Os livros são de natureza mineral

Os livros são de natureza mineral. 
Alguns bebem-se outros se proliferam 
como água. Outros pedra, não fruta, 
rocha da onde brota a tua pele. 
Passa por cima uma formiga. 
Há capins vibrando 
vento e sol com sombra 
o musgo cresce, um mosquito 
entra na tua boca e você cuspindo 
cai na água que alguém 
numa cidade adiante 
distante, talvez 
sem mágoa 
vira a página 
bebe.

 

«Há dez anos que escrevo o mesmo poema»

Há dez anos que escrevo o mesmo poema
no mesmo café.
Esta ideia arrumada nesta cadeira triste
todos os dias no mesmo sítio.
Até que me venham bater à porta
ando meio distraída nisto. 

Falam-me da barbárie e dos seus irmãos brutos
mas ninguém falou ainda da flor de Coleridge
nem das pernas melancólicas dos meus amigos. 

Exceptuando isto penso no imenso com os dentes.
Penso num serviço de chá e numa porta de serviço.
Penso num chão absoluto no petróleo e na lixívia.
Penso na tua cabeça enunciativa e és um Rolls
às nove e meia da noite para toda a parte comigo. 

Exceptuando isto talvez não se morra e ninguém
desça à guerra e ao medo senão pelos livros.
Penso no amor e exceptuando isso está frio
e a mudança de hora e a jukebox
e contar-te os meus medos porque penso nisto há dez anos
que penso nisto. 

Cruz na porta da tabacaria e o teu cabelo
cortado à escovinha.
Há dez anos que desconfio do mesmo poema 

 

forma inteira do homem para diante
e de diante para o abismo

  

E poder ser livre e fumar na cama
com a excitação de arder numa linha. 

É que Sócrates nunca escreveu.
Milton ao menos fingia.
No fim de contas caía bem.
Um Kropotkin e uma bica.

E convicção ser do teu signo.
Porque uma coisa nos atraía.
Fome não era adição.
Erecção não era cinismo.
Porque havia motivo para risos. 

Tu nunca te atrasaste.
Tu nunca te mataste.
Porque enfim não mentiste 

que há dez anos que escreves o mesmo poema 

 

tu que só queres o sol
para descê-lo para descê-lo
ilha dos amores  

 

no mesmo corpo no mesmo casaco
apoiado à esquerda do meu braço. 

Pinguins e corações partidos

"Have your dreams changed over the years?" Perguntava DBG. E Dolores respondia: "Dreams get better, yeah! `Cause I’ve been there already and done that. And now sometimes when you dream you say, maybe there’s still something in the future for me. You have to have a goal. If you don’t have a goal, you’re lost. You always have to work towards something. I’m 76 years old and I’m still going forward."

DBG é David Greenberger e Dolores, assim como Rose Savala, Mimi Hunt, Ellie Castillo, Louis Hernandez, Jesus Gonzalez, Bettie L. Faith, era uma das pessoas que vivia naquele lar, na zona este de Los Angeles. "What are you working towards?" – perguntava novamente Greenberger.  E a resposta: "To learn to swim, I’ve never learned how to swim." A seguir era a vez de Bettie, que imaginamos sentada ali ao lado, no chão e em círculo. Seria a disposição mais óbvia, mas não sabemos. Bettie irá falar sobre tampas de bules que pareciam búzios, apanhadas aos molhos em pequenos charcos, e valas com pouco mais de 15 cm de profundidade usadas pelos agricultores para armazenar água, onde ela e as outras crianças costumavam ir nadar.

Duplex Planet começou a ser publicada em 1979. Greenberger, o editor/autor, estudara pintura, mas decidiu aceitar o cargo de director de um lar de idosos, o Duplex, em Boston, Massachusetts (EUA). A revista, com entrevistas, fotografias e registos das conversas com os utentes, surgiu mais ou menos na mesma altura. No site, Greenberger conta que o grande objectivo era que todos conhecessem aquelas pessoas como ele conheceu, torná-las familiares aos leitores e, dessa forma, combater alguns preconceitos:  "We, as a society, avoid looking too closely at people living near the ends of their lives."

O excerto aqui transcrito é do número 181, de 2005, que encontrei numa feira de edição independente. O tema são os sonhos. Greenberger vai introduzindo algumas questões – "did you have more [dreams] when you were younger", "what do you dream about" – mas, no geral, o que parece importar é o que aquelas pessoas têm para dizer. Tanto temos respostas breves – "mostly all the time I dream my parents. Dead people. Even my husband is there is my dreams too" –  de uma exactidão avassaladora, como longos retratos carregados de memórias, à maneira dessa torrente que é o stream of consciousness. Há uma sequência particularmente interessante. Francisco, um dos idosos, diz que já não sonha, apesar de haver uma série de coisas que gostava de terminar. "Do you think that’s part of getting older?" - Greenberger pergunta. E Franscisco: "What is getting old? How do you notice you’re getting old? Do you pray more? You can’t pick up something that’s a little over twenty pounds? Is that what it is? Physically I understand what’s getting old, but mentally, what is it?" O que quer que Greenberger tenha respondido, ficamos sem saber.

Ao longo dos anos, a Duplex Planet foi adaptada a várias formatos: gravações áudio, documentários, concertos e peças de teatro. Há ainda um livro, Duplex Planet: Everybody's Asking Who I Was, de 1994, com uma citação de Lou Reed na capa – "One of life’s little wonders. We’re lucky to have it" e entrevistas sobre temas tão aleatórios quanto os Beatles, Frankenstein, pinguins  e corações partidos.

Traição à traição de Antonio Gamoneda a Georg Trakl

Canção do Solitário

Oculto na harmonia é o voo das aves. Ao crepúsculo, em cristalinos prados violados pela corça, 
sobem glaucos bosques às cabanas silenciosas. 
 
Débil na escuridão é o rumor das águas. E as sombras húmidas 
 
e as flores do verão são tangidas pelo vento. 
 
Esplende na noite a cabeça do homem pensativo e a chama ténue do decoro arde no seu 
coração. 
 
Serenidade da ceia; porque o pão e o vinho estão sobre a mesa às mãos de Deus 
 e o teu irmão contempla-te do silêncio nocturno dos seus olhos, descansando das aflições do 
caminho. 
 
Oh, era uma morada celeste na medula da noite. 
 
Nos quartos, engolidos pelo silêncio em haustos de ternura, a sombra dos antepassados, os 
martírios fulvos, 
 
o lamento piedoso de uma estirpe que se extingue com o seu último descendente. 
 
Das negras horas da loucura, em umbrais de pedra, desperta mais radioso aquele que sofre, 
e é cercado com força pelo azul do orvalho, pelo resplandecente declinar do outono, 
 
pelo sossego da casa e pelas lendas do bosque. 
 
Eis a medida e o preceito, assim se ocultam os caminhos 
 
daqueles que se afastam na desmesurada paixão da morte. 
 
 
João Moita 
- traição à traição de Antonio Gamoneda a Georg Trakl 

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