a um terreno ontológico do amor e da morte, onde tudo se joga (se diz).

Este poeta, e é isto que aqui mais quero destacar, tem outras várias virtudes: a sinceridade, a coragem, a inteligência e a honestidade. Na sua poesia, estas virtudes entram em jogos difíceis (e perigosos), mas, pelos modos como são jogados, entroncam-se numa ética, num sentido político da poesia. Se é certo que a ética não se deve arvorar em categoria estética, e muito menos ser argumento de autoridade ou de validação de excelência poética, sem ela é que a poesia tende a definhar – a não o ser. 

O que é que isto tem a ver com a poesia? Tudo.

Vi muitas vezes – na escrita, no teatro, nas tentativas de vida – o olhar suspenso do Fernando preso por uma questão ética. E, depois, saindo-lhe (literalmente) do corpo, o gesto de optar por não ceder, custasse-lhe isso o que lhe custasse. O que não lhe anulou as hesitações, as dúvidas, as demonstrações de fragilidade, os desejos, os apelos da sua poesia. É mesmo assim.


Uns leitores (mais críticos…), preferirão catar imperfeições formais, transes conceptuais menos defensáveis, etc., para, assim, desvalorizarem o todo; outros, provavelmente, deixar-se-ão apenas tocar pela intensidade e energia que atravessam a poesia deste poeta. 

E… 

Em boa verdade, apenas queria deixar aqui uma Saudação ao Amigo – que é onde tudo se encontra e cresce.

6 de Maio de 2018

Nota: para outro dia Lázaro, de Fernando Machado Silva, foi publicado pela Enfermaria 6 em Outubro de 2018.

Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim

[para o Miguel F.] 

Hoje um amigo reencontrou-me tropeçou em mim
num livro meu na fnac e foi sentar-se à sombra
de um corredor e leu as minhas estórias e disse-me
isso mesmo com umas palavras hesitantes no gmail
e a alegria que senti não foi além de uns pontos
de exclamação em socorro da memória atrapalhada 

foi pelos inícios dos anos oitenta na assírio & alvim
da estação da cp do rossio em lisboa onde poetas
se afadigavam na procura dos corpos e os comboios
para sintra os levavam aos ombros macios dos começos
foi aí na a&a que todos os dias cavalgávamos os livros
e depois subíamos ao bairro pelas escadinhas do duque 

foi lá que perdi memória outros perderam só a noite
ou uma espécie de insensibilidade dura os salvou
eu continuo a voltar sempre um dia antes do outro
sem que os fios da memória se fixem de uma vez por todas
eterno recomeço que apenas a espaços se parece com a vida
mas o teu email querido miguel cravou fundo uma estaca

não sei se amanhã daqui a horas ou dias desaparecerá
essa pele que agora parece a dos meus vinte e tal anos
as páginas novas dos livros novos as linhas dos rostos
que afloram à tona do dia os pequenos gestos tão sós
os sentimentos sem corpos os lugares desocupados
como as palavras que sem sabermos nos mentiam 

ah se eu soubesse então que as minhas palavras futuras
teria também de as varrer do sarro que nos outros eu via
crescer disfarçadas com o rancor a romper as lantejoulas
tão fácil que era passar pontes a voar e sorrir de lábios
rasgados e a dor a ficar aninhada numa puta do gingão
ou num banco de jardim na madrugada fria do cais 

havia muito aço frio naquela maldita estação do rossio
e não sei se terá ficado estes anos a embotar o espaço
e o tempo que se espraiam entre os que se davam 

o certo é que morreram alguns de nós
toupeiras inúteis.

Inédito, Julho de 2012