(projeto secreto melão) 


começamos por aqui: (gesto facial de rato) me sinto na obrigação de avisar que isso não será fácil e nem bonito. (abrindo a maleta) peço que notem meus gestos, sempre o extremo dos dedos e não a boca (aponta a boca). agora sim (mão na orelha) (espera o jingle) (e vem o jingle), a exposição do sudário de um tolo, ao contrário do sudário de um mártir, é azucrinante e bastante jocoso. ao final, todos serão convidados a rir. esperem o final. (toma água) o ser humano ainda se mostra incapaz de rir, falar e ouvir ao mesmo tempo, pelo menos de modo a ser compreendido e compreender. aí uma chave (ato de chave) (o gesto de chave é bem diferente do ato de chave): o tolo não quer, não depende de compreensão. seu feitos, seus trejeitos, seus desmazelos, seus dentes nas traves da vida não são para entendedores. podemos repetir para o valor se manter: nem o tolo e nem seu sudário precisam ou desejam compreensão (gesto de chave). como tola, posso confirmar isso e aí temos mais peso no valor. não que minha tolice faça alguma diferença, mas faz, simplesmente faz (ombros) (ombros, ombros). uma maçã mordida junto de outras maçãs mordidas, quero dizer, nós, os tolos, compreendemos e somos contra a validação do dito (caricatura de gente culta) “uma maçã podre em saco de maçãs boas”. não está direito e o julgamento foi feito (ato de martelo). convém lembrar que nenhuma fruta é inteiramente boa, humildemente sacana ou uma vadia sem princípios. dessa forma o correto é que uma maçã podre ou mordida, oxidada, valei-me! (muhammad ali) (?), uma maçã oxidada não oxida frutas frescas, valei-me! (?) (muhammad ali), frescas! (muhammad ali) (!), contudo, vive bem num saco ou cesta com outras maçãs mordidas, oxidadas. o que quero dizer é que não somos contaminantes da tolice. somos a própria tolice (espera pelo jingle) (silêncio) (o tolo no backstage não solta o jingle) (é um tolo), quando em bando ou em solo de saxofone de bambú, que belo exemplo, muito obrigada, mereço reverências (reverências ao lugar vazio) (vai ao lugar vazio receber as reverências), por puro exemplo (ombros, ombros). um experimento recente nos mostra que um bando de tolos, cada tolo num ponto extremo de uma multidão, não que o tolo seja extremista, cada um de seu ponto e com um pouco de força espremendo as próprias mãos e olhos (mímica), é capaz de ficar feliz com qualquer resultado. com a risada de um senhor ou com a empáfia de uma mocinha gótica (mímica), com o apagar das luzes ou com o tilintar e então o craquelar e então e por fim corridão sem a vírgula do fôlego, com o rompimento de um hidrante (mímica). no caso do hidrante é possível que algumas crianças e advogados tenham seus momentos de tolice, coisa de dez ou quinze minutos, não mais. logo, para fins etnográficos, podemos dizer que a tolice não é contagiosa em seu estado crônico, talvez um tostão em seu estado cômico breve, ou seja, ninguém está livre de ter uma porção de seu dia tomada pela tolice. nem o tolo está livre de se tornar ainda mais tolo, como é o caso do engenheiro chefe dos caralhos voadores do senhor sonso ou do último membro de uma fila de operários embaladores de bergamotas descascadas que, aliás, passam todos os meses por testes terríveis, (afina a voz) coisa de luzes e de fumaça almiscarada. (engrossa a voz) e tudo para quê? (afina a voz) para que a tranquilidade dos não tolos esteja cada dia mais firme e radiante. (voz normalizada) (nem fina e nem grossa) em verdade, nós, os tolos, gostaríamos muito de parabenizar os não tolos e desejamos oferecer à categoria (roda o braço onze vezes e meia) esses pequenos elegantes troféus muito aliciantes, talhados em grande fruta suculenta, aí está (muitos tolos no palco) (tolos para todos os lados), ergam as cortinas, aí estão as corujas muito nada tolas de melão! nossas congratulações, lágrimas e moscas (mímica)! fim. (gesto largo e propositalmente bruto, brusco, repentino, entrecortado com os braços) (zas, zas) podem rir. (fechando a maleta) podem também, por favor, não que exista uma dívida de favores entre tolos e não tolos, mas existe, é fato (gesto e ato de imitar dinheiro), podem apanhar seus exemplares e limpar o chão. tolos, sim! não a ponto de passar pano para não tolos (mãos nas orelhas) (os tolos esperam o jingle final) (entre os tolos, o tolo operador da mesa de som). 



Filosofia como Modo de Vida - nota de leitura

Sabemos, sobretudo pelos estudos de Pierre Hadot e Michel Foucault, que os gregos tomavam a vida, enquanto bios, como matéria, material, e não como zoe, sequência biológica, determinismo psicológico. Um bios enquanto material dúctil, modificável, vulnerável. Por isso, a ética designava para eles um processo, um esforço de transformação individual com implicações coletivas. Que cada cidadão se imponha as suas próprias formas, maneira de educar para a temperança, o que trará ordem à Polis. A ética, na leitura que Foucault faz dos gregos, seria um trabalho sobre si-mesmo, lento, paciente, progressivo. Estas «técnicas de si» que o pensador francês descobre e trabalha na década de 80 do séc. xx fá-lo reconsiderar a filosofia como arte da existência, ela escolheria e acompanharia as técnicas a aplicar sobre si para traçar as linhas éticas essenciais de cada um que filosofa. Prolongando as linhas socrática, estoica, epicurista e cínica (Aristóteles interessa-se mais pelo funcionamento do mundo).

Reparem como estamos longe da filosofia como profissão professoral ou atestado de erudição numa linguagem para iniciados. Para Foucault e Pierre Hadot, como antes deles para Sócrates, Montaigne ou Nietzsche, ser filósofo é uma arte, no sentido de prática artesanal que deve ocupar-se de ir definindo a ética de cada praticante.

Escrevi a minha última Nota de Segunda Feira, aqui na Enfermaria 6, em torno disto, reincidi, num café filosófico que mantenho na livraria Snob, Lisboa, cerca de uma semana depois. E eis que ontem, talvez levemente guiado por um zum-zum amigo, encontrei na Almedina do Saldanha a Filosofia como Modo de Vida. Ensaios Escolhidos, organização de Federico Testa e Marta Faustino, editado pela Edições 70. E aí pensei: não há mesmo duas sem três. Claro que há, mas fiquei contente com esta trilogia, uma consistência que nasceu das minhas vontade e interesse, mas também do acaso. E, como dizia Nietzsche, é «preciso amar o acaso».

O livro agora editado «pretende dar expressão, em língua portuguesa, às principais linhas do pródigo e multifacetado debate contemporâneo em torno da filosofia como modo de vida» (p. 43) Assim, «Tomando como ponto de partida e inspiração esta reinterpretação da história da filosofia, o volume que aqui se apresenta consiste numa colectânea de ensaios subordinados ao tema “filosofia como modo de vida”, escritos por alguns dos mais renomados autores do debate anglófono contemporâneo, nomeadamente, John Sellars, Michael Chase, Ian Hunter, Daniele Lorenzini, John Cooper, Martha Nussbaum, Julia Annas, Matthew Sharpe, Martine Béland, Michael Ure, Keith Ansell-Pearson, Tobias Dahlkvist e Arnold I. Davidson.» (da contracapa)

Os ensaios versam sobre metafilosofia (o que pode ser e como pode funcionar a filosofia como modo de vida) e, sobretudo, sobre pensadores bem conhecidos que, de um ou de outro modo, se relacionam com o tema: Pierre Hadot, Michel Foucault, Sócrates, Séneca, Nietzsche, Bergson, Cioran e Primo Levi.

Despeço-me com uma citação de Hadot: «para permanecermos fiéis à inspiração profunda — socrática, poderíamos dizer — da filosofia, seria preciso propormos uma nova ética do discurso filosófico, através da qual ele renunciaria a tomar-se a si próprio como fim em si mesmo ou, pior ainda, como meio de ostentação da eloquência do filósofo, tornando-se antes um meio de autossuperação e acesso ao plano da razão universal e da abertura aos outros.» (p. 31 / La philosophie comme manière de vivre, pp. 102-103)

dois ou três movimentos em Leopardo e Abstracção 

(13 de novembro de 2021)

 

​​Sabemos já, todos, leitores dos livros e poemas da Tatiana (e ela di-lo dentro e fora deles), que os seus textos são longos, são narrativos. São – cada um dos poemas - um caminho desenhado de um início até um fim, como se o poema  fosse uma espécie de rua pela qual somos levados – levados pela mão e pela chamada de atenção a construções sucessivas, que aparecem, andando, cumulativas e sucessivas - portas e muros, alguns acidentes históricos e prosaicos, janelas, cafés, transeuntes, e muitos, muitos, muitos moradores, discriminados ou pressentidos. Ora, sabemos isso, e isso é de facto confirmado nestes poemas que compõem Leopardo e Abstracção. São 17 poemas longos, e alguns dos títulos revelam logo uma certa tendência stalker e voyeurista da nossa Tatiana: mulheres em sapatos difíceis; a segunda mulher do escritor; o que eu sei da filha de Agamémnon; o mistério dos homens adormecidos.

Já não bastava fixarmo-nos, nesta leitura ou passeio, num calcanhar de mulher com a sua correia por ajustar, e nas suas pernas longas, no seu gesto de “tentativo equilíbrio" no meio do aeroporto de uma metrópole; e depois sermos levados indecorosamente pela poeta a uma visita de cemitério cujo centro se desvia, levando-nos para um canto onde jaz uma mulher com um nome que não o seu; e depois perseguir, perder e regressar para tornar a perseguir uma mulher de camisa suada colada ao corpo por entre a multidão; e ainda nos vemos a ser levados a pairar num plano vagamente contínuo que olha com muita atenção e de muito perto para uma colecção de homens enquanto dormem. Voyeurismo e brincadeira à parte, é claro que estes homens são um pretexto. Um pretexto para por eles e através deles vermos o seu cansaço, a sua vulnerabilidade, como em torno deles “as cidades são imponentes e inteligentes e sem perdão”. 

Com este povoamento de personagens, que às vezes têm nome, outras vezes têm nome grande embora inicial minúscula, como churchill ou tito lívio ou a judite de caravaggio, e muitas, muitas vezes são um “tu” escorregadio, que temos dificuldade em decifrar e acompanhar; como dizia, com este povoamento já estávamos familiarizados em tudo o que a Tatiana tem vindo a publicar. Mas aquilo que esta releitura mais atenta do Leopardo me pediu, e que me deu muito prazer, foi tentar furar os fios condutores e narrativos, por onde a Tatiana tão bem nos acompanha em cada um dos poemas (ou nos leva, talvez, para que a acompanhemos), e que acontecem por entre as personagens e por entre as circunstâncias. Furar, quero dizer, cortar transversalmente este conjunto de 17 poemas, e olhar, contar o número de vezes que se repetem dois ou três movimentos entre imagens e ideias (é aos movimentos que são dados os leopardos) que, vistos assim, aparecem reiterados, procurados, eu diria quase obsessivamente nesta série de poemas. Vou tentar isolar alguns, cortá-los e colá-los. Não é nada original, estou a servir-me de uma ideia que nos aparece sugerida até pela quantidade de momentos em que a imagem do corte ou da lâmina aparecem nestes poemas:

 

“os teus pensamentos têm a violência 
de um fundo de lâminas
cortam tempo dentro como certas cordas” (circunstancial, p.13)

“o trabalho da mais absoluta solidão
dá em cinza dá em nada
e revela o seu lado enganador de lâmina” (sobre a insónia, p.17)

“entraste tu pela tarde cortando
a meio da respiração ofegante
uma sofreguidão de ar
que compõe em partes iguais
aceleração e queda” (cedo ou tarde, p. 20)

“como tudo o que é acidental
algo se incrusta por um golpe cego 
de martelo, violência e tempo
na harmonia indispensável 
de uma peça que a princípio
era aparentemente superficial” (a segunda mulher do escritor, p. 12)

“e eu penso o que é que em ti
se mutilou na destruição do papel” (materiais facilmente inflamáveis, p. 31)

“a rapariga que trabalha sentada à minha frente 
traz nos olhos o espanto de isaac perante a faca” (p. 32)

“o nosso tempo é cortado 
numa série de momentos 
que não têm a articulação de uma narrativa” (p. 32)

Quando primeiro comecei a sublinhar estes momentos do corte, do golpe, e até do acidente, que se repetem, julguei que estava a ler sobre uma certa vontade de interromper o tempo, de te desenvencilhares do peso da mochila da história e das coisas que convivem no que escreves, um pouco como projectas no teu poema sobre a filha de Agamémnon falando da “urgência de um corpo livre do seu enredo”. Depois percebi que é um bocadinho mais fundo do que isso, e se calhar até o seu contrário -  enfim, é complementar e contraditório -, o próprio caudal das coisas que nos cercam e povoam, aparentemente fluido, sugeres, é feito de cacos que ressurgem, e que podem cortar:

 

“(...) objectos
que embora parecendo inofensivos
se podem revelar facilmente letais
a tesoura com que se corta as unhas
a faca da manteiga a fivela do cinto (leçon de tenèbres, p. 44)  

Objectos que embora parecendo inofensivos se podem revelar facilmente letais. Este par de versos parece um alerta para o que de perigoso há por debaixo de tudo, sobretudo da distracção,  mas é também o tempo que é morto aqui, e por isso pareces desconfiar dos objectos, eles matam o tempo raso porque os esgotam nestes objectos que o ocupam e lhe servem de medida. Dizes isto - melhor, claro - no poema:

“o universo é por estes dias tão inóspito
que se pode reduzir muito depressa a objectos” (p.44) 

E sente-se muito, nestes poemas, um tom coleccionista que aparece, que enumera e extravia, acumula, e usa por vezes um dispositivo de quase-lista que parece procurar um efeito de saturação e o quase-quase-extravasamento de um jarro muito cheio de objectos da mesmidade.

“as canetas baratas que falham sempre
e os blocos de notas e o computador
e a caneca do sindicato de jornalistas
e as muitas caixas de chá
e todos os objectos pessoais” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

“algumas contas e conchas e papéis
que atafulham algumas gavetas (p. 58) 

“oito caixas de kleenex” (p. 52)

“o mesmo café à mesma hora

(...)

este meio copo de cerveja barata” 

“ (...) alguns objectos de uma dor digna de confiança
os objectos de uma perda com rosto humano
e inventários de pequenos arrependimentos 
coligidos em pequenas molduras em todas as moradas” (p. 49) 

“tu reconheces que os mais inofensivos objectos
aqueles com que levamos a cabo o nosso trabalho
aninham afinal a banalidade de um terror quotidiano” (materiais facilmente inflamáveis, p. 32) 

Não me parece que seja com o alívio de quem se quer desfazer da acumulação na garagem de casa que atiras com estes objectos para as páginas. Parece-me, aliás, que a tua escrita tenta criar mapas possíveis para uma convivência entre estes cacos, ou situações possíveis para, pelo meio deles, percorrer a rua. E sim, chamo aqui cacos já aos objectos do nosso próprio anonimato e da nossa própria perda de tempo; e equivalo-os aos recortes de instantes e de gestos das personagens que guardas, descreves e perdes nos teus poemas; e e equivalo-os aos objectos menos anónimos e do tempo passado e maior que de quando em vez convocas: todos eles aparecem meio que simultâneos e avizinhados, nos teus poemas (o teu gaio júlio césar do último poema do livro, por exemplo, é o de Roma, mas é também o nome do teu fiel relógio de cozinha). Não será por acaso que referes duas vezes, neste livro, o trabalho do museólogo paciente:

“os muitos fragmentos 
de vasos venezianos ou bizantinos 
fragmentados em centenas de cacos 
que uma mão teima em reconstruir 
povoando de remendos a sala 
de um museu desta ilha
dedicado ao escritor” (a mulher do escritor, p.12) 

“os objectos não se compõem
com a facilidade com que o último dos curadores
organiza objectos mínimos nos expositores” (circunstancial, p.13)  

Isto lembra-me uma passagem de que gosto muito, e que de vez em quando digo, por isso já ta devo ter dito, do livro O museu da rendição incondicional, da Dubravka Ugresic, em que alguém, na Alemanha, pergunta: “O que é a arte?”, e alguém responde: “A arte é um esforço de defesa da integridade do mundo, a conexão secreta entre todas as coisas… Só a verdadeira arte pode assumir uma conexão secreta entre a unha do dedo mindinho da minha mulher e o terremoto em Kobe (no Japão)”. Achei graça, por isso, a ter encontrado no teu poema gaio julio cesar os versos “queres muito ser/ alguma espécie de instituição/ do topo da minha manhã/ até à ponta do dedo grande do teu pé” (p. 65). Dedos dos pés, mindinhos ou grandes, parecem pois estar em alta na reconfiguração do mundo, pelo menos por escritoras que tentam desenhar novos mapas instáveis e afectivos, um pouco como nestes teus belíssimos versos: “como por exemplo toda esta secção de um mapa/ que vai de botthege obscure a via panisperna/ e se estilhaça no encaixe entre o ombro e o braço/ onde alguém se esqueceu de tatuar um banco de jardim” (hespéria, p.39).

Mas regressando ao lugar em que te encontro de tentar situar-nos no meio disto tudo, deambulante com super-cola e cinzel, ele tem a sua dose de ternura e de investigação, mas também de angústia. Aliás, uma possível chave para esta leitura pode estar no par de versos da página 56, em que en passant, a meio de um poema, aparece a pergunta:

“como adormecer 
entre um mundo de postais
e livros esquecidos no chão
e em mesas de cabeceira” (p. 56) 

Vou repetir: como adormecer entre um mundo de postais e livros esquecidos no chão e em mesas de cabeceira? É, realmente, um bocado difícil adormecer, Tatiana. A seguir a esta pergunta o poema segue dizendo: “a tua dor assusta-me/ porque não se reconcilia com nada”. Parece haver o temor de não conseguir organizar isto tudo nos expositores ou cuidar-lhe o sentido, arriscando permanecer, na sua beleza, como sugeres no poema leçon de tenèbres, “um apontamento à margem da destruição/ que é capaz de ser em si/ uma espécie de amor/ removida a seta/ a inútil a cegamente leal pressão das mãos tentando em vão reparar as ligações desfeitas” (p. 46).

Por isso ficas acordada, não adormeces. Enfim, “tu”. Tenho estado a alternar entre “a Tatiana” e “tu”, mas é à voz que se assume ou que se pressupõe no centro destes poemas que me refiro, claro. E essa voz atravessa estes 17 poemas, do início ao fim, acordada. Há, aliás, poemas com títulos como sobre a insónia, cedo ou tarde, e alguns sons antes da manhã. As referências ao sono, à insónia, àqueles que se observa a dormir, aos pensamentos que se percorre de noite, à espera pelo descanso, são muitas, seria difícil mencioná-las todas. Não vou fazê-lo. Mas vou dizer que elas, podendo ou não ser literais, parecem-me ser certamente metonímicas. E vou dizer que são acompanhadas, nos poemas, repetidamente - ao ponto de ser quase possível fazer um esquema desenhado -, por dois movimentos: um movimento circular (de ronda, de giro, de círculo, de cercar ou de ser cercada, e com aceleração); e um movimento linear, de espera e de rasgo, em direcção à manhã. 

Sobre o movimento da ronda, uma colagem de versos (e repito, isto são fragmentos esparsos nos poemas do livro que eu colei - heresia -, para sublinhar como ressurgem) poderia ser a seguinte: 

“um cerco rodeado de janelas” (sobre a insónia, p. 16)

“alguma coisa ainda mais rápida do que a sombra
aponta - enlouquecida bússola - para o centro da casa
para o que tem de permanecer de fora do espaço” (sobre a insónia, p. 16) 

“num apartamento de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que nada os acosse” (o mistério dos homens adormecidos, p. 23) 

“uma urgência que preenche o vazio ao centro” (materiais facilmente inflamáveis, p. 33)

“uma força confiante como a dos leopardos 
rondando as casas do mundo” (materiais facilmente inflamáveis, p.34) 

“a velocidade com que o mundo gira
em direcção ao armagedon” (hespéria, p. 36) 

“daqui a algumas horas ou dias ou meses
acertar-me-à em cheio no centro do torso” (alguns sons antes da manhã, p.42) 

“o mundo fechou-se 
com toda a força dos pulsos
em redor do torso” (materiais mais pesados, p. 57) 

“o girar cada vez mais rápido 
de cada vez mais e mais cor
colando-se a cada minuto” (alguns sons antes da manhã, p. 42) 

“inesperado centro a que
com velocidade desarmante 
se reduziu o universo inteiro” (leçons de tenèbres, p. 44) 

“ele roda no sentido do relógio 
até que se faz chegar ao fim do tempo” (gaio júlio césar, p. 64) 

E sobre o movimento da luz, uma colagem possível incluiria alguns dos mais belos e até esperançados versos do livro:

“a madrugada há de romper de novo 
deixando ver
as paredes caiadas” (cedo ou tarde, p. 20) 

“a luz traz com ela
a promessa do dia ainda novo quando o recomeço é ainda possível” (cedo ou tarde, p. 20) 

“é estelar o seu abandono como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente na escuridão do ar” (o mistério dos homens adormecidos, p. 25) 

“mas quando o dia começar 
eu terei fugido e estarei em uilenstende” (materiais facilmente inflamáveis, p.33) 

“e não é ainda esta a perspectiva dos corpos
que atravessam velhos túneis ao romper da manhã
quando a luz vem mais clara e mais clara ao fundo” (materiais facilmente inflamáveis, p. 34) 

“é um bom dia se a tua voz atravessa um continente
e chega com o romper da manhã antes
de o terror do pássaro do outono se lançar
voraz na sua última fala” (notas para uma salvação provisória, p.28) 

“não sinto que tenha autoridade 
para pensar no medo e na luz 
diante dos olhos
na precisa intersecção do medo e da luz” (antonio gamoneda, p. 48) 

“mas é ainda mais cómica a evidência
agora indisputada:
através do nevoeiro 
despenhando-se contra os faróis:
a noite fez-se manhã” (alguns sons antes da manhã, p. 43) 

Nestes fragmentos que estou a cortar, estou a deixar de fora as nomeações e os factos sobre os quais versas, e a concentrar-me nos movimentos que parecem acontecer, por entre eles, por alguém que tenta dar-lhes sentido e que com preocupação e cuidado vela por eles. Dizes tu, no poema materiais mais pesados (p.59):

“é como ser um deus do sono ou da morte 
que se passeie pelas ruas com um pequeno caderno 
onde vai apontando nomes como um delator”  

E em materiais mais inflamáveis descreves a ronda da noite de Rembrandt.  Tornou-se muito nítida para mim uma figura no centro destes poemas que assume o bonito e difícil papel de vigilante, um vigilante insone enquanto o mundo dorme e no entanto gira, provavelmente carregando a pergunta que há pouco sublinhei: “como adormecer?”. (E um à parte, achei graça e pouco inocente que tenhas chamado a este mundo onde não se adormece um “mundo de postais”, como se a colecção que fazemos dele não desse para ser senão lúdica e simulada). Muito surpreendentemente, quase comicamente, como dizes, a manhã acaba por aparecer, é um absurdo, mas também o anúncio de mais uma volta. 

Mas há um pormenor que não é nada pequeno e que está a rondar esta conversa sem que eu o explicite. Se calhar já alguém aqui perguntou: “mas ela não fala do título? o que é isto do leopardo? e a abstracção?".  Pois é, Tatiana, tu pões leopardos e abstracções dentro de um poema. Eles rondam a casa, e rondam todas as casas. Por isso não consigo ver esta figura que vigia de noite e tenta juntar os pedaços como não se pressentindo, ela própria, circundada, ameaçada, seja pelo  movimento imparável do tempo, seja por algum perigo escondido. Leopardos e abstracções rondam a casa. Esta ideia foi roubada a um poema da Hilda Hilst, que citas em epígrafe do livro, e é lata e misteriosa o suficiente para que eu sinta que possa tê-la roçado aqui ao de leve, mas que continua para mim intrigante - os leopardos são difíceis de caçar. Por isso perguntava-te, Tatiana, se queres dizer alguma coisa sobre isto. Antes disso, e de dizeres, tu, tudo que quiseres dizer, e de irmos ler finalmente alguns poemas, sem estarem todos estilhaçados, que isso é que interessa, se calhar líamos o poema da Hilda. O que achas?

Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A ideia, a garra, de mim mesma não sei 
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde. 
Leopardos e abstrações. Que vêm a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice 
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma 
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.

(Hilda Hilst. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão)

"Cientificamente me pergunto", de Patrizia Cavalli


Todi, 17 de Abril de 1947 ~~ Patrizia Cavalli ~~ Roma, 21 de Junho de 2022



Tradução de João Coles



Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.


Io scientificamente mi domando
come è stato creato il mio cervello,
cosa ci faccio io con questo sbaglio.
Fingo di avere anima e pensieri
per circolare melgio in mezzo agli altri,
qualche volta mi sembra anche di amare
facce e parole di persone, rare;
esser toccata vorrei poter toccare,
ma scopro sempre che ogni mia emozione
dipende da un vicino temporale.

Siroco: um poema de Jorie Graham

Do lado esquerdo, Casa de Keats e Shelley, Roma, ca. 1906

Jorie Graham
”Sirocco,” de Erosion, 1983
Traduzido por Tatiana Faia

Em Roma, no número 26
             da Piazza di Spagna,
ao fundo de um longo
            lance de
escadas, estão os quartos
            alugados a Keats

em 1820,
            onde ele morreu. Agora
podes visitá-los,
            o pequeno terraço,
o quarto. Os pedaços
            de papel

em que ele escreveu
            versos
são guardados atrás de vidro,
            alguns amarelecendo,
alguns fotocopiados ou
            mimeografados...

Fora da sua janela
            podes ouvir o siroco
trabalhando
             o invisível.
Cada folha seca de hera
            é tocada,

retocada. Quem é o
            o espírito nervoso
deste mundo
            que tem de rever uma vez e outra
aquilo que já sabe,

o que é tão quente e seco
            que olha através de nós
por nós,
            para uma resposta?
No porto,
            no terraço

as rígidas formas
            helénicas
das uvas surgiram.

            Hão-de amolecer
até serem fracas o suficente
            para penetrar
este mundo, traduzindo
            desamparadamente
do belo
            ao verdadeiro...
Qualquer que seja o espírito,
            a densidade das uvas


é parte do seu modo de olhar,
            e as mãos lentas
que fizeram esta máscara
            de Keats
na sua outra vida,
            e a velha mulher,

a guardiã
            do memorial
sentada no alpendre
            abaixo do porto
a separar o grão
            de entre os seixos

lançando-os à sua caçarola
            de ferro forjado
Vê o que as mãos dela
            sabem –
são o seu hálito
            a sua língua-

-mãe, dividindo
            descartando,
Há uma luz brincando
            sobre as folhas,
sobre o seu rosto,
            tornando-a

abstracta, tornando-a
            rápida
e estranha. Mas ela
            não se preocupa
com o que a mancha
            mudando-a,

ela está
            a fazer o seu trabalho. Oh como queremos
ser levados
            e mudados,
ser emendados
            pelas coisas em que entramos.

É assim também
            com o mundo?
Deseja ele que nós
            o emendemos,
luz e escuridão,
            verde

e carne? Será
            livre então?
Penso que o mundo
            é um elemento
desesperado. Se pudesse
            deixar-nos-ia acalmá-lo,

recebê-lo. Por isso eis
            o que tenho
de te pedir
            que imagines: vento;
o momento em que
            o vento

se acalma; e as uvas,
            que nada são,
que brotam
            nas tuas mãos.