Estações

Poema de Natalia Ginzburg
Tradução de Hugo Miguel Santos

Quem esqueceu o inverno
não merece a primavera,
quem se esqueceu do campo,
não deve caminhar pela cidade.
A rapariga saía sozinha
e amava caminhar em silêncio:
como não levava chapéu,
ninguém a procurava.
Os seus ombros magros e caídos
diziam: eu não quero ninguém;

Eu só quero
caminhar pela cidade.
Quem não reconhece o vulto
da paixão, não deve
não deve existir neste mundo.
A rapariga que fumava, estendida
no sofá e que ficava sozinha em silêncio,
não deverá ser esquecida, por mais
que o seu tempo tenha acabado
e o seu corpo dado filhos
como é próprio das mulheres.
Quem viu o céu ao pôr do sol
não deve esquecer a manhã,
porque esta é a vida
que nos foi dada: morrer e nascer,
nascer e morrer, a cada dia.
A rapariga que saía em silêncio
já não existe, mas quem sabe 
se os filhos que saíram do seu corpo, 
um dia não sairão sozinhos, 
em silêncio, desafiando o mundo.


Stagioni

Chi ha dimenticato l’inverno
non merita la primavera,
chi ha dimenticato la campagna
non deve camminare in città.
La ragazza usciva sola
e amava camminare in silenzio:
siccome non portava il cappello
riusciva sgradita alla gente.
Le sue spalle curve e magre
dicevano: io non voglio nessuno;

Io voglio soltanto
camminare in città.
Chi non riconosce il volto
della passione, non deve
non deve esistere al mondo.
La ragazza che fumava, sdraiata
sul divano, che taceva sola,
non bisogna dimenticarla
se pure è finito il suo tempo,
se il suo corpo ha dato dei figli
come una donna può fare.
Chi ha veduto il cielo al tramonto
non deve dimenticare il mattino,
poiché la vita che ci è data
è questa: morire e nascere,
nascere e morire, ogni giorno.
La ragazza che usciva il silenzio
non c’è più, ma forse i suoi figli,
nati dal suo corpo, un giorno
vorranno uscire da soli,
in silenzio, a sfidare la gente.

Memória

Poema de Natalia Ginzburg
(Originalmente publicado em Dezembro de 1944 na revista Mercurio)
Tradução de Hugo Miguel Santos

Os homens vão e vêm pelas ruas da cidade.
Compram comida, jornais, dirigem-se às mais diversas empresas.
Têm rosados os rostos, os lábios cheios e vívidos.
Levantaste o lençol para ver o seu rosto,
baixaste-te para beijá-lo, num gesto corriqueiro.
Mas era a última vez. Era o mesmo rosto de sempre,
mas um pouco mais cansado. Era o mesmo vestido de sempre.
E os mesmos sapatos. E as mãos eram as mesmas mãos
que partiam o pão e serviam o vinho.
Hoje à medida que o tempo passa ainda levantas
o lençol para ver o seu rosto uma última vez.
Quando caminhas pela rua, ninguém te acompanha,
e quando tens medo, ninguém te dá a mão.
E não é a tua rua, nem é a tua cidade.
Não é tua a cidade iluminada: a cidade iluminada é dos outros,
dos homens que vão e vêm comprando comida e jornais.
Podes aproximar-te devagar da janela quieta,
observar em silêncio o jardim na escuridão.
Dantes quando choravas havia a sua voz serena;
e quando te rias lá estava o seu delicado riso. 
Mas esse portão que se abria à noite está fechado para sempre;
e deserta ficará a tua juventude, o fogo apagado, a casa vazia.


Memoria

Gli uomini vanno e vengono per le strade della città.
Comprano cibo e giornali, muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso, le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta. Era il viso consueto,
solo un poco più stanco. E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe eran quelle di sempre. E le mani erano quelle
che spezzavano il pane e versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso per l’ultima volta.
Se cammini per strada, nessuno ti è accanto,
se hai paura, nessuno ti prende la mano.
E non è tua la strada, non è tua la città.
Non è tua la città illuminata: la città illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno e vengono comprando cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco alla quieta finestra,
e guardare in silenzio il giardino nel buio.
Allora quando piangevi c’era la sua voce serena;
e allora quando ridevi c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera s’apriva resterà chiuso per sempre;
e deserta è la tua giovinezza, spento il fuoco, vuota la casa.

"Pictures from Knopfli's airport" de Larry Sultan

para a Tatiana,
que conhece as margens do exílio

Não querias lembrar-te de nada,
além da soma de dois exactos impossíveis:
este nada que se recorda.
Nenhum futuro, nenhum passado
subsiste, além deste equívoco. E o presente
prende-nos como se fôssemos um assento 
perpétuo e infranqueável

num cinematógrafo.

Os nossos olhos, dentro de nós, abrem-se
como uma tela, revelando-nos a derrota
na sua mais plácida brancura.

Em vinte versos, dizem-me, escreveste a tua despedida.
Mas por muito mais de vinte anos lembraste
o teu rosto menino, o perfil 
dessa cidade.
Ainda aqui estás. Ouve-me. Leio-te, Rui,
sentado no terminal 1 de Madrid. E em vinte versos
invento um livro: voltas, abraças Kok Nam. 

Sultan apanha-vos.

E eu teimo acrescentar um 21.º verso,
em que vos crio a alegria e a saudade: de novo

ADÁGIO PARA ACOMPANHAR UM QUADRO DE GIORGIO MORANDI

Giorgio Morandi, Natura Morta, 1941, Museo Morandi

para o José Carlos Soares,

agradecendo-lhe essa manhã
em que me deu a conhecer o tulipeiro
da Virgínia e a magnólia-sempre-verde
que vivem na casa Tait

Espremo laranjas, ergo jarras e copos,
perscruto a minha sina de transplantar
herbáceos, tabuadas e calendários
de vaso em vaso.

No quadriculado da fantasia doméstica,
anoto tudo quanto um dia deixarei
demarcado como me não tendo sido pertença.

Destas e de outras matérias,
fundarei um dia a raíz lancinante
dos meus versos noutra boca
já amados ou dilacerados.

Destas e de outras alegrias
vos darei conta e deixarei abaixo assinadas
como tendo sido a senha, o dote e a fábula
de uma ciência imprópria à tenra idade
minha
e dos demais humanos.

Sei – porque me disseram –
que outros seres há de diversa escala e porte
capazes de perdurar 
por milhares e milhares de anos,

como se de uma breve nota
ou apêndice se tratasse:
falaram-me dessas árvores
que trazem água desde as funduras
até à parca superfície dos céus.

E ainda me alertaram
para a existência de certos
e microscópicos bichos,
ocultos, anónimos,
parasitários alguns,

que não deixarão pedra sobre pedra
no mito de eu assim ter acontecido,
enquanto corpo ou alma, filho de um deus
ou mero bicho de contas.

E por tudo isto me anima pensar
na vida lá fora,
como numa imensa selva
urbana, rural, com vastas vias
de lenho, cimento e seiva,
perdidas entre o bem
e o mal –

inauditos, interditos,
e inesgotáveis:

assim vos congemino,
assim vos projecto e examino,
ó corpos tão fora e tão dentro
de mim.

Cumprindo a minha estóica rotina
de preferir ao tecido do vivido
a lenta e afiada agulha
que tudo cose no que contemplo
ou imagino:

assim extraio este breve adágio
onde vos sou companhia

e com as mãos que me servem a escrita
retiro as pevides ao sumo sabendo 
alegremente

que certo dia a semente 
perfeita do nada serão 

somente.

Roma e Pavia não se fizeram num dia

No primeiro dia, fizeram-se à estrada.
Ao segundo, sentaram-se sob o sol quente de Sorrento
e esqueceram-se de acordar a tempo.
Ao terceiro, levantaram-se e continuaram a caminhar.
Ao quarto dia, lembraram-se das suas mães aflitas,
sem notícias, na já distante Puglia.
Ao quinto, perceberam que ainda estavam
em Nápoles, a beber grappa e a vender chapéus
aos turistas.
Ao sexto dia duvidaram se valia mesmo a pena
mudar de cidade, de hábitos, e de língua.
Ao sétimo dia, alguém lhes disse que o império
se fazia com sangue e carne.