De «Cenas de uma vida conjugal»

Não nos atropelamos ou matamos por acaso.
Vejo com surpresa como ainda lhe é bondoso
o meu passar estreito, de ironias mansas lhe
é feito o meio sorriso e assim me devolve o
silêncio por cada porta que atravessamos.
Andamos de passos contados. Melhor,
sigo-a eu, recomeçando com vagar o
penúltimo copo, atónito ao espelho.
Reconheço-a, mas só ao ponto de
perceber o seu modo abandonado de mim,
manchado de feminino. É isso que gasta.
Acho-me imenso de movimentos, como
uma corda desfiada num chão de poeira.

"O homem que se inclina para o"

O homem que se inclina para o
Outro homem, que pede o resto
De cuspo da outra

Boca, como a sua, seca,
Chora parado, inclinado,
Ouve a voz do outro

Homem que recusa a secura,
Pede ainda assim, parado
Ouve o próprio bater do

Coração e chora, ouve
O ranger dos próprios
Intestinos, ouve e pede

Ao outro homem o que
Resta de cuspo da outra
Boca, não tão seca como

A sua. O homem chora e 
Sente, e pede o que não tem
E vê o outro

Homem. Ouve, na boca,
O próprio corpo inclinado
Bater.

Nec spe nec metu

Mas enfim, acabou a era dos gigantes: porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

P.e António Vieira

 

O que retenho de tudo isto é violentíssimo.  Impulso por impulso, são as horas que acabam e passam. Gigantes. A cada tempo, impulsivamente, acabam e passam.
Isto não é sobre deus. Seria, possivelmente, sobre a paz. Mas creio que nem um nem outro existem já para se visitarem. Isto é violentíssimo para quem há já algum tempo deixou cair o rio que tinha no cabelo, deixou cair as mãos cujas linhas foram entregues a uma velhinha tardia. Aqui, agora, tudo é mar e respiração - eis os meus pés! É violentíssimo.
Eu tive confiança no tempo. Confiei na água, nas flores (mesmo nas desertas), tive confiança no oráculo das nuvens, no arco-íris.  Confiei a gigantes a minha cria (-ção) com a inocência de uma criança. E não era nada disto. Nada disto. O que se pretendia, o que eu pretendia, era uma era de caminhos longos sem buracos de guerra, oceanos em barda, caminhos livres de crianças abatidas a tiro e dadas a comer a cães sarnentos. Mães sujas com o sangue dos filhos. Isto são as fezes de deus e da paz todas juntas. É violentíssimo.
Mas eu também sei ser gigante; vou comer do céu, beber galáxias inteiras e soprar ventos de cheiro lindo por este universo todo. Espalhar, com umas mãos enormes, brilhos cósmicos por cima da terra e de cada criança nela. Os gigantes não acabaram nem passaram. O gigante sou eu. E estou aqui, pronta para ensinar a deus e à paz o que são e para que servem. Como se um sonho. Como se um ponto brilhante, e ser livre. Como se assim.
Como se para tudo isto houvesse uma só violentíssima magia.

Selfies em caleidoscópio

Para a Tatiana Faia, que sabe selfiar bem

Voltemos às selfies, “auto-retratos”, como lhe chama um amigo meu, querendo esquivar-se à banalidade. No Verão, as redes sociais regurgitam de gestos narcísicos, o culto do eu redobra de vigor em período de férias. Da praia à viagem no estrangeiro, da esplanada ao concerto musical, do museu à caminhada na montanha... aumentam exponencialmente os cenários que emolduram a ouro a figuração pessoal. Os críticos, especialistas da negatividade, caem em cima desta avalanche de eus em pose, transbordando de felicidade; deplorando a esterilidade das partilhas egocentradas e as paradas exibicionistas, revelam, a partir do seu tribunal de costumes, os sintomas de decadência civilizacional no umbiguismo fotografado.

Mas em boa verdade, de Montaigne a Proust, de Thomas Mann a Robert Musil, de Fernando Pessoa a Friedrich Nietzsche, de Van Gogh a Goya... foi através de linhas de desenvolvimento partindo do sujeito que se produziram algumas das obras de arte mais universais. Neste sentido, não é tanto o número incomensurável das exibições que nos deve preocupar, mas a sua monotonia. O problema está mais no mimetismo dos gestos e textos que os enquadram do que na quantidade de selfies. A partilha de si só é desinteressante quando não introduz um pequeno fragmento de novidade, não acrescenta nada ao que já existe, não desbarata o hábito.

Por isso, em vez de se condenarem apressadamente as redes sociais digitais (Facebook, Twitter, Instagram...) – cai-se normalmente aí –, numa mistura paradoxal de intelectualismo progressista e reaccionário, talvez se deva pensar melhor, sobretudo mais livremente, retirando dos factos conclusões menos... estéreis. Parece-me que os avatares circulando pela Webesfera são principalmente, nos casos menos infantis, formas de des-subjectivação, dão a ver, ouvir, ler... como outros os originais. As selfies não fixam necessariamente o “eu”, são desenhos complexos do “si”, outras personagens que, apesar das ligações, se afastam das origens antropológicas do baptismo; à semelhança dos dispositivos heteronómicos. Nas redes sociais, o “eu” parece afastar-se da sua própria realidade e inventar uma projecção de si, que tanto pode ser narcísica (a normalidade) como experimental, irónica, fantasista, poética... Por outro lado, a multiplicação exponencial de eus carentes de elogios fáceis e imediatos faz com que um narciso se confunda com todos os outros, tornando-se irrelevante (a não ser para o pequeno círculo de conhecidos, a que de qualquer modo teria acesso).

Para me pôr agora do lado dos críticos: este campo de futilidade selfiesta prevalece sobre os restantes, e desvirtua a boa comunicação. Já que em vez de a usar na autodescoberta e envio de pretextos para os receptores investigarem melhor a sua personalidade caleidoscópica, o faz para se camuflar e insuflar, mostrando-se nos paraísos efabulados que tem à mão e acha socialmente prestigiantes. Mas nenhum eu tem de se transformar num objecto genérico, as férias não têm de parecer um desfile de selfies cor-de-rosa. Vamos, mais um esforço para que cada vida se transforme numa obra de arte.