Selima Hill, 'Posso, por favor, ter um homem '

Tradução de Hugo Pinto Santos

Posso, por favor, ter um homem que use bombazine.
Posso, por favor, ter um homem
que saiba 100 nomes diferentes de  rosas;
que não se importe com os meus coelhos distraídos
 que vagueiam por aqui e por ali
como se fossem donos disto,
que me faça um caril cremoso com erva-cidreira fresca,

que caminhe como Belmondo em A Bout de Souffle;
que pendure todos os meus postais cuidadosamente selecionados -
mandados de cidades exóticas
às quais ele não espera ir comigo,
mas aonde iria se lhe pedisse, o que farei -
com mais niguém, na parede do seu quarto,
a começar por Ivy, o Famoso Porco Mergulhador,

de cujo retrato, em acção, comprei dez cópias;
que também fale como Belmondo, com lábios tão suaves
e tão firmemente desenhados como botões de peónia
cobertos de chocolate (chocolate fundente);
que saiba que postar-se ébrio sobre mim
como um edredão com estofo de livros da biblioteca e sacos de compras
é muito fácil: posso, por favor, ter um homem

que não esteja disposto a fazer isso.
Nem esteja disposto a dizer-me que estou bonita.
Que, quando eu saio apressada da casa de banho,
como um leitãozinho aprumado,
que não quer mais do que uma pândega
de afecto e indisciplina, sem complicações,
abra os braços como uma gamela para eu mergulhar. 

Selima Hill, Violet, Bloodaxe, 1997

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Um chocolate, uma perna, a angústia

A bibliotecária gorda não desgruda do computador, atende o cliente revirando aqueles olhos cor de azeitona cuja beleza duas lentes garrafais para a miopia e o astigmatismo não ofuscam. Faça o favor de dizer, exclama, bruta, quase exigindo ao mundo que sofra com ela. Cinco quilos em cada mão, noventa quilos espalhados pelo corpo, cogita o cliente, se este monte de banha me cunha um sopapo põe-me de baixa médica, a comer sopa de cenoura e a abrir e fechar a boca a ver se endireito o maxilar. Queria reservar dois, diz o cliente. Já reservou três, responde a gorda. Gostaria de reservar também estes dois, responde o cliente. Só quando devolver dois dos outros três, responde a mulher. A gorda mira o cliente com desprezo e afirma, com os dedos a baterem freneticamente no teclado, que o seu tempo é escasso, que as chefias, entidades fantasmagóricas e cada vez mais exigentes, reclamam produtividade. Produza mais e trabalhe as mesmas horas, escarra a gorda, angustiada e aplicando murros no teclado. O telefone toca: um dos chefes pergunta como vai a produtividade e a gorda reprime a violência com uma dentada na mão. O telefone toca outra vez e outro chefe aconselha-a a dar mais de si, a não se contentar com o bom. A gorda liberta uma lágrima e pergunta ao cliente se tem um chocolate ou um pacote de açúcar, que o sofrimento a consome e dentro da sua mala não resta nem uma bolacha, nem uma migalha. Julguei que este trabalho consistia em permanecer sentada a limar as unhas, a ver vídeos de animais na internet, a pensar na preparação do jantar, confessa a funcionária, e soluça e pede um chocolate, diz que pode ser de leite, simples, sem avelãs ou passas, um mero chocolate. Não tenho, diz o cliente, e mais uma vez é o computador que paga, levando uma cabeçada que faz saltar algumas teclas. Entrei aqui magra, choraminga, cruzava as pernas e os homens esbugalhavam os olhos, ficavam de queixo caído, agora, snif, levanto-me da cadeira e rebolo até ao supermercado. A gorda estanca a onda de pieguice com um arroto. Azia, desculpa-se. O cliente regressa ao seu lugar, o escuro da biblioteca amolece-o, não tarda em adormecer e acorda com o seu próprio ronco e depois tenta focar-se na leitura mas os roncos intrometem-se outra vez e volta a acordar com o som de uma explosão de granada. Não que alguma vez tenha ouvido uma granada a explodir, pensa, mas se é como nos filmes o som é idêntico. A gorda desmaiou de fraqueza ao abrir um vídeo de um gatinho acabado de nascer. O cliente encontra-a esparramada no chão, babada e a contorcer-se como se estivesse a levar choques ou a ser exorcizada. A culpa é tua, não me trouxeste o chocolate, berra a mulher com uma voz vinda do fundo de uma caverna, uma voz medonha que arrepia e impele o cliente a correr. Salta por cima daquele monte de gordura, não tem outro modo de fugir, a sujeita caiu mesmo ao pé da porta. Ao saltar sente uma mão enorme a agarrar-lhe a perna e uma dentada, duas dentadas. E depois a perna meio comida e o corpo ligado a duas muletas.

produtos da roça a 8 km, estrada pro rio de janeiro

montanhas amarrotadas 
             perto da estrada de ferro enferrujada 
galpões abandonados 
             com grama rasteira crescendo 
                                  como num braço 
galinhas ciscam na terra vermelha 
               velha comanda o facão do garoto moreno 
nas folhas de bananeira 
                fumaça em casebres de pintura naïf
                cavalos comendo no cocho 
vacas deitadas espiam a estrada 
                 motel de caminhoneiro 
                            junto do posto de gasolina, a câmara furada 

esta é a trilha da terra 
                   onde se planta arame farpado 
onde chovem insetos e resmungam 
                    os postes de fios eletrificados 
onde o mato corre queimado 
                     para a beirada da guia na estrada 
onde sulcos nos montes 
                         parecem feridas 
e flores despencam no lago 
              onde bebem os bois malhados 

ergue-se um manto musgoso 
abre-se um veio montado em concreto 
               aos borbotões de água e das chuvas 
lagos pequenos, lâminas de prata 
                ou borrados de barro 
tingindo as patas brancas do gado 
                  caixas d’água e antenas, poços abertos 
                         um deserto cercado 
                                 de branco caiado 
declive na serra onde a névoa 
                   puxa as nuvens pra baixo 
como a fumaça de cigarro 
                    se do nariz pra boca 

pedágios não recolhem 
               parachoques arrancados 
nem chifres nos beirais da rodovia 
               secando roupas nos varais 
               quarando roupas sobre as pedras 
                       e o riso explode em barba espessa, melancia doce

19.

Costumava dizer: não são os momentos, a soma ou ausência de, que nos dão as conclusões. E apenas a subsistência ao alento que nos permite esperar, esperar mais e melhor. foi assim, já perto do seu final, que aguardou pacientemente por quem lhe chegasse para descalçar os sapatos gastos, lhe despisse as meias com delicadeza e lhe beijasse os pés com irreversível  bondade. Quando isso estava prestes a aconteceu, deu por vontade própria –como sempre quis – a sua outra face, a pior, e pode então calar-se de vez.