4 poemas de Eeva Kilpi

*

Amor é a mais elástica dimensão humana.

É como a vagina.

Adapta-se ao grande e ao pequeno.

 

A natureza não decepciona.

 

 

*

Outono.

Agora lavo o esperma do verão passado.

Pouco mas mesmo assim.

É pena.

Não coube todo em mim.

E longo é o inverno.

 

 

*

É melhor que nos tenhamos conhecido só agora.

Se nos tivéssemos conhecido antes

Já estaríamos separados.

 

 

*

Diz-me já se te incomodo

disse ele enquanto entrava porta adentro,

que sairei de seguida.

 

Tu não só me incomodas,

respondi,

abalas toda a minha existência.

Bem-vindo.

 

Eeva Kilpi

Elogio da Dúvida - Recensão

Elogio da dúvida.jpg

«Os melhores despedem-se de toda a convicção,
Os piores vão plenos de apaixonada veemência

(Yeats, W.B., Poemas Escolhidos, tradução de Frederico Pereira, Relógio D’Água, 2017)

 

Em Elogio da Dúvida (Edições 70, tradução de Jorge Melícias, 2021/2016), Victoria Camps, Catalã, faz exatamente aquilo que está no título. Não se trata de retornar ao niilismo radical dos cínicos gregos (aliás, mais ficcional do que histórico), contrapeso a um racionalismo que sacudia excessivamente os hábitos da época. Mas de usar a razão para combater dogmas e disposições que usam em vão a palavra verdade. É por isso que Camps prefere Esménia a Antígona, aquela é sobretudo dubitativa, ponderada e reflexiva. É que não se trata da dúvida fingida de Descarte, mas da de Montaigne (o herói do livro).

Com tantos séculos de civilização, com tantos séculos de erros, continuamos a ansiar por verdades, e é por esta porta que entram, e se multiplicam, os fanatismos. É este o perigo da verdade, a sua condição de existência não permite a dissidência. Todos juntos, a pensar e a sentir a mesma coisa, ou se desdenha ou se combate o estrangeiro, duas formas de destruição da diferença. Camps usa A Vida de Brian, dos Monty Python, para exemplificar a vontade de eliminar o divergente.

As raízes do fanatismo estão na incapacidade de pensar criticamente, a partir daqui crescerá uma autossuficiência pronta a acreditar que fala em nome da verdade, o islamismo serve de paradigma à autora. Montaigne estava totalmente fora desta disposição, desconfiando, mais do que Descartes ou Espinosa, do poder da razão para chegar à verdade. Em consequência, nos Ensaios, e para evitar que se imponha, decrete a verdade (é bem isto que constitui os fanatismos), elogia repetidamente, numa linha aristotélica, a moderação. Que, aliás, considerava mais difícil de concretizar do que os extremismos: «O povo engana-se. É muito mais fácil andar pelas margens, onde os extremos servem de limite, de freio e de guia, do que pela via do meio, larga e aberta».

Transportando esta tese para um campo metafórico e socorrendo-se de El retorno de los chamanes de Víctor Lapuente, Camps confronta a figura do político xamã (faz grandes promessas, tem tendências revolucionárias e autocráticas, ataca aos adversários) com a do explorador (responde a problemas concretos, assume erros, corrige-se). Nos países nórdicos praticam-se mais as políticas exploratórias. É também aí que se vive nas virtudes sãs do relativismo e da auto-irrisão. No Sul, prefere-se, pelo contrário, a bazófia e as grandes palavras: justiça, paz, liberdade, democracia. Palavras que sem pensamento crítico parecem absolutos mágicos, intrínsecos ao politicamente correto. Como quando se escreve «democrática» no nome de um país, sabe-se imediatamente que é uma ditadura (República Democrática Alemã, República Popular Democrática da Coreia…).

            O Elogio da Dúvida é um livro para todos, inteligente e substancial, sem excessos de erudição ou uma linguagem enfeudada numa arena académica. E não tenham receio de, depois de o lerem, ficarem enredados em dúvidas intermináveis. Só se fica menos dogmáticos e mais preparado para relativizar o autocontentamento.

4 estrelas.

4 poemas de Bo Carpelan

Círculo

 

Ali, ao lado da pálida árvore,

ele escutou os passos de minha mãe.

O mortal é o nosso amor e ternura,

o dia que passa miraculoso porque nunca regressa.

Eu que escuto os teus passos na erva

e tu que estás perto de mim,

talvez no crepúsculo cinzento

lembrar-se-ão eles quem agora sonha?

 

Entre os Versos

 

Entre os versos e a vida,

o dia abandonado e o papel abandonado,

dias em que vês que o amor não é apenas vento sobre erva:

este é o “dia da vida”

e talvez quebrado

e o dia vive e é parte do seu próprio lado negro

virado em direção a nada.

 

Sob as mesmas nuvens

 

Sombras misturam-se com sombras,

a erva com o seu cabelo,

morto jaz alguém, alguém que morreu

sob as mesmas nuvens.

 

Abre-se o dia

 

Abre-se o dia,

aves pairam sobre a água,

uma nuvem aproxima-se

e eu retomo o meu trabalho

de forma a que com duas palavras

ganhe uma de volta.

 

Bo Carpelan, The Cold Day (1961)

3- de peito aberto à volúpia inextrincável do mundo

de peito aberto à volúpia inextrincável do mundo
sei que em cada navio há       como que
                 uma concreção da margem idealizada
                           uma terra diabólica com odor apenas a mato
e os mais belos exemplares da raça           
                  com a cara esculpida pelo vício
                            sentindo o sol
                                  a incendiar as résteas do sal marítimo na pele
como que         
          engendrando pequenas revoluções
cravando a raíz
               -  não olhando ao sangue sofrido das mães -
                           nos amantes enebriados             
                                   euforia necessária ao lavor da máquina
terra subitamente desocupada     
                   atraindo sobre si
                          a fúria colonizadora das plantas
digo
da palpitação dos corações produtivos
                 com mãos cheias de petróleo e Roma
digo
homens-palavra
               afinando o negócio das estações

sei também que 
não fui o único que ao olhar o céu
descobriu nos seus lençóis
o perfume quotidiano de Ítaca
não 
dos seus pródigos versadores do medo
nem tão pouco       
dos seus atletas da fecundação
                   numa história calibrada pela faca
                          e pelo ciúme jupiteriano 
                                com qualquer manifestação de alteridade
mas     
           a menstruação abandonada ao descuido no níveo chão
                      os cabelos amarfanhados no escroto ou no anûs
                               de uma criatura inexplicavelmente luminosa e anesténica
                                 com mãos sibilosas sobre o barro     
                           carregando cântaros         
            tomando a si os néscios
e que aí             
           - ó único deus vivo -
                    juramos ter por nossa companheira
                          uma louca desventura pelos pântanos das cidades selvagens
            trazendo em nosso peito
                    feras sem dentes
                          devolvendo-as saudosos às fábricas
                                  com longas saudações orgulhosas
                                          e promessas de Abril

era da palpitação 
                 do elétrico 28
                        carregando turistas          
                                às zonas perigosas da cidade
como que
                 cuidados de primeiro socorros
                        para suicidas em estado de iminência
                                 que falava                    
e sobre à margem do rio
                  afoguei-me nos seus choros lúcidos 
                               enquanto gritavam de prazer
                                      a cada marretada que levavam da maca
dançando com a sofreguidão das ambulâncias                  
                  gritando de adrenalina a cada curva
                               em frente do paternalismo do enfermeiro
                                        ou dir-se-ia
                                                      de Cristo
o único suicida que percebeu a sua santidade por se suicidar
mas que nunca 
                  diga-se 
                           abonou propriamente para o lado da lucidez
tendo-se dado ao desprezo de ser lembrado
como um mero porta-voz de uma ideia que não entendia muito bem
e que por isso          
                  diga-se também de passagem
                         não foi propriamente pródigo a fazer com que a entendessem              
nada fez de relevante para acabar com
o roubo do cobre nos fios dos elétricos
motivados pela malta que
                  podendo        
                         preferiu não acreditar muito nas propriedades místicas da fome

mas
nada disto
deve
ser entendido como uma maçã retirada de um outro Jardim
continuamos 
               neste pequeno aquário de província veraniana
                              que afinal todos habitamos 
nossa é a merda que comemos 
                 todos os dias
                              em todos os desembarques
a histeria                é apenas um curto-circuito.

Gratidão

 

Não penses que não te estou grata pela tua pequena

amabilidade para comigo.

eu gosto de pequenas amabilidades.

de facto, prefiro-as às amabilidades

mais substanciais, que te estão sempre a mirar,

como um animal grande num tapete,

até que toda a tua vida se reduz

a nada mais que acordar manhã atrás de manhã

confinado, e o sol resplandecente brilhando nas suas presas.

 

Louise Glück, The House on Marshland (1975)