Eclipse

Augusto Monterroso
(Obras Completas y Otros Cuentos, 1959)
Tradução de Patrícia Lino

Quando frei Bartolomé Arrazola se sentiu perdido aceitou que já nada poderia salvá-lo. A selva poderosa de Guatemala tinha-o apressado, implacável e definitiva. Perante a sua ignorância topográfica, sentou-se com tranquilidade à espera da morte. Quis morrer ali, sem nenhuma esperança, isolado, com o pensamento posto numa Espanha distante, particularmente no convento dos Abrojos, onde Carlos Quinto consentira uma vez descer da sua eminência para dizer-lhe que confiava no zelo religioso do seu labor redentor.

Ao acordar deu por si rodeado por um grupo de indígenas de rosto impassível que se dispunham a sacrificá-lo em frente de um altar, um altar que a Bartolomé pareceu o leito em que descansaria, por fim, dos seus temores, do seu destino, de si mesmo.

Três anos no país tinham-lhe conferido um domínio mediano das línguas nativas. Tentou algo. Disse algumas palavras que foram compreendidas.

Floresceu então nele uma ideia que tinha em conta o seu talento e a sua cultura universal e o seu árduo conhecimento de Aristóteles. Recordou que para esse dia se esperava um eclipse total do sol. E decidiu, no seu mais íntimo, valer-se daquele conhecimento para enganar os seus opressores e salvar a vida.

— Se me matais — disse-lhes — posso fazer com que o sol escureça na sua altura.

Os indígenas olharam para ele fixamente e a Bartolomé surpreendeu a incredulidade nos seus olhos. Viu que formaram um pequeno conselho, e esperou confiante, não sem um certo desdém.

Duas horas depois o coração de frei Bartolomé Arrazola vertia o seu sangue veemente sobre a pedra dos sacrifícios (brilhante debaixo da opaca luz de um sol eclipsado), enquanto um dos indígenas recitava sem nenhuma inflexão de voz, sem pressa, uma por uma, as infinitas datas em que aconteceriam eclipses solares e lunares, que os astrónomos da comunidade maia tinham previsto e anotado nos seus códices sem a valiosa ajuda de Aristóteles.

Notas do meu notebook

O EXCESSO MAIS PERFEITO

Queria um poema de respiração tensa
e sem pudor.
Com a elegância redonda das mulheres barrocas
e o avesso todo do arbusto esguio.
Um poema que Rubens invejasse, ao ver,
lá do fundo de três séculos,
o seu corpo magnífico deitado sobre um divã,
e reclinados os braços nus,
só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,
e um anjinho de cima,
no seu pequeno nicho feito nuvem,
a resguardá-lo, doce.
Um tal poema queria.

Muito mais tudo que as gregas dignidades
de equilíbrio.
Um poema feito de excessos e dourados,
e todavia muito belo na sua pujança obscura
e mística.
Ah, como eu queria um poema diferente
da pureza do granito, e da pureza do branco,
e da transparência das coisas transparentes.
Um poema exultando na angústia,
um largo rododendro cor de sangue.
Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado
e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico
das suas pulseiras tão (mas tão)
preciosas.

Nu, de redondas formas, um tal poema queria.
Uma contra-reforma do silêncio.

Música, música, música a preencher-lhe o corpo
e o cabelo entrançado de flores e de serpentes,
e uma fonte de espanto polifónico
a escorrer-lhe dos dedos.
Reclinado em divã forrado de veludo,
a sua nudez redonda e plena
faria grifos e sereias empalidecer.
E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras,
tremer de medo só da fulguração
do seu olhar. Dourado.

Música, música, música e a explosão da cor.
Espreitando lá do fundo de três séculos,
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
anjos
junto dos anjos nus deste poema,
cantando em conjunção com outros
astros louros
salmodias de amor e de perfeito excesso.

Gôngora empalidece, como os grifos,
agora que o contempla.
Esta contra-reforma do silêncio.
A sua mão erguida rumo ao céu, carregada
de nada —

AMARAL, Ana Luísa. As vezes o paraíso (1998), Inversos poesia 1990-2010, Lisboa, Dom Quixote, 2010. pp. 295-296.

Artemisia Gentileschi. Susanna and the Elders, 1610. The Metropolitan Museum of Art, Collection Graf von Schönborn, Pommersfelden, New York

Artemisia Gentileschi. Susanna and the Elders, 1610. The Metropolitan Museum of Art, Collection Graf von Schönborn, Pommersfelden, New York


Notas do meu notebook: “O excesso mais perfeito”

 

 

What happens between us
has happened for centuries
we know it from literature

still it happens

 

“The burn of paper instead of children”

Adrienne Rich

 

1.                     Tese: exceder. Sair para fora? Excedere, ex/cedere. O excesso. Tudo aquilo que sai para fora? E, no entanto, o mais perfeito: “um poema de respiração tensa/ e sem pudor”.

2.                     O corpo da tese: “a elegância redonda das mulheres barrocas/ e o avesso todo do arbusto esguio”. Paragem. Perguntas: quantos significados poderá ter “o avesso todo do arbusto esguio”? Respondes: uma imagem impossível dentro de um poema impossível.

Perguntas ainda: e a elegância dos homens barrocos?

O poema não responde.

3.                     O poema invejado por Rubens é, por enquanto, imagem: “corpo magnífico deitado sobre um divã,/ e reclinados os braços nus,/ só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,/ e um anjinho de cima,/ no seu pequeno nicho feito de nuvem,/ a resguardá-lo, doce”. Tem duas dimensões visuais: Horácio (ut pictura poesis[1]) ou, talvez, Simónides (pictura locguens, pictura poema silens[2])?

O poema não responde.

4.                     As cores do poema antecipam um corpus passível de ser tocado: “Um poema feito de excessos e dourados”; “ah, como eu queria um poema diferente/ da pureza do granito”. O mesmo corpus cresce à medida do poema: “um largo rododendro cor de sangue./ Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,/ ao passar, parasse deslumbrado”. O poema repete-se: “nu, de redondas formas, um tal poema queria”. É um poema que pede outro poema. Um poema-pedido. Uma reza (“My passion comes from the heavens, not from earthly musings”[3])?

5.                     “Contra-reforma do silêncio”. Voltas atrás. Paras, por momentos, na palavra barroco. Pensas: o excesso não é silencioso. O verso seguinte vem confirmar-to: “Música, música, música a preencher-lhe o corpo”. E o ritmo acelerado dos versos que se seguem também. Deves lê-los rápido até à “explosão da cor”.

6.                     Rubens, agora Murillo. Gôngora, logo depois. Todos empalidecem diante do poema que não existe. Rubens, Murillo e Gôngora são homens. Rubens, Murillo e Gôngora pertencem ao cânone. São os pais do excesso. De que forma podes, então, pertencer ao cânone? Queres dizer: podes pertencer-lhe sem passar pelo reaproveitamento ou pela superação dos seus pontos excessivos?

                        Mais: como negar este cânone? Superá-lo é negá-lo. E o poema que não existe nega Rubens, Murillo ou Gôngora.

7.                     As mulheres retratadas por Rubens, Murillo ou Gôngora são o objeto estético da estética barroca. Sublinhas a palavra: objeto. Pensas: os poemas que falam sobre poemas que não existem são sempre enormes exercícios de ironia. Discordas veemente quando, num artigo, lês:

A influência e o reaproveitamento de modelos como desses artistas espanhóis na poesia de Ana Luísa Amaral é um recurso do qual a poeta se vale para dialogar com o cânone poético[4].

Existe, de facto, o reaproveitamento de certos modelos barrocos, mas o propósito desse reaproveitamento não é o diálogo entre Ana Luísa Amaral e o cânone que, efetivamente, a excluiu ou a secundarizou. O poema vai além disso: não há que integrar ou dialogar com o cânone. Importa questioná-lo — Quandoque bonus dormitat Homerus! —, criar outro. E a paródia do cânone masculino é o primeiro passo para a criação de uma nova linguagem: “A sua mão erguida rumo ao céu, carregada/ de nada —“.

8.                      O excesso é feminino. Corriges-te: o excesso sentimental é feminino. Corriges-te de novo: o que significa “feminino”?
              Se feminino significa objeto, eis o raciocínio: ao reaproveitar as formas de uma arte excessiva, serás (ainda) mais excessiva — porque és mulher. Este porque és mulher envolve as duas faces da mesma moeda. Há uma voz que te diz: — o cânone secundarizou-te ou excluiu-te porque és mulher. E a mesma voz, ainda: ­— Satirizas, destróis o cânone, porque és mulher.


[1] Ars Poetica, 361-5.

[2] The Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. ed. Alex Preminger, Princeton, Princeton University Press, 1974, 881-2.

[3] Vide Samuel Levy Bensusan, Rubens: Masterpieces in color, IV, 2014, p. 4.

[4] Vide Márcia M. Araújo, “A nova poesia de Ana Luísa Amaral e Paulo Henriques Britto”, Letrônica, Porto Alegre, v. 4, n. 2, nov./2011, p. 169. 

Quero um samba de raiz o busto do Leão

Quero um samba de raiz o busto do Leão 
Hebreu 5k de Kavafy Vertov até à falta da visão 
 
Quero um cavalo de corrida duas mulheres sentadas 
sem roupa impuras um copo cheio de limonada 
 
Quero muito escrever um conto sobre baratas 
que apareça outro gato desgrenhado numa caixa de batatas 
 
ao chegar ao teu parque de estacionamento 
Quero dezoito acordes de violino e uma hora de esclarecimento 
 
numa pastelaria com wi-fi sobre a teoria das cordas 
Quero que todos saibam que eu quero saber como é quando acordas 
 
Quero uma taça de gelatina duas colheres metálicas 
o cheiro das tuas orelhas numa tarde farta de dálias 
 
Quero muito as tuas mãos pequenas sobre a minha testa 
um beijo húmido à entrada da casa e outro à saída da festa 
 
Quero a chávena média o cobertor do lado esquerdo do sofá 
dormir quero tanto dormir contigo 250g de açúcar no chá 
 
Quero todos os lugares onde tu estás ou estiveste 
que no meu funeral chores mais que todos que rasgues uma veste 
 
Quero ir do Porto ao Haiti e escrever uma epopeia 
uma lição um orgasmo um verso um sermão uma ideia 
 
Quero a tua cabeça apenas a tua cabeça nas minhas costas 
um pão com manteiga os meus lábios nas tuas unhas tortas 

CALEIDOSCÓPIO


A suspensão coloidal das nuvens no trânsito.
O número de habitantes de Singapura
(新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]).
Estar de joelhos onde acabem as tuas costas.
A cor azul dos teus atacadores no tapete
da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles.
Andar para trás na Pan-American Highway.

Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths
e um moinho de vento? São ambos processos
de fragmentação: please please please
let me get what I want

Os solavancos homéricos do autocarro nas manhãs
onde não beijo ninguém. O crânio dançante das galinhas.
Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar.
O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda
ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C.
Saber quantos fonemas tem a língua portuguesa.
Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger
na caixa. “Só plantará um jardim de cabeça para baixo
quem não ler a Historia plantarum”. Naná quem disse.
Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido
corpóreo. Nonsense Botany foi o que escrevi
num bilhetinho para Naná. Naná não respondeu. São 31.

Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste,
por que não haveria eu de te sorrir na fila do metro?
A primeira nódoa na camisa foi a tua boca.
A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou
o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro
numa praia de nudistas. O movimento centrífugo
que os mamíferos desenham antes de deitar-se.
Aprender que o amor não é um rondó: três couplets,
quatro ritornelos, um coração só, A-B-A-C-A-D-A
mão no seu lugar: aos ombros te carrego pelos lábios.
A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas.
O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther.
A minha festa de aniversário em 1999. A tua saia. Tu.
O último massacre do Sudeste Asiático, quão caro está
o tabaco, o preço da papaia, uma nação nas meias.
Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha,
que rodopiava. O lavatório, o queixo. Dois olhos
no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literary-est
mirror than me?