Desconsolo

Parte 1/2

Quando os filhos adormecem, ele fecha a porta do quarto, abraça a mulher e deita-se devagar a seu lado. Desliga a luz, sente uma tristeza absurda.

“Onde é que eu falhei, Raquel?”

Ela toca-lhe na cara e a sua voz serena diz-lhe que não falhou. Os filhos são assim mesmo: decidem o seu caminho e nós nada podemos fazer; é uma guerra perdida, a última palavra nunca é nossa.

Naquela tarde, ele entrou no quarto de Débora, a filha de quinze anos. Ela veste-se mal, vai chumbar pela segunda vez. Entrou no quarto dela porque desconfiava dos seus ataques de riso à hora do jantar, quando se sentam à mesa e conversam sobre o dia que está a terminar.

Foi Raquel quem primeiro desconfiou desses ataques de riso, depois sentiu o cheiro a tabaco na roupa da enteada. A princípio nada disse, mas os sinais ficaram cada vez mais evidentes. Ponderou ser ela a falar com ela, mas seria inútil porque Débora não a respeita, não lhe reconhece qualquer tipo de autoridade. Débora não quer que Raquel ali esteja e nunca o escondeu.

Semanas mais tarde, Raquel sentou o marido no cadeirão da varanda e contou-lhe. Ele ficou incrédulo, depois enraivecido. Ela segurou-lhe no braço, pediu serenidade, mas o olhar dele estava vazio, não a escutava.

Os dias foram passando, nada mudou. Esta tarde, ele entrou no quarto da filha, revolveu as coisas dela, obrigou-a a confessar. Débora disse-lhe que fuma charros e que não vê mal nisso. Ele teve vontade de esbofeteá-la, mas não o fez. Sentou a família no chão da sala, falou demoradamente sobre os erros de Débora, que ouviu em silêncio, sem culpa, não se defendeu, ficou indiferente como se ali não estivesse.

Ele sentiu-se derrotado.

À noite, depois de fechar a porta do quarto, pergunta a Raquel onde falhou e ela, doce, explica-lhe que não falhou. Ele não a escuta porque está a pensar em Judite e em como tudo seria diferente, como tudo seria melhor, se ela não tivesse morrido, se ele não a tivesse deixado morrer. Raquel beija-o na testa enquanto ele pensa em Judite.

Depois, ele fecha os olhos, adormece cansado. Ela sai do quarto devagar, não o quer acordar. Não acende a luz da sala, entra na varanda, senta-se no cadeirão, o gato salta para o seu colo e ronrona.

Raquel sabe que não é amada, que o marido não fez o luto e que se culpa pela estúpida morte de Judite. Raquel está presa a algo que nunca existiu e que nunca existirá. Entre eles não há amor nem paixão. Houve consolo na dor, mas agora não há mais que conforto. Ela prefere este conforto ao risco. Nunca encontrou o seu lugar porque nunca o procurou. Agora sente que é tarde, desiste e aceita o pouco que lhe resta: ele não a ama mas é um bom homem.

A noite está quente, um camião e três homens recolhem o lixo dos caixotes da rua. O cheiro nauseabundo não a distrai dos seus pensamentos e o gato continua a ronronar no seu colo.

Dormir no sofá

Sento-me no sofá e adormeço. Não sei quanto tempo, mas acordo com a tua chegada. Vejo que trazes o cabelo molhado e uma frustração nos ombros.

“Está a chover?”

Dizes-me que acabei de fazer a pergunta mais estúpida de sempre. Levanto-me e trago-te uma toalha. Secas o cabelo e despes-te. Encosto a boca ao teu mamilo, mas tu empurras-me. Sento-me novamente no sofá e adormeço.

Acordas-me para jantar. Fizeste ovos mexidos com cogumelos. Sentamo-nos e jantamos em silêncio. Coloco os cogumelos na borda do prato, não gosto e tu sabes disso. Estás estranha, não sei o que se passa contigo, alguma coisa se passa, alguma coisa se passa há muito tempo, mas tu não vais dizer, nunca me dizes nada.

“Come o resto, já estou cheio.”

Olhas-me com desprezo, volto ao sofá e adormeço. Acordo com a luz banca do dia que começa a nascer. Vou ao quarto e vejo-te deitada, a dormir completamente nua. Tens uma revista em cima da minha almofada e um fio de baba a escorrer da boca. Grito até te acordar. Assustada, perguntas-me o que tenho.

“Acho que precisamos de um gato.”

Não compreendes o que estou a dizer, dás um estalo com a língua no céu-da-boca.

“Vou à casa-de-banho.”

Deixas-me sozinho no quarto. Olho a cama vazia, os lençóis brancos e a puta da revista no meu lugar. Tudo isto me parece absurdo e incompreensível. Regressas com os olhos vermelhos e dizes:

“Quando foi que isto nos aconteceu?”

“Quando começaste a babar-te na cama.”

A minha gargalhada é imediata e exagerada. Continuas espantada com o meu comportamento, abanas a cabeça. Coço o pé até fazer sangue e tu nada fazes para me impedir.

“Não sentes uma angústia muito grande pelo nosso falhanço?”

“Vai dormir, Teresa. O teu mal é sono.”

Volto ao sofá e esfrego a ferida em álcool. Sabe bem.

Leve


Ela passa aqui todos os dias ao final da tarde com a mochila às costas. Quando vem feliz, corre desaforida, não olha ninguém, corre, corre e não me vê. Quando vem triste ou cansada ou acompanhada, passa devagar, com uma respiração tranquila, um sorriso simpático e cumprimenta toda a gente com quem se cruza. Não sei se sabe quem sou, não se deve lembrar, era muito nova, muito mais nova. Não se lembra, não se pode lembrar. Não sei ao certo que idade tem.

É muito pequena, muito branca, muito magra e tem o cabelo muito comprido, demasiado comprido, sempre solto, nunca o traz apanhado. Quando passa por mim a correr, o cabelo voa e não me deixa ver a sua cara. Isso irrita- me.

Sento-me no alpendre e espero-a. Pouco depois, oiço-a cantar e vejo-a antes que me veja a mim. Está distraída, vem distraída, não me parece triste, deve estar cansada, deve ser isso. Hoje traz um vestido preto pelos joelhos que deixam perceber uma ferida grande na canela esquerda. 

Quando percebe que a estou a observar, pára e cumprimenta-me envergonhada. Afasta-se, mas chamo-a de volta e digo: 

“Como te chamas?” 
“Cláudia.” 
“Que idade tens, Cláudia?” 
“Onze.” 
“És muito parecida com a minha filha, sabes?” 
“Não a conheço. Como se chama?” 
“Comprei-lhe um vestido para oferecer no seu aniversário.” 
“É bonito?” 
“Eu acho que sim. É azul e branco. Gostas?” 
“Não o vi.” 
“Gostas das cores?” 
“De azul e branco?” 
“Sim.” 
“Gosto muito!” 
“Tenho medo que o vestido não lhe sirva.”  
“Isso seria triste.” 
“Ela é muito parecida contigo.” 
“Já me disse.” 
“Não te importarias de experimentar o vestido?” 
“Como?” 
“Se o vestido te servir, também serve a ela.” 
“Não posso experimentar um vestido que é para ela!” 
“Porquê?” 
“O vestido não é para mim!” 
“É para a minha filha, que é muito parecida contigo.” 
“Ela pode ficar zangada. Eu ficaria zangada se alguém vestisse a minha roupa.” 
“Ela não saberá.” 
“Isso não é certo. Não é certo mentir.” 
“É por uma boa causa, não achas?” 
“Qual causa?” 
“O vestido tem que lhe servir. Imagina como ficaria decepcionada se não 
pudesse usar o vestido.” 
“Oh.” 
“Não me queres ajudar?” 
“Ela mora com quem?” 
“Mora longe.” 

Quando entramos em casa, Cláudia senta-se no sofá. Nervosa, olha a sala e demora-se em cada canto, em cada pormenor. Pousa as mãos sobre as pernas, umas pernas finas, tão bonitas, tão delicadas. Joga o cabelo para trás das costas, puxa as meias brancas com força, tenta esconder a ferida. Ajoelho-me em frente dela, puxo a meia para baixo e pergunto-lhe como se magoou. Conta-me uma história de corrida desenfreada, uma brincadeira parva e uma pancada forte num ferro. Toco com o dedo e pergunto-lhe se dói. Diz-me que sim. Beijo a ferida e prometo-lhe que vai passar, que sarará rapidamente. Ela sorri e pergunta-me se pode usar a casa-de-banho.

Levo-a até lá, depois subo ao sótão, procuro as canetas de feltro, as velhas canetas de feltro. Desço, volto à sala, desvio a sapateira, olho a parede branca e oiço Cláudia:  

“O que está a fazer?” 
“Trata-me por tu, somos amigos.” 
“O que estás a fazer?” 
“Gostas de desenhar?” 
“Gosto muito. Porquê?” 
“O que gostas mais de desenhar?” 
“Animais, gosto muito de animais. Leões e girafas.” 
“Eu gosto de desenhar árvores e casas. Vamos desenhar nesta parede?” 
“Na parede?” 
“Não faz mal. Desenharemos em conjunto; o que me dizes? Tu desenhas os 
animais e eu as árvores.” 
“E uma casa.” 
“Uma casa junto dos animais selvagens?” 
“É a casa do caçador que os vai matar.” 

Começo a desenhar a cabana. Cláudia pega numa caneta cor-de-laranja, coloca-se de joelhos a meu lado e começa a desenhar uma girafa. Distraio-me e fico a olhá-la. Está muito concentrada, desenha tão bem, com muito cuidado para não falhar, com desejo de perfeição, a perfeição dela. Volto à cabana e tento concentrar-me, mas não consigo. 

“Gostas da tua mãe?” 
“Claro que gosto. Ela é linda.” 
“É tão bonita quanto tu?” 
“Muito mais bonita, muito mais.” 
“Devias cortar o cabelo, não gosto dele assim.” 
“Eu gosto e a minha mãe também.” 
“Ela também tem o cabelo comprido?” 
“Sim, mais comprido que o meu.” 

Levanto-me e levanto-a. É tão leve, tão fácil de pegar, de imobilizar, de dominar. Ela abre muito os olhos, está assustada. Pouso-a e aponto para os joelhos que estão muito vermelhos. Pergunto-lhe se não lhe dói e ela diz-me que não. Coloco as palmas de minhas mãos nos seus joelhos e fecho a mão com força até que ouvi-la gritar que estou a magoá-la. Rio-me e peço-lhe desculpa, digo que estou a brincar, que estou só a brincar. Cláudia quer sair, quer ir embora, corre para a porta, mas eu agarro-a pelo braço, tenta morder-me mas não consegue. Trago-a para junto da parede. A meu lado ela é tão pequena, tão frágil, tão vulnerável. Pego numa almofada e coloco à sua frente. 

“Vamos terminar o desenho.” 

Senta-te nessa cadeira, não tenhas medo, não te vou fazer mal. Não estou zangado contigo, não te preocupes. Estou apenas um pouco desiludido, não esperava isto. Não esperava que traísses a minha confiança desta maneira. Não estou chateado. Sabes o que provocaste, correcto? Pensaste nas consequências? Diz-me, pensaste? Sabias o que podia acontecer? O que iria acontecer se abrisses a boca? É importante prevermos o que podemos causar se dissermos certas coisas, se fizermos certas coisas. A isso chama-se responsabilidade e tu já és crescido. Com onze anos tens de sentir o que é a responsabilidade. Não tens desculpa, já não és uma criança. Tens idade para compreender as consequências. Tens idade para pensar por ti mesmo. Pensaste? Pensaste antes de falar com a tua mãe? Ponderaste? Colocaste em perspectiva? Hesitaste? Não estou chateado contigo, apenas desiludido. Esperava lealdade da tua parte. Sabes o que isso é? Esperava que não me traísses desta forma, que não me deixasses ser apanhado desprevenido, completamente de surpresa. Falei contigo, fui sincero contigo. Confiava cegamente em ti. Não estou chateado, mas penso que agiste mal, que fizeste a coisa errada. Não entendeste que nem sempre a verdade é o melhor caminho. Não entendeste que a mentira é necessária, tão necessária quanto a verdade. Tens uma ideia muito formatada do mundo - o bem e o mal, o certo e o errado e essas tangas que passas a vida a ouvir nas aulas, na televisão e na boca da tua mãe. Aposto que ela pressionou-te, que ela puxou por ti. Chantageou-te e cedeste. Já não tens idade para ir atrás da conversa dela, mas foste. Achaste que estavas a fazer o bem, quando estavas apenas a destruir algo bonito, algo que era muito bonito, mas que não estava bem, não estava temporariamente bem. Se tivesses acreditado em mim, em breve tudo voltaria a ser como era quando tudo estava bem. Não esperaste, foste impaciente e agora estamos os dois na merda. Não estou chateado contigo, não posso estar chateado contigo. Julgaste que estavas a fazer o bem, tomaste um partido, o partido da pessoa que achaste que estava a sofrer. Fizeste-o em consciência? É só nisso que tens de pensar. O resto é duro, mas todos nós nos habituamos. Vais ver que sim.

Não desligues, deixa-me falar contigo, espera, dá-me só uns minutos. Estás a ouvir-me? Sim? Olha, não te preocupes, não te preocupes mesmo. Tudo tem o seu fim, a vida é mesmo assim. O casamento dos teus pais já não andava bem, não podia andar. Quando conheci o teu pai, ele era um homem triste, infeliz, que não sabia o que se passava com a tua mãe. Ela faz coisas que ninguém compreende, não achas? Eu sei que ela é tua mãe, mas tens de admitir que o que ela faz é muito difícil de aguentar sem perder a cabeça. E o teu pai nunca a perdeu, sempre tratou-a muito bem. Não penses que ele fez tudo isto para a magoar. Percebes que ele sentia muita culpa? Há um fim para tudo... Ele não podia aguentar mais. Sentia-se muito sozinho. Foi por isso que nos conhecemos. Foi por ele se sentir sozinho que me encontrou, não achas? Nada acontece sem haver uma razão, entende isso. Nada acontece porque sim. A tua mãe não queria saber do teu pai, só se preocupava com as suas paranoias. O teu pai contou-me cada coisa de brandar aos céus. O que esperavas que ele fizesse? Que vivesse infeliz o resto da vida? Casa-trabalho-casa-trabalho e nem um pouco de felicidade? Era isso que querias para o teu pai? Não te preocupes, querido. Tudo vai ficar bem, confia em mim. O teu pai está muito magoado, mas vou falar com ele, vou dizer-lhe que tu és um bom menino e que não fizeste por mal. Dá-lhe um tempo, deixa-o recuperar em paz. Vais ver que ele te perdoa. Eu vou falar com ele, vou dizer-lhe para te deixar vir dormir a nossa casa sempre que quiseres. Podes vir todos os fins-de-semana. Podes vir sempre que quiseres. Faço-te um bolo. Sei que gostas muito de bolos. Ele disse-me. És guloso, tal como ele. Aposto que gostas de bolo de chocolate e noz. Aposto que vais gostar do meu bolo de chocolate e noz.

Não quero que voltes a falar com ela. Não quero saber o que ela te disse. Não quero que voltes a falar com ela. Não posso consentir que o meu filho fale com a mulher que ajudou a destruir o meu casamento. Não posso permitir isso, não tenhas ideias, tu nunca mais vais falar com ela. Ela não é tua amiga, ela faz- nos mal, percebes? Vais ignorá-la sempre que quiser falar contigo. Diz-lhe para vir falar comigo, que não tens autorização para falar com ela. Que ela fale comigo que vai ver como elas mordem. Não voltes a falar com ela, ouviste? Levanta a cabeça, não fiques assim. Só preciso que me prometas que não voltas a falar com ela. O teu pai que faça o que quiser, agora é livre para fazer o que quiser e aposto que se vai meter na casa dela. Ele não se portou bem comigo, nem contigo. Não te sintas culpado, ele é o único culpado, foi ele quem causou tudo isto. Agora somos livres. Não te sintas culpado, nunca te sintas culpado. Fizeste a coisa certa, fizeste mesmo a coisa certa. Acredita que doeu muito ouvir o que me contaste, mas estou feliz por teres contado, por teres estado ao meu lado. Agora sei que nunca me faltarás, independentemente de quem me quiser fazer mal. Isso é tão bom, não imaginas. É tão bom saber que o meu menino gosta de mim. Não chores, não vale a pena chorar, agora somos só nós, só nós dois e mais ninguém nos fará mal. Vamos ser muito unidos e assim mais ninguém nos fará mal. Ninguém me fará chorar como ele fez e não vou deixar que ninguém te faça chorar como estás a chorar agora. Ouviste? Eu sei que posso confiar em ti, eu sei que és um bom rapaz, que gostas da mãe como a mãe gosta de ti. É tão bom, não é? Abraça-me, dá-me um abraço, não chores mais, não vale a pena, vamos estar sempre juntos.