Sala De Espera

Quando é que os dias se tornaram numa sala de espera bafienta, escura,
Com mobília dos anos 70, onde zumbe já faminto o caruncho dos ossos,
Esperando que a porta se lhes abra e seja chamado o nome
À consulta kármica, para se receber um frasquinho com meia dúzia de dias felizes,
Depois deste volte cá e espere, a porta da rua está sempre aberta,
E lá fora ninguém, nada, a saída definitiva para um dia infinito e vazio,
Quando é que todas as revistas se tornaram sobre vidas desinteressantes,
Como espelhos ou então exemplos de todos os fracassos que se acumularam
Em nome de te tornares no que hoje és, algo afundado num sofá
Com as mãos sobre os joelhos, procurando encontrar em que linha te despistaste,
Como quem perdido num dia de chuva, procura encontrar o caminho
De volta, com um mapa ao contrário de uma outra cidade,
Quando é que surgiu esta vontade de saltar por cima de bocados enormes de vida,
Estações inteiras, companhias decentes, a fruta quase toda para o lixo
Na esperança de uma gota destilada de um Sol que se sinta tocar
Algo que enterramos há muito, bem fundo, só porque não se sabia, como nada se sabe
E por cima de toda a ignorância, erguemos este castelo de certezas e esperamos.

Turku

Charles Bukowski, «Oh sim», «A genialidade da multidão»

Tradução de João Coles

Oh sim

há coisas piores do que
estar sozinho
mas normalmente levamos décadas
a darmo-nos conta disso
e na maioria das vezes
quando nos damos conta
é tarde de mais
e não há nada pior
do que
tarde de mais.

De Love is a Dog From Hell


Oh yes

there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it's too late
and there's nothing worse
than
too late.


A genialidade da multidão

 

há perfídia, ódio, violência e absurdidade suficientes no ser humano
médio para fornecer qualquer exército em qualquer dia

e os melhores em assassinatos são os que lhe pregam contra
e os melhores no ódio são os que pregam o amor
e os melhores na guerra finalmente são os que pregam a paz

aqueles que pregam deus precisam de deus
aqueles que pregam pela paz não têm paz
aqueles que pregam pela paz não têm amor

cuidado com os pregadores
cuidado com os sabichões
cuidado com aqueles que estão sempre a ler livros
cuidado com aqueles que ou detestam a pobreza
ou têm orgulho nela
cuidado com aqueles de fáceis louvores
pois precisam do louvor de volta
cuidado com aqueles de rápida censura
têm medo daquilo que desconhecem
cuidado com aqueles que procuram sempre a multidão
não são nada sozinhos
cuidado com o homem banal, com a mulher banal
cuidado com o seu amor, o seu amor é banal
procura a banalidade

mas há genialidade no seu ódio
há genialidade suficiente no seu ódio para te matar
para matar qualquer pessoa
não querendo a solidão
não entendendo a solidão
eles tentarão destruir qualquer coisa
que seja diferente da sua
não sendo capaz de criar arte
eles não entenderão a arte
vão encarar o seu fracasso enquanto criadores
como um mero fracasso do mundo
não sendo capazes de amar plenamente
vão julgar o teu amor incompleto
e depois odiar-te-ão
e depois o seu ódio será perfeito

como um diamante reluzente
como uma faca
como uma montanha
como um tigre
como cicuta

a sua mais refinada arte

De The Roominghouse Madrigals: Early Selected Poems 1946-1966


The Genius of the Crowd

there is enough treachery, hatred violence absurdity in the average
human being to supply any given army on any given day

and the best at murder are those who preach against it
and the best at hate are those who preach love
and the best at war finally are those who preach peace

those who preach god, need god
those who preach peace do not have peace
those who preach peace do not have love

beware the preachers
beware the knowers
beware those who are always reading books
beware those who either detest poverty
or are proud of it
beware those quick to praise
for they need praise in return
beware those who are quick to censor
they are afraid of what they do not know
beware those who seek constant crowds for
they are nothing alone
beware the average man the average woman
beware their love, their love is average
seeks average

but there is genius in their hatred
there is enough genius in their hatred to kill you
to kill anybody
not wanting solitude
not understanding solitude
they will attempt to destroy anything
that differs from their own
not being able to create art
they will not understand art
they will consider their failure as creators
only as a failure of the world
not being able to love fully
they will believe your love incomplete
and then they will hate you
and their hatred will be perfect

like a shining diamond
like a knife
like a mountain
like a tiger
like hemlock

their finest art


hay no lobos

“Raoul Silva/Anton Chigurh: A vida se agarrou a mim feito uma doença.

“Now another one bites the dust
Yeah, let's be clear, I'll trust no one
You did not break me”

(Elastic Heart – Sia)

 

a taxidermia é uma arte
um processo
por meio do qual procura-se preservar
animal
durante muito tempo
o mais difícil é a expressão
o olhar
que se quer
que tenha o animal
como é difícil aprender animal
crescer animal
e é por isso que considera-se a taxidermia
uma arte

outra história e outra terra é

e seu movimento cabal
não
é ter um mais velho que a conceda

o pistão de abate
serviço ágil e muito mais pneumático
empalar memórias
claquete que dá no meio
ata esperas e últimas falas
que é que vem depois de

mas nem conseguiu terminar de contar o próprio sonho

e como
é que se conta batidas
de coração nos dedos depois
que decepam-se as mãos
e nos

ah
a gente vai caminhando
aí lado a lado

só a praxe
mesmo

pega aí com os seus nos meus metacarpos
só pra ir andando mesmo

no
country
for old man

conhecer animal
como é difícil

degradar os homens sem perturbá-los


Nota de leitura (9)

Máxima

 

Hoje é dia de dar lugar aos dias
o seu lugar. Está tudo muito difícil,
não há roupa nova mas pareces
seguro e fresco no teu ar concentrado,
a passear na rua que tu queres:
como nas festas antigas, tudo muito fácil,
a luz é justamente a que quiseres
para ler um livro da Fátima Maldonado.
O cão mordeu-me no focinho,
vou a correr para o hospital, ai
Jesus, está sempre a acontecer
uma coisa qualquer, darei aos dias
lugar nenhum: não me quero, sequer,
lembrar, do dia em que nasci
quanto mais comprar petróleo
para ler, à luz da lamparina, seja
lá que livro for. Quero é velocidade,
pressão, vontade, frequência,
interferência, invenção, atenção,
expressão, potência, inconveniência,
informação, alteração, inteligência,
razão, impertinência, emoção,
internacionalização.

Où mort.

Manuel Fernando Gonçalves
A Matiz e o Canto Oposto
Companhia das Ilhas, 1ª edição, 2013, p. 41
 

George Louis Buffon disse um dia: «Nada há de mais antagónico ao belo natural do que o esforço que se emprega para exprimir coisas ordinárias ou comuns de um modo singular ou pomposo; nada degrada mais o escritor.». Esta extraordinária verdade aplica-se a alguma da poesia portuguesa dos últimos vinte anos. É uma poesia de janelas fechadas e demasiado centrada em si. O diálogo que tenta estabelecer com o mundo que a rodeia é um diálogo falacioso, suportado por uma pomposidade que nada acrescenta àquilo que é dito.

Considero que o poema apresentado é o oposto, isto é, é um poema que procura o “belo natural” através das “coisas ordinárias ou comuns”, mas sem o esforço que “degrada” o escritor através duma singularidade e pomposidade abjecta. Manuel Fernando Gonçalves consegue dizer tudo aquilo que tem de ser dito, sem o recurso a um certo folclore sintáctico e morfológico.

Savon de Marseille e Fósforos Azuis

Este sabão trazido de Nice, savon de Marseille, pur vegetal, de fabricação artesanal,
Que passo sobre a pele deste dia e que cobre o vapor de perfume
E me traz de volta àquelas peles de noites quentes, antes da vontade além cueca,
Aquelas emigrantes bem lavadas que regressavam à companhia dos galinheiros e das couves,
Aquelas peles demasiado brancas para o calor da procissão, deixando um rasto de perfume
Que se seguia atrás da cruz, este sabão laranja de jasmim que me traz aquelas manhãs
Em que as mulheres da aldeia se juntavam para fazer sabão azul em caixas de madeira
Forradas com plástico e na aldeia toda o cheiro da roupa lavada no estendal da eira
Com aquelas cuequinhas e cueconas a acender e apagar sonhos e vontades,
Este sabão para turista que me abre a porta de um banho à hora da sesta em verões
Com menos pêlos e lava tanto o sangue das mãos do que mata como do que salva
E me traz a caixa de fósforos de Paterson e todo o potencial das coisas pequenas
Para abrir portas e acender vidas na nossa, na nossa pele que todos tocam e nunca é a mesma.

Turku 10.06.2017