Futebol Totémico

David Lopes

Um artigo de Javier Rodriguez Marcos para a «Babélia» do jornal El País, com o título «Balón envenenado, libro redondo», traz esta citação de Goebbels: «Ganhar uma partida [de futebol] era mais importante para nós do que invadir uma cidade da Europa de Leste».

Ora aí está uma ideia que põe em perspectiva o que o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse sobre os direitos humanos, a falta deles, no Qatar, é bom citar: «O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal. Mas, enfim, esqueçamos isto, é criticável, mas concentremo-nos na equipa.» (quinta feira 17 de novembro, enquanto comentava o jogo de «preparação» Portugal-Nigéria).

Declarar, com este ânimo leve e festivo, que a «equipa» é mais importante do que os direitos humanos e as questões ambientais provocou algum embaraço, político e social. Mas a Assembleia da República vai autorizar a viagem do Presidente República, do Primeiro-ministro e do Presidente da Assembleia da República ao país, Qatar, que se esteve nas tintas para os direitos mais básicos (vida, liberdade e segurança, por exemplo) de milhares de trabalhadores, a maioria estrangeiros, que construíram as instalações nas quais a «equipa» vai jogar.

Com igual leviandade, o nosso Primeiro-ministro, um experiente futbolítico (conceito de Ramon Usall), disse que não quer fugir à questão sobre os problemas que se levantam em torno do mundial, mas acaba por ser mais rápido do que Lucky Luke a fugir dessa mesma questão. Ora vejam: «Não quero fugir à questão do campeonato do mundo, que é onde é. Todos temos posição sobre o que é o Qatar, mas o que faz com que a nossa selecção esteja no campeonato do mundo é que é uma das poucas selecções que conseguiram apurar-se.» (declaração de sexta feira à noite, 18 de novembro. Cito a partir deste artigo do Jornal Público, respeitando a desconstrução da língua portuguesa).

E, assim, o vencedor é… a «equipa». Tudo pela «equipa», nada contra a «equipa». Um novo totem (mistura de Freud e Lévi-Strauss) e uma nova narrativa de alienação. Se sabíamos que o futebol era estridente, discursivamente incandescente e um reduto inabalável de desigualdade social (quem se atreve a questionar os vencimentos estratosféricos de 100 ou 200 eleitos?), agora, contra os princípios da Modernidade, devemos acrescentar que a «equipa» é o novo valor dos valores, oscilando facilmente entre o furor e o analgésico, as massas precisam de gritar e de ir andado com a cabeça entre as orelhas.

Age, pois, de tal forma que a tua ação seja sempre boa e nunca má para a «equipa» (não é kantiano, mas quase).

Haikus Malteses

Xlendi Bay, Malta

 

Na figueira maltesa

um pisco canta

o fim do verão.

 

Rapidamente se esquece

o que milénios de pó

escondem.

 

À beira do mar

todos os amores

a espuma das ondas.

 

A caminho de África

três patos descansam

ao lado dos turistas.

 

Cabem nas pupilas

as falésias gigantes

o mar possível.

 

Longe destes olhos

que fechados

tocam o infinito.

 

O mar nada revela

ondula um momento –

eternidade para a carne.

 

Prende-se o mar

com as mesmas amarras

que o amor.

 

Onda contra a onda

que regressa –

uma mosca observa.

 

Num copo de Chardonnay

põe-se

o Sol.

 

O olhar de Calypso

na praia –

o verão parte.

 

Sobre a merda das pombas

pousa graciosamente

uma borboleta.

 

Vinda do mar

a tempestade –

aves silenciosas.

 

Sobre o fresco cagalhão

ejacular –

manhã de Novembro.

 

No caranguejo morto

a sombra

de um pequeno peixe.

 

Caranguejo morto

ao sol

perde o verde.

 

Pequeno camarão transparente

lutando pela vida

como um elefante.

 

As ondas brilham

ao sol –

mais um barco passou.

 

São alimento

a morte e o sol –

consumindo vida a vida.

 

Puxa a linha

o pescador –

outros regressam.

 

O sol e o mar

nas salinas abandonadas

continuam o trabalho.

 

Por trás

do farol apagado

põe-se o Sol

 

Malta, Novembro 2022

As meninas revolucionárias

Uma mecha de cabelo fora do véu e Mahsa Amini, que visitava Teerão com os pais, é abordada pela «polícia da moralidade» (zeladores dos «bons costumes», ditados por Maomé no recente século VII e reeditados ontem, 1979, pela revolução islâmica anti-iluminista da República — a sério? — Islâmica do Irão) no dia 13 de setembro, abordada e detida. Ao fim de três dias, foi levada em coma profundo para um hospital, morreu pouco depois.

O país, uma parte significativa dele, entrou, entretanto, em ebulição, efervescência combatida com mão de ferro pelos velhos sábios do autoritarismo islâmico, detentores do monopólio da violência legal (mistura de leis positivas e religiosas, com muita corrupção institucional à mistura). Apesar do controlo mortífero — atirar a matar contra as manifestantes, penas de prisão arbitrárias e massivas, prepotência da justiça institucional (cada vez mais ideológica) —, as manifestações continuam, pagas com cerca de 300 mortes e 15 000 detenções. Em geral, protagonizadas por jovens, sobretudo adolescentes, que querem, de acordo com o slogan, «Mulher. Vida. Liberdade.», um futuro com sentido, futuro imaginado sem o fanatismo patriarcal. No jornal online Jadaliyya.com, uma jovem iraniana refere que as manifestações são feitas arriscando a própria vida, inscrevem no corpo a possibilidade real de uma morte incrível e absurdamente prematura. Mas diz mais, as pessoas vão para a rua também com o corpo que desejam ter, com um imaginário próprio, incarnam o ato revolucionário com esta imaginação.

A luta, que parece influenciada por valores ocidentais (os mais compatíveis com uma vida humana digna, já agora), opõe-se à cartilha de «bons» costumes de um país que se transformou, depois da revolução de 1979, rapidamente numa ditadura militar, que responde às objeções com aquilo que conhece: violência e morte. É por isso que o politólogo Farhad Khosrokhavar fala de «tanatocracia», um regime que governa «pela morte e pelo medo da condenação à morte». Isto tem, é bem claro, o propósito de manter o país relativamente isolado, o ódio ao Ocidente, especialmente aos USA, é a forma de consolidar um statu quo que privilegia exponencialmente a classe dirigente: militares e religiosos. Khamenei necessita de se confrontar quase permanentemente com o Ocidente, é esse inimigo que facilita a narrativa do nacionalismo e do contínuo estado de exceção, esse inimigo é o seguro de vida da teocracia, ou tanatocracia iraniana (cujos modelos foram o fascismo e o estalinismo). A integração do Irão no mundo global, pela multiplicação de influências que quase de certeza conduziriam à reforma do atual regime, continuará a ser adiada enquanto prevalecer um poder patriarcal sustentado numa ditadura militar.

Era bom que regressássemos mais vezes a Pierre Bourdieu, La domination masculine (Paris, Seuil, 1998), para percebermos melhor por que razão, na sequência do que acabei de escrever, por trás da violência física, dos castigos sobre o corpo, vive uma violência simbólica que «constitui o essencial da dominação masculina». A obrigatoriedade do uso do véu pelo sexo feminino, instaurada pouco depois da revolução de 1979 (a tal que iria libertar os e as iranianas), é uma parte importante dessa violência, responsável por um apartheid de género, de facto e de jure. Ora, é contra esta primeira, e primordial, usurpação da liberdade feminina que hoje se levantam muitas mulheres iranianas (também alguns homens, é verdade). Sobretudo jovens, algumas ainda na primeira fase da adolescência. Com a audácia e a coragem que falta aos acomodados no «para mal já basta assim» (sim, porque só os alucinados ou os oportunistas do regime julgam viver bem no Irão). E que nos falta a nós também. Quem detém o monopólio do protesto em Portugal (partidos políticos e produtores de opinião) pouco fez, não houve qualquer gritaria e os artigos nos meios de comunicação social contaram-se pelos dedos de uma mão.

Mas se há uma revolução, larvar, que hoje importa, é a do Irão. Pela inteligência e a coragem (de me fazer corar de vergonha) que demonstram as meninas iranianas (é uma expressão de carinho com sociologia e demografia à mistura). Não vejo outra que contenha tanta esperança num mundo melhor, não vejo outra que contenha tão poucas forças revanchistas, tão pouca apetência para se metamorfosear em ditadura. Isto deve-se, tenho esta convicção profunda, à motivação feminina que informa os protestos, é contra a sacralização das descriminações e violências sexistas da ordem islâmica que o feminino lidera as manifestações, nas quais muitas tiram o véu, nas quais muitas arriscam a prisão ou a morte. Se vencerem, o Irão será mais justo, livre e igual, porque elas querem ser livres e iguais, não superiores, arrumadoras e castradoras.

Se pensarmos que o Irão é, na realidade, um estado «zombie» (conceito de Zygmunt Bauman), porque estamos enganados quando julgamos que o país tem uma burocracia funcional, com linhas vermelhas claras, que as elites inspiram, medo e confiança, que as instituições têm um real poder. Tudo, ou quase, está moribundo. Mesmo que dure ainda algum tempo (que será sempre tempo a mais), acabará por morrer, desaparecer, fará parte da história espúria do país. Em Homo Sacer, Giorgio Agamben usa a noção «resto» para designar uma parte do real que escapa ao poder. Será deste «resto», do que escapou à tentativa de monopolização das ideias, narrativas, imaginário… que, a partir da indignação justa, se fará o novo Irão.  Os «restos» são, hoje, mais vitais do que os sentidos que permitem a alguns dizer: «a República Islâmica do Irão é a nossa casa e vamos lutar por ela, tal como está, petrificada numa sagração pífia». Estes poucos que ainda dominam não percebem que são prisioneiros dessa mesma dominação, que o medo de abrirem as suas próprias celas os aliena e apodrece aquilo que julgam ser salvífico. Por isso, cairão. E as meninas sem véu serão professoras, médicas, políticas, mães, amantes, músicas, engenheiras... Livres, justas e inteligentes, com esse pleno de vida que por vezes nos cabe em sorte e que nelas será a conquista mais exemplar da história.