Dois poemas de "Os peixes são tristes nas fotografias" de Otávio Campos

O VERBO

já podemos sentir de novo a casa vazia
algumas palavras perderam o sentido
outras arranham as paredes como um bicho
você as deixa fechadas

foi então que começamos a anotar as coisas
nas cortinas me pega a mão faz um desenho
temos um cubo de gelo e escreve: gelo
temos uma casa e escreve: casa

o carteiro já não vem e a isso
somam-se meses pela vizinhança
espalha-se um boato de que aqui
dentro estamos todos mortos

se te desse agora uma fotografia
exatamente de agora
sentada como está
quanto tempo levaria até que
escrevesse na parede
o nome de lugar

algum?

 

O ALPINISTA

ergo um altar para a noite
para que a noite chegue alta

ontem vasculhando a estante
há o que resiste e fica imóvel
você e as frases tristes
você e os livros que nunca lidos

penso em você de costas
como penso em uma metáfora
para um poema que não consigo
terminar

penso em um alpinista que
suspende a noite alta e
te encontra vasculhando
o que desconhece

você: metáfora
penso no seu corpo como
deveria pensar em um
poema metafísico

existe um desvio de eixo
esse em que você me encontra
esse que você persegue

atento aos riscos na página
uma criança brincando
com o espelho se não fosse
as coisas que você pensa
se não fosse os livros que
você nunca leu

por isso te digo: o nome disso
o nome disso é palavra
isso você desconhece
o nome disso é linguagem
e também signo
e também alfabeto romano

(isso que você desconhece)

por isso você entra e não diz
por isso ergo um altar para
que a noite te encontre no alto
em um alpendre o alpinista
escala a linguagem que você

acaba de inventar


Os peixes são tristes nas fotografias é o mais recente livro de Otávio Campos. A par dos dois poemas aqui publicados e da informação sobre o lançamento, aqui fica mais algum material sobre o livro, para os nossos leitores em ambos os lados do Atlântico. 

Ana C. dizendo “felicidade se chama meios de transporte” deu a tábua de navegação e naufrágio daquele final de século que já recomeçou. Os peixes são tristes nas fotografias nos transporta por onde se conheça o que é estar triste. E isto, bem se sabe, é em toda parte.

“Triste” se repete como simplificação dos inúmeros sentimentos, estados de consciência e espírito que atravessam este livro. É o modo de se saber sensível, misturado pelos caminhos e pelos encontros. Em que cidade? Ora, depende. A cidade é tanto um conceito como as específicas: Budapeste, Lisboa, Porto, Nova York, algures no Algarve e por aí vai. Também se é nômade no íntimo recortado do poeta: nas cidades há sempre alguém em quem se desdobrar, remeter, (não) entender e recolher. Alguém com quem passear e se desentender. Neste livro tudo é relação. O desejo, um nômade? Homem, mãe, mulher... e nos afetos deste livro o uso de “você” ou “tu” também é flutuante, não só pela convivência do autor com o português de Portugal, como por motivos de ouvido & emoções ambíguas
(Trecho da badana de Júlia de Carvalho Hansen)

Leituras de alguns poemas do livro, por outros poetas, estão disponíveis no YouTube:

Carla Diacov lê "O verbo"

Luca Argel lê "O espelho"

Mariano Alejandro Ribeiro lê "A espera"

Anelise Freitas lê "East Hampton"

Fernanda Vivacqua lê "A cidade"

Alice Monnerat lê "Apartamento em Copacabana de vista para o mar"

Prisca Agustoni lê "Le verbe"

Em junho deste ano a Avenida Sul reuniu 4 poemas que já haviam sido publicados anteriormente, e podem ser acessados aqui

O livro será apresentado na tarde do dia 01/10 pelas poetas Anderson Pires da SilvaAnelise FreitasFernanda Vivacqua e Laura Assis na Bartlebee Deli

Na ocasião será lançada também a plaquete Outros tipos de disparos, composta para acompanhar o curta-metragem Laura(Casa Vazia, 2016) de Carol Caniato, Eduardo Malvacini e Otávio Campos, e publicada agora pelas Edições Macondo.

Otávio Campos na Enfermaria 6. 

Analítica da actualidade

Uns dias atrás, alguém, visivelmente desocupado, teve a ousadia de me perguntar o que significava a “Analítica da Actualidade” com que assino contextualmente os meus textos aqui no blog da Enfermaria.

Não senti qualquer impulso para procurar uma resposta (creio que envelhecer também se faz desta boa demissão, refinada, que quando é mal entendida aparece como desdém ou outra qualquer forma de sobranceria). Mas lá declarei a custo, “é o que as palavras dizem”. “Está bem, mas o que entendes por analítica e actualidade?” Continuou, em modo de desafio, o meu interlocutor. “O que toda a gente entende!” Respondi, novamente a custo. “Quem é essa toda a gente? Isso não existe, é uma abstracção abusiva.” Asseverou o meu contendor (comecei a considerá-lo assim), com um fiapo de riso cínico no lábio superior. Resolvido a acabar de vez com a conversa meio fiada, disparei: “claro que é uma abstracção abusiva, como a tua pergunta, aliás, abusiva e abstracta; é para isso que serve a linguagem verbal, abstrairmo-nos da matéria bruta que forma as coisas e abusarmos da representação, generalização, simbolização... Tudo o que ela transporta é um abuso”. “Boa, agora desconversas, entraste finalmente na tua especialidade, desconstruir”, retorquiu o cavaleiro negro. Tentei fulminá-lo com o olhar mas não consegui (já viram algum raio sair de olhos cansados?). Tive depois o ensejo de virar costas e desaparecer, mas, por enquanto, o espartilho moral impediu-me. Socorri-me então de uma palavra-moda entre os adolescentes: “whatever”. E fui-me, fluindo entre uma multidão de alunos que sonham, sem olharem ao lugar, com vidas heróicas (às vezes digo, fingindo um lapso, “eróticas”, sabendo que eles vivem numa estranha embriaguez emocional).

Bem vistas as coisas, claro que ele (é um homem barbudo, com pêlos nas costas e tudo) foi oportuno no questionamento, mas ao querer aliar a oportunidade ao desafio, ao querer ver-me fracassar sem verdadeiramente me passar uma rasteira (há compensações quando se é vencido com batota), transformou o conveniente numa pequena indecência que não me apeteceu aturar. E mesmo que já não seja austero como uma lâmina, lá vou lançando os meus ataques estóicos.

Aqui entre nós, talvez, por verdadeiramente não gostar dele (porque reaviva o velho paradoxo de um corpo-bola irradiar um semblante triunfante), não lhe quisesse dar a ouvir esta magnífica nota de Peter Sloterdijk (grande herói do inconformismo regulado): “Não somos mensageiros do absoluto, mas indivíduos com ouvido para as detonações do nosso tempo.” (Peter Sloterdijk, O Sol e a Morte, diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs”).

 

5 poemas de NINGUÉM VAI PODER DIZER QUE EU NÃO DISSE I

Ninguém vai Poder Dizer que Eu Não Disse I, meu terceiro livro, foi lançado em 22 de Setembro, no Bar Irreal, em Lisboa, Portugal. É o primeiro volume da série com pequenos poemas, ainda que a maioria no formato prosa. Testados/lançados primeiramente aqui e ali, em “salas” da internet. Série que, no caminho que faz, em sua essência, gritam meu íntimo, incluindo nela fragmentos do episódio em que fui brutalmente apaixonada e então brutalmente agredida pelo acidental e efêmero amasiado (o cavalo. o falso cego. cavalo de bengala?). Mas não vamos ofender tão lindo ungulado. Então posso dizer que poeticamente temos aqui um livro do cotidiano, pequeníssimos manifestos, axiomas, enunciações de várias fases (dolorosas, bonitas, pulcras, estragadas, desempoadas) entre hematomas e sorrisos apaixonados, claro, se valendo do lirismo para melhor ser.

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invento minhas políticas. você sabe. erramos ou não a fruta. o ritual é deixar que a fruta seja seta antes das moscas. ajoelha-te amo-te ajoelha-me o amor e a fruta será. um filamento de sim e um de não. também um de sim e não. sofro-me vermelha. sofres como amarelados castanhos. a noite faz uns descansos sobre as cordas de macacos japoneses no shamisen de saber o ventre feminino. ENQUANTO A GENTE CORRIA EU VI A PONTE SOB. terminei a frase antes que o ritual alimentasse as moscas.
 

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correr e parar e gritar ao penhasco NO MUNDO HÁ SEMPRE UM HOMEM DE BOAS MÃOS CUIDANDO DO MUNDO e quase despencar e quase despencando ser agarrada pelos cabelos e sendo agarrada pelos cabelos saber a lã. ai. a lã. um cheiro de boca. e me virar. EU CONHEÇO ESSA GUERRA EU CONHEÇO ESSA PAZ.

~

um mamute retorna de seu trabalho
mapear um intervalo de poeiras
dirá
das dificuldades em manter uma linha aqui e outra ali
deitará sua massa no mato com baunilhas
sentirá esse sono que todo homem sente: um mamute retorna de sua era.

~

detenha o focinho diante da janela. teu bafo faz auréolas arrecadando prostitutas da tua cidade: ENTENDO QUE É PRECISO COMEÇAR A PENSAR UMA NOVA CIÊNCIA ESTENDEDORA DE HÁLITOS.
 

~

voltar o filme, ver como o cego vê. vê como o cego vê. volta o filme pra ver: a mulher caminha até uma árvore. lá está seu namorado segurando uma carta de despedida e uma aliança e uma flor. tudo fede a peixe e não há garantia alguma de que a trilha sonora possa ser original, por exemplo. segure-se nuns ramos de coisas: o filme está para começar: em qual época da minha vida eu comecei a enxergar o prato sem as coisas nele? os fatos fora do prato. os talheres como ganchos para assuntos paraninfos, a família como jogo de talheres, os besouros como broches? só o cego sabe de qual flor falo eu. pequeníssima risada: falo eu.


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Not taken

A cinza deslocando-se atmosfericamente contra o asfalto
dispersando-se como faísca, desaparecendo
como um prodígio que se afoga na floresta
por negar viver junto de sentimentos calados, fechados
na lei dos semáforos da madrugada.
Os faróis do carro passam por nós,
iluminando os pares observatórios no meio de tanta escuridão
tenho sono e sinto um pássaro no peito
quando a tua mão aperta a minha
quando o elevador é o lugar do nosso beijo
quando pedes para afagar o teu cabelo aparado.


The ash shifting atmospherically against the asphalt
dispersing as spark, disappearing
as a prodigy who drowns into the forest
to deny living together with quiet feelings, closed
in the law of traffic lights at dawn.
The car headlights pass us by,
illuminating the couple observatories in the midst of so much darkness
I sleep and feel a bird in the chest
when your hand tightens mine
when the elevator is the place of our kiss
when you ask to stroke your trimmed hair.


wastelands

quero dos teus olhos
esse naufrágio azul
sobre as pálpebras
o bom dia, senhora
no sotaque indefinido
de manhã 
quero a inutilidade
do candeeiro
quando a luz invade
as portadas
e se te deixas inteiro
na condescendência
da nudez, é a tua
boca que procuro
ainda cega, perdoa
se a sede é permanente,
levo aos dedos o teu sémen
por imaginar belos
os filhos dos teus filhos,
então invade sobe
trepa o meu ventre
(seremos sempre
animais de baldios) 
e perdoa de novo
se tudo o que tenho  
é esta absurda solidão; 
aceita a minha inabilidade
para traduções complexas, 
é em português que te ofereço a língua
e todas as minhas
petit-morts. e quando cair babel
estarei aqui plantada,
gerando raízes nesta terra
de ninguém, 
entregando-te a coragem
de já não saber da pátria
e as estrias os dentes
as costas vendadas
prontas para te receber
ao pequeno-almoço, e sim, 
esta sou eu e não
a ausente de mim, 
submissa ao relento de
um dia
não estares mais. 
é assim que recebo
a catástrofe, 
os restos das tuas sardas
sobre o meu corpo, ou: 
mais uma manhã 
abraçando
teu naufrágio.