O veneno do nacionalismo

George Steiner

George Steiner

Nunca percebi (dentro da inteligibilidade que envolve o nosso tempo) a palavra (ou frase) de ordem que coloca a “soberania nacional” como o desígnio máximo de uma comunidade, sinto sempre que há um oportunismo revivalista invocando o Leviathan hobbesiano ou a Vontade Geral rousseauniana (correspondendo vagamente à direita e à esquerda políticas, respectivamente), que como sabemos são conceitos, ou signos mais difusos, que acabaram por aquartelar-se numa performatividade dramatúrgica em vez de traçarem com a clareza possível os elementos que configuram o sentido de pertença a uma população que originalmente parecia atomizada pelo vírus do egoísmo.

Sei bem que é uma frase para cartazes, que se insinuam em cada rotunda com uma evidência inquestionável, poupa reflexão e alimenta a pequena veia nacionalista. Mas é também reaccionária e perigosamente beligerante, lógica tribal e ódio/medo do estrangeiro (o conhecido contra o estranho e o medo de perder recursos, no celebrado “vêm roubar-nos os empregos!”).

Como manifesto anti-nacionalista, aconselho este texto de George Steiner, escrito na longínqua década de 70 do século xx (provando que a actualidade revisita o passado mais vezes do que se pensa), um ensaio do The New Yorker traduzido para português pela Gradiva (George Steiner, The New Yorker, trad. Joana Pedroso Correira e Miguel Serras Pereira, 2010).

O nacionalismo é o veneno da história do nosso tempo. Nada é mais brutalmente absurdo do que a tendência por parte dos seres humanos de se atirarem às chamas ou de se matarem uns aos outros em nome da nacionalidade ou movidos pelo sortilégio pueril de uma bandeira. A cidadania é um pacto bilateral que está, ou deveria estar, sempre sujeito a um exame crítico, sendo, se necessário, revogável. Não há cidade humana pela qual valha a pena incorrer-se numa grande injustiça ou numa grande mentira. A morte de Sócrates pesa mais do que a sobrevivência de Atenas. Nada enobrece tanto a história de França como a vontade que levou franceses a raiarem a queda colectiva no abismo, a enfraquecerem radicalmente os laços da nacionalidade (como sucedeu, na realidade), por ocasião do caso Dreyfus. […] A pátria de cada um de nós é a parcela de espaço comum e corrente – pode ser um quarto de hotel ou um banco no parque mais próximo – que a cerrada vigilância e perseguição dos modernos regimes burocráticos ocidentais ou orientais ainda consentem ao nosso trabalho. As árvores têm raízes, mas os seres humanos têm pernas que lhes permitem partir depois de em consciência terem dito ‘não’. (p. 53)

 

«você não sabe»

você não sabe
o que é dobrar
              uma primavera
você só entende
de invernos,
de edredons,
camisinhas,
band-aid,
merthiolate,
e seriados

um cavalo atravessa furioso
                                  esse lago
fundo dos teus olhos
galopando, galopando, galopando

você não sabe
o que são anzóis
você não sabe
o que é um cavalo

a saliva escorrendo da tua boca
escorrendo pelo canto esquerdo
                              dos teus lábios
vermelhos-sangue,

uma isca escapando do anzol

você me chove e chove muito
chove imensa constelação
você não sabe
como molha dentro de mim
como boiam minhas entranhas
                                   e afundam

gravitarei teu corpo marítimo
navegarei tuas paisagens noturnas

cansei de ser um peixe
no lago dos teus olhos
serei um anjo
na primavera das tuas coxas
roendo a geografia tópica
              dos teus segredos

de balde em balde
encherei teus olhos
serei teu lago
largo,              profundo

serei a primavera que não conhece


Explicação das palavras

Entendo agora as palavras que não se esgotam
E como elas tocam a alma
Mesmo sem o tremendo poder das mãos.
Já sei como envergam um manto intensamente tecido,
Ressuscitando a cada vírgula, mesmo após um parágrafo.
É preciso, portanto, deixar jorrar como uma tempestade
Todas as memórias que carregam,
Torná-las espelhos exactos. Precisos.

Não são factos, mas novas verdades que as palavras carregam.
Há nelas um sangue luminoso que jorra depois do silêncio
Uma memória que se desnuda sem medos
Quando libertamos a voz para as palavras.
Uma escuridão que se rasga num quieto brilho
Como um ventre que se abre para uma vida nova.

Por vezes inunda-nos um cântico translúcido
E conduzimos as vozes das palavras em gestos simples
Como uma orquestra perfeita. Precisa.
São mais do que gestos, aquilo que as palavras nos oferecem.
Uma intensidade luminosa,
Sem rede, num trapézio que toca os céus.

Entendo-as, agora que os instrumentos se afinaram.
Oferecem hoje tempestades perfeitas.
São proféticas as palavras. 
Sempre sedosamente raras
Antecipando tempos e marcando um sulco profundo na memória.
As palavras são ventre e trapézio. Espelho preciso.
 

Fichário; Uma ideia contemporânea aplicada a diversos sectores da cadeia produtiva​​​​​​​; Mapas; Pai; Um foto de José Cândido de Lima; Exercício; Algo a dizer ao seu tempo

Fichário

Aquela vida que não
serve de presente nem traz uma
lição ou clareza de propósito. 
Sem um proceder moralmente aproveitável lições
virtudes adquiridas.
Aquela vida sem fato
digno de nota.
Aquela
vida.


Uma ideia contemporânea aplicada a diversos sectores da cadeia produtiva

A figura do indigente de cujo amplo sistema é ainda
potencial dizimista e colaborador comprova que
algumas pessoas não desenvolveram suficientemente a
capacidade para serem bem sucedidas ou
não abraçaram com afinco o projeto que, de fato
lhe oportunizaria uma
vida melhor


Mapas

Negando a deriva, o mapa é a glosa estática dos percursos.
A mobilidade rasga a idealização euclidiana do mapa.
Sob o ponto de vista da imobilidade desejante
nenhum mapa é possível.
Os mapas são feitos para seguir, desbastar, invadir, possuir, ocupar, adonar, dizimar, in/fluir.
O mapa é, sobretudo, um instrumento pantográfico militar.
Um mapa para retroceder outro para estar parado.
Um mapa para a desistência.


Pai

Como quando ali no epicentro de
um tumulto de reses
aspas afiadas foices
enodoadas o burrifo e
cada mugem rente à más
cara do menino medroso
só no abrigo de sua sombra
magra – a mesma mão áspera
defumada nas coivaras


Um foto de José Cândido de Lima

Por que veem tão depressa?
Talvez porque ainda haja futuro ou
algum outro tempo menos a
este homem só na sala olhos
cravados no instante toda
respiração destinada ao presente

Mirar sem recordação - esta a
luta: algo decepou a memória
muda serrilhada a nódoa dos esforços
abandona as mãos desse totalmente no
presente não porque respire mas
inevitável 

Diante de tanto projeto abolido
mirar fixamente o instante a poça
luminosa no chão que se
abre toda hora às vezes tão
nítido


Exercício

Mergulhe na aridez
afunde as mãos na
raiz da areia e
traga isso na
memória



Algo a dizer ao seu tempo

Um recuperador de
ativos financeiros
o herói
poeta metafísico promotor
de sinergias
o celebrante


Coisas que é preciso calar

Tiveste um segredo?...

Guarda-o bem, pode ser que nunca mais o tenhas. Os segredos consomem-se, é por isso que são segredos. Se te guardam tempo demais, é como se nunca os tivesses tido. Os segredos desenrolam-se dentro de ti. Não tenhas medo deles. Se foste infeliz, nunca o contes a ninguém, tornar-se-á segredo e a realidade é sempre pior do que os outros, por isso, nunca contes um segredo a ti próprio a não ser que nunca mais o saibas.

É muito melhor deixar tudo em segredo.

Lembras-te, daquela vez, deixado em baixo, secreto, sentido ou informado?, na infância que nunca foste, por quem te devia amar? Guarda segredo.

Lembras-te, daquela vez, em que estouraste, em que disseste, isto nunca mais, nunca mais, jamais, guarda segredo, não vá tornar-se realidade, e os segredos não são sofrimentos se não os proclamares, se não te prostrares e disseres: é este o meu segredo, é esta a minha vontade.

Não proves disso.

Não proves disso, deixa-te em paz, há algo em tudo que continua a sofrer. Parte disso. Deixa-te disso. Guarda segredo.

Enterra tudo. Revela nada. Cala o mundo.

Encontrarás, deixarás, nisso segredos.

Não precises de um segredo.

Eles deixam-te a sós, e tu queres estar só, nem que seja para que não conheças a tua voz, a tua voz que muda, a tua voz que rasteja, que sibila, que pressagia, que não diz.

Estás só contigo. Não tens segredos. Não tenhas segredos.

Quando morreres ninguém os conhecerá. Não te lembres disso.

Reiterando o pedido de desculpas,

Pedro BF