Perguntas-me o que é uma esfera

Perguntas-me o que é uma esfera
Pedro Braga Falcão

Perguntas-me   o que é uma esfera   e eu digo-te

depende da qualidade do som   isto é   quando é

quando é de manhã há sempre um halo de luz

da noite em que te encontraste com uma certa forma

como uma certa forma geométrica   entendo-te

consolo-te   digo-te   gostavas de escrever para todos

não é   gostavas que os teus ruídos fizessem

alguma forma de sentido para além da esfera

e vejo agora que te agrada o teu rosto

deformado nas mãos do metal   e sabes

também eu já sei que me escondo por ti

que te acuso dos meus segredos e os vomito

como nos quadros de uma exposição   entrando

dentro de uma alameda de plátanos que se dobram

para rezar   confrontando o altar com as suas sombras

que nos deixam um sacrifício profano   isto é

às portas do templo recapitulando cada geometria

como se soubéssemos o que é uma esfera   isto é

um círculo que se estende como a tua estatura

pequena   feita de pequenos saltos   frequente

como uma qualquer comparação sem a partícula como

ou uma merda dessas que se dizem na escola

de olhos vagos   macios   terrenos   co’a aspiração

a ser mais do que   mais do que   sabes

perguntas-me o que é uma esfera e eu

pobre de mim   acabo de pisar um palco

e descobrir que ter voz forte é apenas contingência

e que uma esfera é o que nos permite ver

para debaixo   o que está debaixo da máquina

a engrenagem que está debaixo e permite que haja

um pedaço de madeira a quem chamam palco   sabes

por isso é que qualquer grande tragédia tem

a forma de uma tragédia   isto é   um momento

em que alguém se lembra que está sobre um palco

e que a máscara   e que a pessoa   desatou a ser

um bocado da mão   um bocado do pé   um pedaço da boca

e ganhou a forma de uma lenda   de uma seta

e é por isso que qualquer pecado falha

como sempre falham as estrelas que nos enganam

como qualquer um que se preze até formar um gesto

perguntas-me   o que é um astro   o que um lírio

o que é um junco   respondo-te   se nunca viste uma esfera

é porque andaste distraída à espera de outra

de outra forma   e agora    agarra-te

porra   agarra e eu segurar-me-ei

a ti à tua voz pequena   sempre rouca

aos teus braços que não me podem segurar

e confiarei a minha solidão à tua velhice

que sempre acomete os plátanos e as lezírias

que sempre tomba como os gigantes nascidos

de pequenos vermes   mesquinhos até à sofreguidão das esferas.

Dois poemas de Salvatore Quasimodo

Giuseppe Migneco, Paesaggio di Castelmola, 1951

DOIS POEMAS DE ACQUE E TERRE (1930) DE SALVATORE QUASIMODO
Tradução de Tatiana Faia

VENTO EM TINDARI

Tindari, mansa te sei
entre amplas colinas suspensa sobre as águas
das ilhas doces do deus,
hoje atacas-me
e vens afundar-te no meu coração. 

Escalo picos aéreos precipícios
imerso no vento dos pinheiros,
e a companhia que ligeira me acompanha
afasta-se no ar
onda de sons e amor,
e tu prendes-me
daí tracei eu o meu mal
com medos de sombras e silêncios,
refúgios de doçuras outrora assíduas
e morte da alma.  

Desconhecida para ti a terra
onde a cada dia me afogo
e onde secretas sílabas nutro:
outra luz te desfolha ao alto nas janelas
na tua veste noturna,
e há uma alegria que não é minha
no teu peito. 

Áspero é o exílio,
e a minha busca de harmonia que era
para se encerrar em ti hoje muda-se
num medo precoce de morrer;
e cada amor é tela da tristeza,
silencioso passo no escuro
onde me deixaste
pão amargo para repartir. 

Tindari torna serena;
suave amigo que me desperta
que me puxa
para o céu a partir de um penhasco
e eu finjo medo para quem não sabe
que vento profundo me procurou.

  

ANTIGO INVERNO

Desejo das tuas mãos claras
na penumbra da chama;
sabiam a carvalho e rosas;
a morte. Antigo inverno. 

Procuravam milho os pássaros
e subitamente fizeram-se neve;
assim as palavras.
Um pouco de sol, um halo de anjo,
depois a neblina; e as árvores,
e nós rarefeitos na manhã.

Dois leopardos e algumas distracções

Um amigo que é poeta uma vez contou-me a história de como costumava atravessar toda a baixa de Nova Iorque, num tempo anterior aos telemóveis, para ligar a outro amigo nuns telefonemas em que ambos tinham umas conversas alucinantes, entre outras coisas, sobre as pausas de Frank O’Hara para o almoço, de onde saiu Lunch Poems.

A coisa que mais prendeu a minha atenção nesta história é que no fim o meu amigo contou-me que tinha querido escrever um poema sobre aqueles telefonemas desde sempre, mas só o conseguiu fazer bastantes anos depois do amigo ter morrido. Quando lemos esse poema parece que a conversa entre eles está a acontecer naquele momento, mas o que nele fica registado não é tanto o conteúdo de algum diálogo mais memorável quanto o tom e o estilo deles dois a conversar, as frases banais trocadas entre pessoas que sentiam uma pela outra um amor imenso. Há ali ainda qualquer coisa da alegria interminável daquelas conversas e a medida exacta da gratidão do meu amigo por aqueles diálogos alguma vez terem existido no mundo.

Penso que as minhas aspirações a poeta se vão e irão reduzindo cada vez mais a tentar escrever poemas que sejam da ordem deste tipo de conversa. A escritora italiana Antonia Pozzi, que se suicidou bastante cedo, com apenas 26 anos, escreveu numa carta que os poemas são sempre expressões de um desejo frustrado por alguma coisa. Não sei se para mim é bem isso. Parece-me às vezes que os poemas são um pouco mecanismos que na verdade amplificam tudo, o lugar de uma atenção absoluta, o exercício de uma atenção que imita a forma como nos apaixonamos, ou lugares onde se registam os contornos de visões que de outra forma desapareciam sem deixar rasto. Há muito disso, parece-me, no Leopardo e Abstracção, e, também, gente que se perde, que desaparece e ressurge em lugares inesperados, ou estão deslocados, ou onde não é suposto. Os trespasses de um modo geral interessam-me, os acidentes das desadequações e das inconveniências. Os poemas são bons lugares para isso.

Não há, ao contrário do que seria de esperar, muitos leopardos em Leopardo e Abstracção. Na verdade, existem apenas dois: o que aparece na epígrafe de Hilda Hilst, onde se lê que “leopardos e abstracções rondam a casa,” e os homens que são descritos como tendo uma força confiante “como a dos leopardos,” num poema que levou dois anos a ser terminado, “materiais facilmente inflamáveis,” que aparece lá mais para o meio do livro. Os homens que são descritos como leopardos são os que aparecem na Ronda da Noite de Rembrandt, um quadro que está no Rejksmuseum em Amsterdão. Estes homens, arquétipos de uma certa prosperidade burguesa numa cidade protocapitalista do início da época moderna, em retrospectiva, não são bem como os aristocratas que aparecem no mais famoso dos livros que contém a palavra leopardo no título, O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. É sabido que o felino que dá título a esse romance não é de facto um leopardo, mas um seu primo distante, o serval, um animal exótico que se parece muito com o leopardo e que na Sicília era por vezes mantido como animal doméstico por aristocratas. O Leopardo de Lampedusa não é tão famoso como a adaptação para cinema que Visconti fez do livro. O príncipe Tancredi sabe que é o último dos leopardos e não sabe muito bem como viver com isso. Há pelo menos um ou dois poemas no Leopardo e Abstracção que são sobre o fim do mundo, ou sobre o fim de certos mundos, mas talvez apenas no sentido em que são salas de espera para as tranformações que trazem consigo outros começos. É, por exemplo, esse o caso dos poemas “ao preço da chuva” e “alguns sons antes da manhã.”

O Leopardo é então uma referência menos obviamente importante para Leopardo e Abstracção do que a epígrafe de Hilda Hilst que acompanha o livro e de onde veio o título, mas tenho-me perguntado se qualquer coisa nos poemas se liga muito indirectamente ao romance de Lampedusa. Isto é porque a primeira pessoa a aceitar publicar O Leopardo foi o escritor italiano Giorgio Bassani (1916-2000) na casa editorial Feltrinelli. O romance saiu postumamente, em 1958, um ano depois da morte de Lampedusa, depois de ter sido rejeitado por outras duas grandes casas editoriais italianas, a Einaudi e a Mondadori. Ora, o único poema em Leopardo e Abstracção em que um leopardo aparece passa-se no escritório de uma grande casa editorial, onde as personagens que nele trabalham recebem a tarefa de destruir livros, ou como se diz no jargão técnico, guilhotiná-los. É estranho reparar em retrospectiva que embora a escrita do princípio e do fim desse poema esteja separada por pouco mais de dois anos, o desaparecimento destes livros na primeira parte desse poema liga-se à mutilação, mais famosa, na segunda parte do poema, d’ A Ronda da Noite, que em 1715 foi cortado pelos holandeses para o fazerem transportar para a câmara municipal de Amsterdão. O quadro não cabia na entrada e foi cortado nos quatro lados, o que fez com que duas figuras desaparecessem da composição.

Voltando a O Leopardo de Lampedusa, estudiosos de literatura italiana há muito que se ocupam de comentar a relação entre esse romance e o mais famoso dos romances de Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, outro texto que se tornou famoso por causa de um filme. Bassani aparentemente tinha um desprezo absoluto pela versão cinematográfica do seu livro, realizada por Vittorio de Sica. Ambos os livros são frescos de períodos conturbados da história de Itália, ambos falam de decadência e mudanças sociais, no caso de O Leopardo, a decadência dos aristocratas na Sicília no período do risorgimento, no de O Jardim dos Finzi-Contini, o horror que é imposto à comunidade judaica de Ferrara nos anos em que os fascistas promulgam as leis raciais que decretam a segregação dos judeus italianos. Talvez a grande diferença entre O Leopardo e O Jardim dos Finzi-Contini é que em O Jardim tudo o que muda jamais voltará a ficar na mesma, daí a melancolia definitiva das personagens de Bassani. Há qualquer coisa no meu livro de outra melancolia, a que vem da minha percepção do que é potência e energia desperdiçada (há qualquer coisa disso no poema “A segunda mulher do escritor,” por exemplo).

Na altura em que escrevi os poemas que agora compõem Leopardo e Abstracção eu estava muito obcecada, então, não com Lampedusa mas com Giorgio Bassani. Em 2016 a Penguin começou a publicar novas traduções de O Romance de Ferrara pela mão de um amigo meu, o poeta inglês Jamie McKendrick, e eu comecei a reler os livros nessa tradução. Mas parece não haver traço de Bassani no meu livro, mesmo quando falo de uma rua muito importante para ele em Roma, Via delle Botteghe Oscure, de onde a revista homónima tirou o nome e de onde um outro escritor – o francês Patrick Modiano – retirou o título de um romance seu. Às vezes pergunto-me como é que os escritores se contaminam uns aos outros, como é que as minhas conversas com os meus amigos que são escritores ou tradutores passam para os meus poemas, ou quais são as reconfigurações dos meus diálogos com certos livros e certas ideias no que escrevo. Isto importa-me porque sei que muitos dos poemas vêm daí, tal como sei que por vezes essas ligações são oblíquas e inexplicáveis, e que os poemas também não as tornam mais evidentes, tornam-nas presentes de outras formas ou complicam-nas ou tornam-nas noutra coisa. Isso passa-se no Leopardo, por exemplo, quando uma amiga, a Francisca, me deu uma cidade, Berlim, que aparece no poema “primeiro poema de berlim,” outro amigo ajudou-me a escrever outro poema quando me deu a ouvir as “Leçons des ténèbres” do Couperin, que é a música que dá título ao poema homónimo. Isto talvez também explique porque é que os meus poemas são mais inteligentes do que eu alguma vez serei.

Num dos últimos textos de O Cheiro do Feno, o último volume do Romance de Ferrara, Bassani fala do seu método de escrita e diz que sempre escreveu com grande esforço, às vezes dolorosamente, e muito por acaso, por causa de coisas que lhes foram dadas por amigos, não há nele espaço para grandes inspirações.

Por outro lado, sei que o primeiro e o último poema de Leopardo e Abstracção se lêem um ao outro e isso talvez tenha qualquer coisa do tipo de acidente criativo que vem da inspiração. O primeiro poema passa-se num aeroporto e o último numa cozinha, mas queria pensar que, se não são falhanços completos, ambos são sobre o trânsito dos corpos, sobre a extrema necessidade de vez em quando sermos habitados pelas nossas próprias ultrapassagens, de as reconhecermos com um aceno ao mesmo tempo de espanto e familiaridade, se é que isto faz sentido. São também sobre transfigurações, objectos que significam mais do que aquilo que parecem significar.

Diverte-me pensar que depois de muitos anos passados a queimar as pestanas com a história do império romano, talvez o meu grande contributo para a disciplina tenha sido ter conseguido reduzir alguns dos meus muitos problemas com a figura de Gaio Júlio Cesar, um dos últimos ditadores da república romana, à dimensão de um relógio de cozinha em forma de cabeça de gato que é baptizado com o nome do famoso general e que é o objecto que dá o título ao último poema do livro. Isto talvez seja um daqueles falhanços espetaculares, uma falta de educação até, em sentido literal, que, no entanto, acho mesmo que só pode ser ensaiada num poema. Não sei bem o que é que esta retroversão de um dos mais brutais generais de um regime imperialista, de onde em parte saiu a civilização em que vivemos hoje, diz acerca da relação de homens dotados de poderes despóticos com a suposta domesticidade inofensiva de uma cozinha, da nossa relação de um modo mais geral com o lado convencional da violência e dos papéis que nela representamos, dos modos em que somos partes dela ou a recusamos, ou das formas como a partir da reconfiguração dessa violência no mundo dos poemas se possa procurar pensar outras versões do mundo. Então talvez Gaio Julio Cesar seja sobre uma certa habilidade para amar as coisas apesar da violência do mundo, até da violência, que parece simples e banal, da mera passagem do tempo (os minutos de que tentei falar nesse poema são ao mesmo tempo minutos de alívio e perda). Para concluir, em jeito de spoiler, o meu mais recente relógio de cozinha chama-se Marius Julius Cesariny e é uma joaninha. Não sei o que é que vai sair daí.


Nota: Este texto foi lido na apresentação de Leopardo e Abstracção na Casa da Cultura no Porto, no dia 13 de Novembro de 2021. Eu não preciso de atravessar a baixa de Nova Iorque para ligar à Inês Morão Dias, malhas que o WhatsApp voice messaging tece – o que nos dá a ambas minutos ilimitados para gravar divagações surrealistas entre Oxford e o Porto, e devo confessar que é um pouco irónico ter sido ela a apresentar o meu livro, porque quando o livro dela, o Par de Olhos, saiu na Fresca, era suposto ter sido eu a apresentá-lo, o que nunca aconteceu. Sucede que veio a pandemia, e eu também nunca mais voltei a pensar em apresentar o Leopardo. Tendo viajado até ao Porto por alguns dias em Setembro passado, pensei que talvez fizesse sentido tentar fazer a apresentação. Queria agradecer à Inês ter aceitado o convite, ao Francisco e ao Nuno da Poetria terem incluído o Leopardo na belíssima colecção da Fresca e, finalmente, à reitoria da Universidade Porto a cedência do seu espaço para uma conversa em torno do livro.

Isabel de Sá. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

Mas o nosso amor resistirá
 às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
 da felicidade universal.

 

        Isabel de Sá, A Alegria da dúvida.

 

 

A beleza de um texto fala pelo seu fogo. É difícil explicar o fogo. “Porque sem beleza não se aguenta estar vivo” (p. 11) é o título do primeiro poema desta antologia de poesia de Isabel de Sá com organização de Graça Martins. De títulos surpreendentemente belos, feitos de imagens vitalíssimas que se querem dentro, que se querem saber de memória: é possível um poema transformar-se no tecido do próprio coração, como o ar o sangue, a poesia, tudo a transformar-se também em nós, no nosso próprio tecido, estamos também feitos de imagens, de histórias, como diria Mia Couto em O Universo num grão de areia (2019): “A humanidade nasceu em África. Mas podemos também dizer que a humanidade nasceu da capacidade de produzirmos e contarmos histórias. Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados” (COUTO, 2019, p. 27). E por isso ter os pés no chão é uma revolução e escrever é também caminhar, traçar uma rota segura, da poesia de Isabel de Sá poderia dizer-se, como Camus “escrevo como nado, porque o meu corpo assim o exige” (CAMUS, 1978, p. 87); os poemas de A Alegria da dúvida celebram um mergulho na vida em que tudo se mede através do corpo (enquanto escala humana e divina), celebrada através de uma reivindicação urgente no “poder redentor das palavras” (p. 23), na esperança como um mínimo relâmpago que ainda assim nos ilumina e ilimita por dentro; a sensação de fluidez é contínua e vital, na celebração da memória e do amor é que estes poemas nascem como constelações que se tocam, há por isso uma infância e um fogo e uma ressurreição contínua que atravessam, como se a nado, cada um destes poemas, e nisso as palavras são redentoras e são libertadoras; livres de constrangimentos, e de imposições linguísticas, e nisso se pode afirmar que a poesia de Isabel de Sá é livre, digna, verdadeira, transparente, nítida e concreta, e por isso tudo é bela, habitada pelo espanto e pelo estremecimento de imagens que nos enchem e humanizam no seu sentido mais pleno, no seu sentido criador, de verbo: “Tudo o que disseste / no desaforo da paixão / só podia incendiar a vida inteira / e encher de esperança o universo” (p. 31), a esperança é aqui parte indissociável do corpo e da experiência amorosa, que faz lembrar um verso, muito feliz e cheio do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “A poesia deste momento inunda a minha vida inteira” (ANDRADE, 1978, p. 16). É desta inundação (enchente de luz, de amor, de paixão, aguda, estrema e central), que os poemas de Isabel de Sá nascem, disso só podemos ter a certeza, como de uma esperança, redentora que nos cure da “mentira de um amor que acaba” (p. 35). É talvez para resistir à mentira de um fim que se escreve sempre, e nisso A Alegria da dúvida é um livro de resistência: resistência contra o acabado, o pré-feito, resistência contra o estéril e contra o vazio, resistência contra o medo e contra qualquer imposição, contra o ódio e o ignóbil, contra os muros de fogo e a injustiça. Escreve-se para resistir, para insurgir, para dizer eu sou sendo ao mesmo tempo tudo em toda a parte, escreve-se para celebrar e aproximar, para preencher com vida e para acender a vida: “Se a arte /não for insubmissa / se não permanecer / desobediente / e não escapar ao controlo / é o quê? // Se a arte / não for inssurrecta / se não permanecer / pedra viva escaldante / é o quê /a arte / se não disser eu sou?” (p. 37).

 

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

CAMUS, Albert. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1978.

COUTO, Mia. O universo num grão de areia. Lisboa: Caminho, 2019.

SÁ, Isabel de. A Alegria da dúvida: Antologia organizada por Graça Martins. Porto: Exclamação, 2021.

 

 

 

        Nuno Brito, 30 de Julho de 2021.

 

 

 

 

Três poemas do volume ‘Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020’ de Ricardo Domeneck

2001

 

Eu digo sim até dizer não

 

as circunvoluções
             e caprichos
        da atenção:
erguer a cabeça
e perder o sono 

            sopro
                   vento
             em que
                  uma primeira esfera
          de ar impele
                        outra ao movimento 

          ou em alto-mar
temendo menos a ausência
                  de resgate na superfície
que a povoação alheia
              e por isso informe, abaixo
n’água, invisível, mas parte
integrante das estruturas
do dia real 

    só a lucidez abre caminho
                  para o imaginário 

                            mas a carne insiste
                  no contínuo 

onde as pedras são comestíveis
          e exige-se a fome;
                           durante a transfiguração
             em que anjos e bandejas
        circulam seu jardim
                                é fácil salmodiar
providências e entregas; mas
         é com o linho enfaixando toda a
                    pele e a pedra
       separando esta caverna
da saúde do ar
            que se espera um Lázaro!
            Lázaro! e um segundo
         antes da asfixia
crer ainda
       que seja este o meu
               nome, seja ESTE o MEU
                             nome 

                    se cada folha parece
           percutir o sol hoje
e não se debruça do estame
                                              para o vazio  

                                  o mundo
                    é tão simpático 

           da montanha que fala resta
                  a mímica, da presença
o ventríloquo, de sua boca
o mapa que reconduz à porta 

               mão em mão com passos lentos

    mas foi Isaque a carregar a lenha
          nas costas, tomar o fogo e o cutelo
          na mão; e caminhou junto de seu pai 

     todo sacrifício é aparente e inútil, 

                              nenhuma
                árvore camufla
                            suas frutas:
                    as expõe
            ao pássaro, ao
                            chão, ao suco
                     na garganta, à recusa
                        do estômago 

            por
                          tanto 

         percorro os andaimes
                       de equilíbrio precário
                            :
                 ferro oxidável
                             saudoso
               de água 

              e a alegria de quem, na
obrigação de abater um novilho,
       espera que seu corpo, de repente
                   forte, sobreviva ao sacrifício, 

como uma garganta
enrijece-se rápida
para resistir à faca

*

2005

O poeta vai para o monastério

I.

como adormecer num longa
do Pasolini e despertar
num curta do Kieslowski;
e tem sentido, eu pergunto,
abstinência, parcimônia
polissílabas? se meu corpo
sempre foi teatro
do precário? êxtase
em ascese,
mas as extremidades
começam a cansar-me,
quem me dera
agora um dilúvio
na ponta dos pés;
a perda acopla-se
mas o oxímoro não
me acalma, ninguém
que preencha
meu ônus,
caminhando pelas ruas
como uma papisa,
uma diva, uma Kate
Bush ofendida,
cantarolando
“de longe sim flauta de luva”
para que não
se entenda que
entre dentes
cerrados invoco
(a primeira onda
sobre minha própria
cabeça) o
déluge sintflut dilúvio 

II.

derramo o leite no
chão de propósito,
firo,
furo os dedos
no garfo,
quero tanto
agradar e intuo
que Deus aprecia
desperdícios; assim
deslocado
como um peixe
n’água, olho
continuamente para
o teto à procura
das câmeras que
tornem oficial
meu protagonismo
nesta história,
pela manhã
o primeiro sussurro
sendo homem
ao mar homem
ao mar e só hoje
entendo minha
mãe gritando após
as surras “não
me venha
com esta
cara de Maria
Madalena
arrependida”;
ah o martírio
rosa de jamais
ter filhos que eu
possa chamar de
Abel
Rocamadour 
Luke Skywalker 

*

 

2007

Mula

                  Minha
senhora: os unicórnios
que caem com a raiz
não
voltam mais; ainda
que vangoghes
até que engasgues,
         sigo mula
a indiciar o caso
excepcional
do sem espécie,
self-archived tool, exílio
                 dos catálogos
a especificar o espaço
para a porcentagem da escolha
do puro, alheia que se agita
antes de abrir, dose cavalar
de juramento e
eguidade. Poupa-me,
Popeye: longe de mim
impor-me híbrida
à tua hípica - 
brutalmente homogênea,
especialista em fronteiras,
             eject de habitat,
eis-me, excelentíssimo,
a de cascos
             não retornáveis,
nula nulla
tal qual highbred hybrid
relinchando o já morto:
muslos de mulícia,
esterilizável, aureolar,
                 multívaga
             ambiquestre
     de mulas prontas,
perdoai vossa serva
preguiçodáctila aos berros
perturbando vosso áureo
piquenique do sublime,
           illicit mule
espirrando em vosso épico.
               Não
Blade
Runner
que resista
mesmo euzim
                         fake mullah,
insciente dos teus métodos,
ó sussurrável, hoof muffler
da palha do meu estofo.
Prometo-me estoica
           e subcutânea,
bem fazes em esporear-me
o couro catecúmeno à chuva
do teu cuspe, inestimável
senhor de eco intumescido:
       até que a mula
      aqui fale
como manda
o figurino,
e encontre a exit
de quem às caras
me dera lamber o mundo
com a própria língua: mulo
fundindo
       com a função da forma
os extremos do exorcício e
a fanfarra do sem categoria. 

*

Mesmo o silêncio gera mal-entendidos (Edições Garupa, 2021) antologia 20 anos de poesia de Ricardo Domeneck. O livro pode ser adquirido aqui. Achamos que este é um dos livros do ano em língua portuguesa e, em jeito de divulgação/ celebração, ao longo do mês de Dezembro partilharemos neste espaço mais alguns trabalhos de Ricardo Domeneck.