Luiza Neto Jorge

(A partir do filme de João Roque para a RTP, 1982)

filme de João Roque sobre Luiza Neto Jorge

Resta o espaço aberto na parede para a escrita
da infância, da ferrugem  

A música a chiar como fogueira 
triunfal, a alumiar o cerzir-meias, 
a pobreza e os finos pulsos de gato 
em que lambes as cinzas 
 
A moldura humana oxida. O teu rosto 
apela à dissidência, deixa expostos 
os fios do circuito, o pressuroso e fundo sinal – 
raiz na oval do cérebro –, e todos os poemas 
te fecham sob a agulha 
e sob as pálpebras 

Dizem que é má a sonoplastia nacional – 
afogamentos, um assobio de vozes 
submergidas 
 
Assim, por erro técnico, desencadeia-se 
uma possibilidade: a criança e o livro 
aberto na terceira dimensão, tu, 
na sombra geológica da perdida plumagem, 
o animal que mais te lembra é o pavão, 
o de mil olhos depostos fazendo 
da curiosidade resguardo 
e manutenção 
 
Nesse ângulo irrealizável 
explicas – bizarria sem vaidade – 
o que a vida excede no mistério 
do teu último poema 

Sean O’Brien, A partir de Laforgue

tradução de Hugo Pinto Santos

em memória de Martin Bell

 

Ergui um barricada contra a grandiosidade.
Toda a noite, rompendo o nascer do dia e o meio da manhã
Que morre, a chuva tamborila num balde do pátio.
O meteorologista diz que vem aí o Inverno,
Como se o tivesse inventado. Ele que se foda.

Que se fodam o sol e os aeroportos e o prazer.
No interior, o vento poda os lilases.
Sabes o que isto significa. Estava capaz de cantar.
Há marinheiros de fim-de-semana que dão as cartas e praguejam.
O Canal está encerrado. Isso é bom.

Trancados à sombra da ampla ramada do dinheiro,
Cozinham-se almoços desesperados
A tempo das fúrias da tarde e de súbitos
Divórcios entre dívida e meios de produção.
Isso também é bom. Estas províncias estão encerradas.

Quanto a mim, imagino o Norte com a sua morrinha,
Um fumo fugitivo, chaminés que explodiram: terra
De mau tempo, com longas colinas de hospitais, terra
Do regionalismo dos males de contas, terra
De uma porfia sectária nas jurisdições de Sheffield e Hartlepool.

De regresso à terra, vindo de um mundo de distracção tardo-liberal,
A uma terra de chuva e de caminhos atulhados de folhas,
A toda uma vida a trabalhar e à espera,
O bar da central de camionagem quase a fechar,
Plataformas geladas de términos regionais vazios de promessa,

Terra de docas que morreram e de casas-modelo vandalizadas.
Terra de Noite de Travessuras e de Hallowe’en, das suas historietas,
Quando os bancos de jardim (repouso empapado de velhos sacanas de
                                                                            [sobretudos a feder a cão)
Desaparecem, quando os funcionários da câmara arrastados do pub
vão dragar o lago do parque,

A ver as suas pegadas encherem-se
E a odiar as crapulosas vidas daqueles
Cuja crápula vive lá dentro. Terra,
Enquanto o domingo se estende até ao Inverno, um beijo friorento
Num portal, o programa religioso na televisão, as últimas bebidas antes de o
                                                                                                 [bar fechar. Terra.

Chuva, com a paciência de um anjo, lembra-me.
Este não é o mundo da Miss Selfridge e da Sock Shop,
De lucro descartável e licra, bisbilhotice iletrada, desenrascanço depois
Da última fase de acesso à faculdade, Gestão de Empresas em Farnham.
Este mundo não é Eastbourne. Não tem opiniões.

Neste mundo chove sempre e o Inverno
Está sempre a chegar – renascimento da tuberculose
The Sporting Green a afundar-se no escoadouro.
Aqui está a tralha que é deixada nas falhas
Entre as casas – ambiciosos sofás pretos de pele de sapo

E minibares que perderam peças, os catálogos
Feitos em papas, os objectos que não é possível nomear
E que dantes eram qualquer coisa com maçanetas,
E agora vivem aqui, junto aos tapumes, a peixaria,
O edifício cuja função já não se sabe.

Londesborough Street com o telhado destruído –
Aquele cheiro de quando o papel de parede se vai, enquanto
Chove no patamar, em cães de loiça, em fotografias
E antiquíssimas ideias feitas de recto servilismo.
Nada está seco. A fronha da almofada tirita de frio.

E a água trepa a tijoleira da copa
E o vapor ascende da grelha. Há funerais
A barrar a rua por mais de um quilómetro,
Enquanto os coveiros lutam com bombas de água e o padre
Tenta agarrar-se ao seu sotaque.

Chuva, com a paciência de um anjo, lembra-me
Outra vez a lição de onde eu vim
Com vestíbulos gelados e almofadas de borracha,
A inspecção de lêndeas, a cinza com um cheiro a humidade no pátio
E o andar de cima que é como o serviço de pneumologia do hospital.

Ensina-me que o tempo vai sempre piorar,
Perseguido pela frota do Árctico –
Tema de conversa na loja da esquina
E que vem à ideia quando se sai para o pátio,
Com sirenes de fábricas e barcos de ligação,

Ali, como uma promessa, no instante do anoitecer
Em que a chuva se faz neve e é Inverno.


Sean O’Brien, Cousin Coat – Selected Poems, Picador, 2001

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Decisão, fado e contraste

36. DECISÃO

Toda a sua vida se sentira ora feliz ora triste e isso perturbava-o bastante, a tal ponto que chegou a desejar sentir-se sempre triste a sentir-se assim, ora feliz ora triste; no entanto, nunca soube escapar a essa indesejada alternância. Decidiu então, de uma vez por todas, deixar de sentir-se. E foi o que aconteceu.

45. FADO

Porque estava cansado de não trabalhar, deixou de procurar emprego. Porque estava cansado de passar fome, deixou de comer. Porque estava cansado de procurar um sentido para a vida, deixou de viver. Não foi feliz para sempre, mas morreu.

55. CONTRASTE

O preto e o branco estavam um à frente do outro e olhavam-se com desconfiança. “Queres mudar de cor?” - perguntou um deles, não sei qual, e o outro assentiu. 
Mudaram então de cor e continuaram um à frente do outro a olharem-se com desconfiança.

Maria João Lopes Fernandes, 3 Naturezas Mortas Sociais

E se andarem por Coimbra no dia 1 de Março (próximo Sábado), aproveitem para ver a exposição da Maria João, na livraria Alfarrabista Miguel de Carvalho, integrada no festival de poesia Mal Dito (20 a 23 de Março). A exposição abre pelas 17 horas.

Volta à ligadura

Atrapalha-me o passo quando penso regressar. Digo baixinho palavras supostas, convenço-me de que dois gloriosos dias bastam para me atrever a olhar em frente. Sinto cansaço e digo adeus às casas baixas, àquelas varandas onde se afirmam ingénuos e percorro em desequilíbrio estas ruas uma última vez. Para trás fica gente bonita, sabes. Gente cuidada e lágrimas tantas. A aldeia vai ficando para trás e o meu coração soluça ao tentar acompanhar o ritmo apressado da locomotiva. Isto não devia ser assim: todas as viagens de despedida deviam ser acrescidas de um tempo extra. Duas horas mais dez minutos em ritmo lento, à força de querer olhar uma vez mais para trás. Aconchego-me no banco desconfortável e observo a manhã seca. Ali está a minha mãe. Alcanço-a com a minha mão, “estás tão perto”. Imagino a minha cara encostada ao vidro, construo frases de dezasseis palavras, entretenho-me. Havia um tempo em que a minha operação linguística bastava para me render aos novos hábitos citadinos. Mas hoje não. Hoje sou analfabeta, levo rebanhos numerosos, divago em montes alicerçados. Voltei. Mas é sempre por tão pouco tempo. Chego à cidade e ainda sou pastora. Talvez por isso as pessoas me olhem com sermão. Nada digo, avanço os pés apertados habituados à rotina do campo. Há ligaduras invisíveis sobre o meu corpo. Receio as mentiras que se adivinham, os dias passados no silêncio do centro, o dialecto correcto que afugenta sorrisos alheios. Ah, cheguei. Sem saber onde.