AÇORES

“Sovente il sole

risplende in cielo”

  - Vivaldi (RV 117)

 

                                                                                    a Urbano Bettencourt

  

                        I

NOUGAT E GORREANA

 

Entre palavras o fio é retomado.

E doce é a entrega do encontro quente

essas mãos de apertada amizade.

 

Deitado em palhas

observa

o invejoso

o arranjo perfeito.

 

                        II

UMA VIZINHA COM ESTILO

 

Gata!

Uma espécie de leopardo das

neves

revestida de salgado marasmo

e lento tempo

desliza

 

não tem pressa.

O prazer traz entre as patas

e mia docilmente.

 

                              III

BANHISTAS DE OUTUBRO

 

A pele arrepiada do Outubro

submerge no líquido circular da ilha.

 

Nós aqui na esplanada frente ao mar

reencontramos o frio interior da espinha

como peixes que fomos.

 

Longe ela submerge para

dentro da nossa memória enquanto

à porta a nossa vontade espera.

  

                         IV

UMA ILHA CHEIA DE VIVENDAS

 

Vivenda Almeida Vivenda Botelho

Vivenda Soares Vivenda Maia

Vivenda Sousa Vivenda Melo

 

No presépio a rivalidade entre vizinhos

sempre foi muito intensa

Este é o meu palácio de dois metros quadrados

Este sou eu longe de ti, maldito!

 

No presépio as placas na parede de cimento

são sempre sinônimas de arame farpado

distância e chapadões.

  

                         V

ÓCULO DE BASALTO NEGRO

 

A Marquesa

senhora da alta elite

vai ao Teatro.

Hoje haverá Schubert e

notícias de Lisboa que

Dona Glória me trará.

 

Vestido o capote há que

espreitar através do óculo

o silêncio da calçada.

Não vá ela esbarrar com

Dom José de olhos gordos e

mãos ásperas.

 

“Se ao menos fosse pianista!”

  

                     VI

     O DIABO DA FOME

Vermelho sobre branco.

Um papel mais velho do que eu.

Queria ter desenhado este sangue!

 

O diabo semeador de misérias

corre pela ilha procurando vítimas

entre as 11 e a meia-noite.

 

Dona Josefa nunca sai de casa

a tais horas não vá a corrente

do diabo agarrar-lhe a perna.

Mas às vezes arrisca e segue

para casa do padre Rui.

“Não há peito peludo má linde!”

  

                   VII

À CHUVA E AO VENTO

 

Meu rico Santo Cristo

mudo-te as flores todos os dias

a lamparina está sempre acesa

meu pão meu senhor meu bom amor

faça de mim uma mulher justa.

 

Ao relento numa parede do quintal

o moço no quadro em lágrimas

reclama tão triste destino

desprezado à chuva a ao vento.

  

                         VIII

UM LAGO DE METROSÍDEROS

 

Num jardim já sem grades

D. Carlos e D. Amélia sentados

numa esplanada não

apreciam as mudanças

“Corre tão depressa esse tempo

hoje, já reparaste?”

 

Indiferentes à mudança os metrosíderos

reúnem-se no vazio do céu

deixam entre si

no meio do jardim

um lago de céu azul.

 

Combinaram entre si manter a memória

do lago circular que os homens

insistiram em destruir.

 

                   IX

O ELEFANTE CINZENTO

 

Muitos nichos quadrangulares retangulares

pés direitos muito altos

basalto negro e cimento branco

uma alta chaminé sobre o dorso.

 

O elefante caminha lentamente

tem mil pés de aranha

tão finos que ninguém os vê.

 

                                            X

MADRE MARGARIDA DO APOCALIPSE

 

Lembro-me do ano de 1988.

Havia crianças entre a entrada e o jardim

e eu morta conhecia ao fim de séculos

alguma alegria.

 

Na roda da dança havia sempre um

miúdo que olhava para mim

sentia-me viva.

Era o único que conseguia ver-me!

 

Hoje tento ir à janela mas não vejo ninguém.

Tenho por passatempo avistar o universo

na humidade das paredes mas confesso

que trocava esse universo pelo olhar

de uma criança um olhar vivo

um que me fizesse lembrar

padre chico       meu perdido amor.

Tatiana Faia lê o poema "Açores" de Vítor Teves
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Vítor Teves - Ribeira Grande


Para 2020

Paul Klee

Paul Klee

Para 2020, “torna-te o que és”!

Esta máxima, atribuída a Píndaro, está perfeitamente enquadrada na sabedoria apolínea, irmã, por exemplo, do célebre “conhece-te a ti mesmo” délfico (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Ela será retomada por Nietzsche, destacada no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: Wie man wird, was man ist (como vir a ser o que se é)

Para este pensador (nunca tremo ao designá-lo assim), todas as antropotécnicas são válidas para virmos a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade metafísica que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como encontro do impessoal que até certo ponto governa a nossa pessoalidade (considerada, com muita imprecisão, o “eu”). Mas não será Nietzsche o inventor do eremitismo heróico moderno, que em vez de esvaziar a subjectividade a amplifica até ao estouro? (Übermensch = super-homem) Não, essa é apenas uma velha e desajustada forma de o ler. Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, o sujeito é a soma de uma ficção linguística com um dispositivo religioso para manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento. E mesmo quando confrontado com aquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava não o ter lido seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, deve-se escavar o inconsciente e enchê-lo de uma consciência cada vez mais plena, pessoalizar o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao “si” (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais difíceis, ao ego.

Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?

Como: buscando a base da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem por aqui (estamos, quer queiramos, quer não, sempre num devir inexorável). Não ser de nenhum lado (o nacionalismo é tão arcaico que custa acreditar na sua sobrevivência), não ter nenhum nome. Os caprichos individuais substituídos pela biologia do sistema respiratório. Venerar também o inorgânico que somos, até porque essa será a nossa condição dominante futura.

Para quê: para amarmos outras coisas para lá de nós próprios, amá-las verdadeiramente, não como fazemos agora em modo boomerang. O verdadeiro amor só pode ser incondicional, e por isso acontece apenas em relação ao distante, ao mais distante possível. Não cabe nele, com certeza, o amor paixão (invenção recente) ou o familiar. Não cabe também, embora se aumente a distância, a amizade. Nem qualquer neo-humanismo. Começa a ocorrer no amor por outras espécies e outras formas de vida. Aproxima-se quando chegamos, por exemplo, ao reino mineral (em pura contemplação). Intensifica-se se amarmos uma estrela, não porque nos ilumina, mas porque a amamos em si mesma sem querer nada em troca. Finalmente, fica pleno quando amamos o nada. Aí tornamo-nos aquilo que somos, já que as forças afirmativas que nos compõem se libertam de qualquer resquício narcisista e aceitam, sem conflitos, patentes ou latentes, que também nós somos nada, a máxima potência da impessoalidade.

Claro, com isto vou contra a epistemologia, a ética, a política, a economia... Enfrento todo o magnífico senso comum que nos governa, sobretudo nos fins de ano. Mas enfim, ninguém se dará ao trabalho de me lançar bombas incendiárias.

Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche. Que na altura combatia o grosseiro fetichismo da importância última do eu, do eu acima de tudo, a derradeira hipertrofia do eu. Alimentado e exacerbado na viagem que nos trouxe dos primórdios da consciência até aos glutões do Planeta. Como pensava Nietzsche, à morte de Deus deveria seguir-se a do homem, desde homem, para que o sobre-homem possa surgir, até porque só ele conseguirá, verdadeiramente, amar o distante. Pelo contrário, sem superação do humano, as actuais sociedades imunitárias tenderão a ser governadas pelo absurdo, cheias de querelas de egos e de sem-sentido, festa da autodestruição.

Livros de 2019 (parte 2)

José Pedro Moreira

Modris Eksteins, Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, 1989 

Um estudo cultural sobre o mundo em mudança no princípio do séc. XX, desde a estreia do ballet Le Sacre du printemps até à ascenção de Hitler, e sobre como os grandes movimentos de massas que definem o período retomam os gestos ensaiados pelo Modernismo.

Nan Goldin, The ballad of sexual dependency, 1985

Uma sequência de fotografias que documentam anos vividos na margem da sociedade e o grupo, a “família”, que o olhar de Goldin capta. Pequenas narrativas vão emergindo: histórias de intimidade, de perda, violência, procura, amor.


W. G. Sebald, Austerlitz, 2001

O último romance de Sebald e talvez o seu melhor. Numa prosa contínua, sem parágrafos, o narrador conta uma série de encontros com Austerlitz, um historiador de arquitectura obcecado por estruturas de defesa, onde ficamos a saber a sua história, a sua infância em Gales, a sua relação com um dos acontecimentos históricos definidores do séc. XX.

Thomas Bernhard, Collected Poems, 2017

Um dos livros de poesia que me acompanhou este ano. Um Bernhard muito diferente dos romances e do teatro; uma voz mais lírica, mais exaltada e celebratória, menos resmungona.


Hannah Arendt, Origins of Totalitarism, 1951

Um estudo consagrado sobre como o totalitarismo acontece, como se estabelece e enraíza, usando o nazismo e o estalinismo como casos de estudo. Senti que era um livro que tinha obrigação de ler em 2019.

João Coles

The psychoanalysis of fire (Beacon Press Boston, 1968), Gaston Bachelard

Bachelard enriqueceu a filosofia e a ciência através do considerado inimigo desta última: a rêverie na literatura, ou a imaginação poética. Portanto, de um ponto de vista científico, apoiado em imagens literárias e em narrativas mitológicas, ou na chama delas, Bachelard esboça um estudo sobre o nascimento do fogo na história da humanidade e da sua componente libidinosa: toca em temas como hierarquia paternal e a desobediência inteligente, que será o impulso da coragem libertadora da curiosidade, a ansiedade de conhecer, o fogo sexualizado sem nunca (curiosamente) mencionar Freud, a fertilidade imaginativa do fogo na dilatação das ideias, o instinto de morrer e o de viver ou, nas palavras do autor, “o apelo da pira funerária”, entre outros. Um livro sobre os instintos; sobre o que se acende neste nosso cérebro de lagarto para o bem e para o mal; o que impele a natureza humana a querer conhecer e a auto-destruir-se: After having gained all through skill, through love or through violence, you must give up all, you must annihilate yourself (D’Annunzio, Contemplation de la mort).

O Tchekista (Antígona, 2012), Vladimir Zazúbrin

Em poucas palavras, o mais terrificante dos livros sobre a clandestinidade e o modus operandi do matadouro da Tcheka que traz a Srubov, o protagonista, grandes dramas morais. A violência contra a vida e a justificação incontestável das mortes pela revolução revela-se um choque para Srubov que se torna vítima de uma loucura febril. A transcrição de um dos telegramas de Lenine resume a sua desgraça: “Fuzilem sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis.”

PS: nomeada história de embalar do ano pelas várias associações e ministérios nacionais.

Il fascismo degli antifascisti (Garzanti, 2018), Pier Paolo Pasolini

Uma breve recolha de ensaios de Pasolini, escritos entre 1962 e 1975 em diversos periódicos, que nos dá luz sobre as diferentes evoluções do fascismo - culturais, linguísticas e políticas - em Itália. O rosnar de denúncia de Pasolini sobreviveu décadas e numa fase da nossa história em que os movimentos de extrema direita se agitam e ganham maior dimensão nos parlamentos, ler este livro e ler PPP assume-se como um acto corsário: compreender as formas anteriores do fascismo e do capitalismo que nos trouxeram aqui de forma a entender e lutar contra as suas novas mutações: ” […] o velho fascismo, ainda que através da degeneração retórica, distinguia: enquanto que o novo fascismo – que é toda outra história – deixou de distinguir: não é humanamente retórico, é americanamente pragmático. O seu objectivo é a reorganização e a homologação brutalmente totalitária do mundo.”

O uivo do coiote (Contraponto, 1996), Luiz Pacheco

Um conjunto de entrevistas reunidas feitas a Luiz Pacheco em 1985, 1988 e 1992, escolhidas, editadas e publicadas pelo próprio na Contraponto. Uma entrevista nunca é de uma autoria só, há dois intervenientes que guiam mutuamente os passos um do outro, improvisando quando necessário. E por isso poderíamos compará-la a uma dança: quando boa, parece que o par flutua; quando má, até nós sentimos calcados os nossos próprios pés. Mas estas pertencem a um bom tango. Enfim, este breve livro resume, como que em pequenas polaróides, a vida de um autor e de algumas das suas peripécias, da sua libertinagem, borracheiras, amizades e inimizades e “visitas” ao Limoeiro (não que fosse necessário contribuir ainda mais para o mito da figura marginal e desbocada de Pacheco), bem como da geração do Café Gelo. Podem contar nestas entrevistas com Luiz Pacheco sempre fiel ao seu estilo, cáustico quando necessário, com humor e larachas e mais larachas. Deste coiote solitário da literatura portuguesa - não digam escritor maldito que ainda vos chega à cara uma lambada pachecal vinda da orla do mundo dos mortos - esperemos ver num dia não muito distante a sua obra reeditada. Até lá, que nos nutram as bibliotecas.

A cidade das mulheres (Coisas de Ler, 2007), Christine de Pisan

Christine de Pisan (1364-1430) foi a primeira escritora, que até hoje se tenha conhecimento, a escrever sobre os direitos das mulheres e a insurgir-se contra a misoginia no mundo das artes na sociedade de Veneza do seu tempo. A cidade das mulheres de Christine (1404) em nada se assemelha ao La città delle donne de Federico Fellini, caso isso vos tenha ocorrido: quando Snaporaz entrou na pequena cidade governada por feministas saiu dali achincalhado, mas o que Fellini releva é uma sociedade desorientada e confusa. Christine de Pisan, pelo contrário, constrói uma cidade amena e racional, bem à moda do Renascimento, ao longo de passeios e diálogos com a Razão, Rectidão e Justiça, as três figuras alegóricas que a acompanham e preenchem a cidade de figuras femininas virtuosas sem as quais uma sociedade não pode viver: poetisas, intelectuais, santas e guerreiras: sejam exemplos Safo e Ortensia, Nicostrata, que teria inventado o alfabeto latino, e Leontina, que publicou escritos criticando Teofrasto, ou a força e coragem de Santa Catarina, Lampheto e Marpasia e todas as amazonas. Isto entremeado com conversas não tão inocentemente didácticas que pretendem desconstruir os preconceitos que Christine, mas não exactamente Christine nem apenas Christine, permitiu entranharem-se nos meandros da sua mente sobre o carácter vicioso e fraco da natureza feminina oriundos de um mundo predominantemente masculino.

Nota: enquanto editor da Enfermaria 6, permiti que o meu preconceito substituísse a capa da edição portuguesa por uma alheia e mais bela, nunca, porém, desconsiderando os meandros legais: ou seja, por decreto-lei de fealdade.

Scusate l’amore (Passigli Editori, 2013), Marina Tsevetaeva

Perdoem o amor , uma possível tradução para o título, é uma belíssima antologia de poemas desta autora russa do séc. XX que escreve despudoradamente sobre uma força, uma grande vertigem chamada amor. Tsevetaeva, numa poesia pejada de emoção, escreve de maneira ao mesmo tempo crua e lírica poemas sobre o cósmico e o grito surdo do amor a amantes, amigos e desconhecidos. No miolo maior do livro, a poesia de Marina entrega-se à urgência de amar, à necessidade constante de uma grande paixão (“tenho de ser amada de maneira absolutamente extraordinária para poder amar extraordinariamente”); são versos com uma sede de amor que precisa de ser renovada e consumada uma e outra vez e em todas formas: a paixão cega, o ódio pelo traidor sobre quem a vingança de olhos vermelhos se lançará, o ciúme pungente (“Como passas com aquela / fácil? Aquela sem traços de divindade? // […] logo tu que conheceste Lilith!”) e a vontade de se abandonar desprendidamente nos braços de alguém. A segunda parte do livro tem como protagonistas as vozes femininas de heroínas antigas e através delas fala-nos do amor impossível: da vontade de não querer mais sentir o corpo graças à violência do amor, como Fedra, que por um desejo exasperante (“uma úlcera em chamas”) suplica em vão a Hipólito algum alívio através de beijos antes de se suicidar; a renúncia de tudo ao corpo dem Eurídice que, contrariamente à tradição, não quer voltar para Orfeu e reviver de novo a dor; e a impossibilidade do amor divino numa sensual, erótica e ternurenta relação entre Maria Madalena e Jesus. O amor em Tsevetaeva é o desejo cego de consumar-se num fogo e depois noutro. Se o amor na sua poesia fosse o Etna, Tsevetaeva seria Empédocles.

Livros de 2019 (parte 1)

Ler furiosamente ou lentamente, mas ler. Ler por deleite ou para chupar informação, mas ler. Ler no quarto ou no comboio, mas ler. Ler com prazer ou com fastio, mas ler. Ler poesia ou prosa, mas ler. Ler todas as palavras ou ler na diagonal, mas ler. Ler contra ou a favor, mas ler.

É assim para os editores da enfermaria, um compromisso vital, quase biológico, com a leitura, porque sem ela a vida seria uma erro.

Numa subjectividade que não negamos ou ocultamos, cada um de nós faz a lista das melhores leituras de 2019.

Victor Gonçalves


La Faiblesse du Vrai (Seuil, 2018): um livro dentro do espírito do tempo que nos ajuda a pensar as implicações da pós-verdade. Myriam Revault d’Allonnes questiona as relações conflituosas entre a política e a verdade, monstrando que o problema principal da política não é o da sua conformidade à verdade, mas a forma como se constitui a opinião pública e se constroem os juízos de valor.

Uma Aproximação à Estranheza (INCM, 2017): Frederico Pereira acompanha o rasto e as marcas da estranheza, o seu processo de constituição em modo negativo e os traumas, pequenos e grandes, que se inscrevem em quem a sente. Como diz: “O uso da linguagem envolve o que Wittgenstein designa como a vivência do significado das palavras. Assim, percebemos que a sensação de estranheza decorre de uma interrupção ou quebra nessa vivência e não de algo intrinsecamente estranho na linguagem.”

O Pregado (1977/2011): Günter Grass é quase sempre magistral, apanha com uma facilidade divina qualquer lado do humano. Depois, imaginando e compondo novos mundos (poderosa escrita ficcional), sopra com vida mirabolante as personagens que coloca nos seus escritos. E isto também lhe permite trabalhar a língua em todo o seu esplendor. em O Pregado, como se diz na contra-capa, “Grass tece um interessante [eu usaria um adjectivo mais intenso] e hilariante estudo antropológico da cultura germânica desde o período neolítico até à década de 70”.

Tens de Mudar de Vida (2009/2018): Peter Sloterdijk é o melhor pensador da actualidade (digo-o sem forçar nada). Se quisermos saber o que se passa com o homem, sozinho ou acompanhado, sonhador ou trabalhador, consumidor ou ascético, vivo ou morto, temos de passar por ele. Este livro é sobre antropologia filosófica (daí a importância de se ter algumas bases filosóficas para o compreender bem), nomeadamente as antropotécnicas, isto é, “os procedimentos de exercitação mentais e psíquicos com que os homens das mais diversas culturas tentaram otimizar o seu estatuo imunitário cósmico e social face aos vagos riscos da vida e às agudas certezas da morte.” (Sloterdijk).

Sobre o Poder (2005/2017): Byung-Chul Han compete com Peter Sloterdijk para o lugar de pensador mais influente desta década. Mais sóbrio (no estilo e no manejo dos conceitos), desenvolve uma filosofia da frugalidade, anti-consumista e anti-capitalista, sem que seja, contudo, neo-marxista. É assim que a sua noção de poder, construída a partir dos pós-estruturalistas franceses, nomeadamente de Michel Foucault, deve centrar-se no que pode fazer para tornar os indivíduos mais livres e plenos e não nas técnicas, criticadas ou aceites, de domínio sobre o outro. Por isso diz: “É uma crença errónea supor que o poder opera unicamente inibindo ou destruindo. […] Um poder superior é um poder que configura o futuro do outro e não um poder que o bloqueia.”


Tatiana Faia

Patrizia Cavalli – My Poems Won’t Change the World (Gini Alhadeff, ed.), Penguin Books, 2018
Uma anedota famosa sobre Patrizia Cavalli, umas das mais importantes poetas italianas da actualidade, reza que durante algum tempo ela ganhou a vida como pintora e jogadora de póquer, e não necessariamente por esta ordem. Uma ironia mordaz e um sentido de humor tingido de uma ternura amarga lembram-nos que alguns poemas de repente nos podem tornar demasiado vivos à luz de algumas palavras, à força da representação de umas quantas situações. Há em Patrizia Cavalli a encenação de intimidades decadentes que brincam com as nossas fragilidades, com as nossas falhas morais e emocionais, e há qualquer outra coisa que é como uma inteligência cuidadosa que por gentileza se eleva acima disso e nos recorda que não somos tão óbvios como tudo isso. A poesia de Patrizia Cavalli é sobre a profundidade do humano.

Daisy Hay -Young Romantics: The Shelleys, Byron and Other Tangled Lives, Bloomsbury, 2011
Anna M. Klobucka – O Mundo Gay de António Botto, Assírio e Alvim, 2018
O livro de Daisy Hay tenta contrariar o mito dos poetas românticos como génios solitários, concentrando-se nos laços de amizade que uniram os jovens poetas românticos ingleses. O de Anna M. Klobucka revisita a vida e a obra de uma espécie de poeta tabu do primeiro modernismo português, António Botto, tentando reavaliar a sua relevância. De um modo ou outro, estes dois ensaios centrados sobre a figura de alguns poetas e sobre os laços que eles cultivaram tentam contribuir para que se escreva uma história mais exacta dos movimentos literários a que se referem. Pelo caminho, desarrumam o cânone, pelo menos um bocadinho, e isso não é pouco.

James Merrill – A different person, Knopf, 1993
Rico herdeiro de uma poderosa família milionária americana viaja até à Europa (pela maior parte mediterrânica) em busca dele próprio. Esta seria (e é de facto) a melhor descrição sensacionalista desta autobiografia de James Merrill, um dos maiores poetas norte-americanos do século XX. É difícil de explicar o quão impossível é de não se gostar deste livro. É sobre uma longa viagem conduzida às cegas, sem grandes planos ou objectivos além deste a que alude o título, de se tornar uma pessoa diferente, que termina talvez não com a descoberta mas com a aceitação de si próprio, com uma espécie de epifania sobre a alegria de estar vivo, que chega por prolongada exposição, em modo de tentativa, erro e ansiedade mais ou menos constantes, aos outros. 

Alberto de Lacerda – Labareda, Tinta da China, 2018
Alberto de Lacerda é um poeta que, como notava Pedro Mexia, não está particularmente identificado com nenhum cânone nacional. Nem especialmente identificado com a literatura de Portugal, nem com a de Moçambique, nem com a literatura de outros países onde viveu, a inglesa ou a norte-americana, talvez a pátria de Alberto de Lacerda sejam alguns outros poetas ao lado dos quais ele pertence. Poesia da paisagem e de quem nela vive, do encontro e do espanto, Labareda é uma antologia (relativamente) breve que colige alguns inéditos. Alberto de Lacerda escrevia poemas que são como artes de viver. E continua a ser um dos poetas mais raros do nosso cânone pessoal.

George Seferis – Six Night on the Acropolis, 2007
É o livro que estou a ler agora. Comecei a lê-lo em Julho, não longe da Acrópole, e perdi-o no caminho de volta a Inglaterra e tentei lê-lo numa biblioteca de línguas modernas, mas algures em Setembro o exemplar que lá estava desapareceu. Encomendei-o e levou seis semanas a chegar dos Estados Unidos, onde uma associação de gregos americanos, por qualquer questão de devoção que me ultrapassa, o mantinha em stock, e foi mesmo um dos poucos sítios em que consegui encontrar este romance do prémio Nobel grego à venda. Seferis é de longe mais conhecido como poeta, e tal como Kavafis, poeta de uma obra relativamente circunscrita. Num dos primeiros poemas que estão coligidos nos poemas completos, um homem pesa no colo o infindável peso de uma cabeça de mármore, a pesada herança de um país cujo presente não irá jamais traduzir as noções de glória que se atribuem ao passado. A vida de Seferis foi particularmente exemplar do nosso tempo. Refugiado da Ásia Menor, Seferis foi no seu próprio país, aquando da sua mudança para Atenas vindo de Esmirna, um estrangeiro. Este romance, Seis Noites na Acrópole, é sobre alguém jovem que, precariamente instalado em Atenas, se tenta encontrar a si próprio, entre um grupo de amigos literatos e diletantes, uma exploração do que poderá querer dizer isso, estar em casa ou estar em casa em qualquer parte do mundo. Um romance para hoje.


Vítor Teves

Diderot e a arte de pensar livremente (Círculo de Leitores, 2019) - Numa altura em que as figuras do século XVIII andam esquecidas (assim como muitos dos seus princípios), esta biografia ajuda a ressuscitá-las. Nela encontramos Diderot, um homem de pulso, a gerir toda uma enciclopédia e resistindo a todas as pressões do seu tempo. É um livro de leitura fácil, cheio de peripécias e humor, quer do tempo de Diderot, quer da sua vida pessoal. Interessante são as relações atribuladas com Jacques Rousseau, homem demasiado sensível, e com Catarina, a grande; assim, como o capítulo dedicado às suas mais importantes obras literárias: O sobrinho de Rameau e os diversos Salons. A ler.

Chalk – The art of erased Cy Twombly (Melville House Books, 2018) – Esquecendo polémicas à volta deste livro, esta pode ser a primeira e mais abrangente biografia até agora realizada sobre o artista norte americano Cy Twombly, falecido em 2011. Embora muito conhecido no meio artístico e literário, continua a ser um verdadeiro mistério. A biografia vem a esclarecer alguns pontos da vida obscura de Cy Twombly, com especial enfoque na sua vida amorosa, nomeadamente o seu relacionamento com Robert Rauschenberg e Nicola del Roscio. É uma boa entrada para quem quer conhecer um dos mais importantes pintores da segunda metade do século XX. .

Paradoxes de Robert Ryman (L’échoppe, 2018) – Este pequeno ensaio do crítico de arte francês Jean Fremón é um importante contributo ao estudo da obra de Robert Ryman, pintor falecido este ano. Fremón coloca Ryman na linha da iconoclastia – Plotino, Bizâncio, Malevitch – mas também em paralelo com a pintura norte americana dos anos 40/50 – Rothko e Newman (sobretudo). Interessante é encontrar um paralelo entre Beckett e Ryman, dois artistas que exploram o Paradoxo, um na escrita, o outro na pintura.  Numa época em que se fala de “pintura sem tinta”, Robert Ryman adquire uma importância extraordinária, como um dos seus principais precursores.

Hot, Cold, Heavy, Light – 100 Art Writings (Abrams Press, 2019) – O poeta e crítico de arte Peter Schjeldahl (1942 -) reuniu este ano, num único volume, os seus mais importantes textos críticos dos seus últimos 40 anos, exatamente 100 textos. Conhecido, sobretudo, pelos seus textos no The New Yorker, Schjeldahl reuniu textos publicados em diversas revistas, desde a Art Forum à Vogue. O livro está dividido em 4 capítulos, cada um correspondente aos binários Quente – Frio e Pesado - Leve. São textos de fácil compreensão, imaginativos e que prendem o leitor. É um excelente exemplo de boa crítica de arte, na linha dos poetas-críticos de arte Frank O’Hara e John Ahsbery.

Antologia dos Poemas (Relógio d’água, 2019) – Desde 2011 que não existia uma antologia de poesia de João Miguel Fernandes Jorge. Digo 2011 porque refiro-me à última Antologia realizada, a Antologia Açoriana. A deste ano tem a particularidade de trazer escolhas das últimas décadas, incluindo das obras híbridas (O próximo Outono e O Bosque). Preciosas são as notas e textos de Joaquim Manuel Magalhães, assim como alguns textos do próprio poeta. Esta pode bem ser a derradeira antologia e introdução à obra de João Miguel Fernandes Jorge, uma antologia que se destina, sobretudo, creio eu, a uma nova geração de leitores.

Anima Mea (Documenta, 2019) – A editora Documenta tem feito um trabalho extraordinário de divulgação dos artistas e pensadores portugueses. Neste ano de 2019 saíram inúmeros catálogos de enorme qualidade, alguns exemplos: o de António Bolota; o de João Jacinto; o de Manuel Rosa, o do Rui Sanches, etc. Entre todos os publicados escolho este de Alexandre Conefey, com textos de João Pinharanda e Maria Filomena Molder. Ambos os autores dispensam apresentações e a minha atenção recai sobre o texto de Filomena Molder, um texto pequenino, é certo, mas delicado. Depois de uma apresentação geral, Filomena passa para uma interpretação desenho a desenho; é aí que ficamos rendidos pela sua sensibilidade. Lido o texto, não conseguimos desprendermo-nos das suas imagens e palavras, este é o poder da boa crítica de arte.  





Dois fragmentos

Fragmento de: Como el ciervo huiste (Ed. Delirio, 2013)

Despliego las patas del carrito y le coloco la cesta en los enganches. Tu cuerpo no tiene ni un solo pelo y parece igual de pesado que una ensaimada o un vaso de leche, pero me cuesta levantarte con esta mano tan delgada; no obstante, una madre es una madre y ha de levantar a su criatura del suelo aun sintiendo cómo se le desgajan los filamentos de la muñeca. Según las pantallas que detallan los horarios y los recorridos de los autobuses, la última salida hacia la ciudad tuvo lugar hace un cuarto de hora, así que ya no hay vuelta atrás. Nos alumbra la luz oblicua de los focos que pivotan la estación: veo tu rostro fruncido y colorado por este frío que estremece los nervios, pero ya no tengo ninguna cosa más que adosar a tu cuerpo; ya te he dado los guantes, la palestina, el pañuelo; llevas hasta mis calcetines metidos por dentro del jerseicito mostaza, a ver si dejas de toser. Me froto las manos y toco tu frente: en efecto, está fría, y mejor será que nos marchemos antes de que aparezca el abuelo y nos arrastre de vuelta a casa. La ventisca retuerce las figuras que se levantan más allá del recinto y las piedras heladas me machacan la espalda.

Sigo adelante.

Empujo el carrito.

Para que esas piedras no caigan en la cesta y se hundan en ti como en una masa de harina, hago pantalla. Los zapatos me presionan los lados de los pies y me coagulan los dedos en la punta (salí a toda prisa de casa y barajé el calzado en la oscuridad). La coleta me deja las orejas al aire y siento cómo el frío me golpea y amorata los lóbulos.

Me acerco a la valla de la estación, se despejan los perfiles de los primeros edificios y brotan otros más lejanos. Freno en la carretera del pueblo: las calles están desiertas y el chubasco desintegra los límites de las cosas; y si tomo como referencia el espesor metálico de las nubes y la oscuridad del cielo, el chaparrón no menguará en las próximas horas. Tengo delante una plazoleta completamente deformada por la velocidad de las gotas, un horizonte de edificios más bien chatos, una pendiente sobre la que se escalonan los montes de Gardén, unos cuantos pisos con las luces encendidas y farolas que vierten un resplandor vacilante sobre la estatua de un alto mando militar, un columpio deshilachado y esta papelera donde ahora hundo las manos. Encuentro una lámina de cartón que voy a utilizar a modo de tejadillo, a ver si una ráfaga no me la arrebata y consigo resguardarme la cabeza. Quiero acariciarte, pero distingo una mancha lechosa a lo largo de mi antebrazo, me asusto y la froto contra la falda del vestido no vaya a ser que el frío la recrudezca; luego paso el dedo índice por una de tus mejillas, sin sentir pizca de calor, pero entendiendo que aún respiras debido a la nube de vapor que florece de tus labios.

Miro al frente.

Empujo el carrito.

Desde que quisieron deshacerse de nosotros, empujo el carrito. Experimenté cómo tus huesos golpearon las paredes de mi estómago y se hundieron a través de las ingles y ya no pude ni contemplar la rendición. Apareciste en el centro del mundo con los pies azulados, rociado de plasma y heces, tiritando en las manos del doctor como si tanta luz repentina te sobrecogiera. Al día siguiente, te llevamos a casa porque ya respirabas sin dificultad y tu peso era óptimo para un recién nacido; yo, sin embargo, estaba saturada de pinchazos, desangrada de cintura para abajo y afiebrada. En mi cuarto no había espacio para ambos pero, modificando la disposición del mobiliario, cupo una cunita de madera atiborrada de juguetes. Aquel día permanecí no sé cuántas horas viéndote zarandear los brazos en sueños y dar vueltas sobre ti mismo, como si te debatieras por arrancar del aire un objeto irrisorio, un caramelo o una piedra. Cuando desperté, con el vientre todavía dolorido, corrí hacia tu cuna para ver si todavía respirabas y te puse la palma de la mano sobre los labios. Eras cierto: vivías. Esa mañana te mudé el pañal, usando casi una docena de paños calientes y polvos de talco que me hicieron estornudar por culpa de la alergia, del nerviosismo, yo qué sé. Pasaron las horas, te di leche de un enorme biberón e hicimos la digestión recostados en la cama con un desplegable entre las manos.

De noche, escuché lo que dijo el abuelo: quería darte en adopción; a ti, sangre de su sangre concebida entre mis órganos más íntimos. Se había enfadado tras calcular la inversión que supondrías en pañales, papillas y demás, sin reparar en que yo hubiera trabajado por ti hasta romperme las manos, y estaba empeñado en dejarte en la puerta de un convento. La abuela le llevó un par de veces la contraria, pero todo acabó cuando él estrelló contra la pared un vaso de vino que imprimió un archipiélago morado en el blanco de la cal y dejó suspendida en el aire una nubecilla de cristales. Luego se impuso en la casa la ley del silencio. Y tú la transgrediste sin que yo pudiera evitarlo: por más que te apreté contra el pecho, estornudaste con energía.


Fragmento de: El mundo según la pupila de los pájaros

El chico está echado en una camilla, va disfrazado de oso panda y ha recibido una puñalada en el vientre.

Empujan la camilla dos enfermeros de porte atlético a través de la planta de urgencias del Hospital Clínic, Villarroel, 117, 08036, Barcelona. Aparece por el pasillo un médico vestido con una bata blanca y con un estetoscopio echado al cuello. Se hace a un lado para dejarlos pasar.

Al fondo de ese mismo pasillo, un segundo médico observa con apremio el avance de la camilla y mantiene abierta la puerta azul de doble balda del quirófano. Y ya en el quirófano, una joven practicante con cara de ratón, coleta y gafas plateadas, se ajusta un guante de nitirilo de color lavanda en su mano derecha, suelta el elástico y éste restalla sobre las venas de su delgada muñeca emitiendo un atmosférico “¡chas!”.

El chico recupera la conciencia poco a poco. Se había desmayado segundos después de recibir la puñalada. Zarandea la cabeza, se baba, le lloran los ojos, y la velocidad de la camilla le hace sentir el aire helado repasando su tabique nasal y su esternón huesudo y moteado.

Lleva el pecho al descubierto porque, cuando los enfermeros se lo encontraron acaracolado en aquel charco de sangre, lo primero que hicieron fue abrir el disfraz por la mitad con unas tijeras.

Las paredes y los techos se retuercen sobre sí mismos y se ciernen sobre él, como en el vientre de una casa de los espejos, y lo único que sus oídos sintonizan es un pitido continuado y chirriante que le provoca migrañas. Intenta responderse dónde está, pero en estas circunstancias se le hace imposible. La luz de los halógenos, los jadeos de sus ángeles salvadores o ese olor acre a pomadas que invade en todo el pasillo, son como trapos empapados en aceite que se escurren a través de la superficie escorada de su pensamiento dejando tras de sí una rutilante huella de espuma, grasa y roña. No puede ni aprehenderlos ni obviar su pegajosa presencia psíquica.

Se responde con otra pregunta:

-¿Dónde está?

Su mente se parece en mucho a una nuez: reconcentrada, furiosa, obsesiva. Comienza a repetirse machaconamente:

-¿Dónde está, dónde está, dónde…?

Lo cierto es que no ha venido ni se le espera.

Lo meten, por fin, en el quirófano, y de pronto lo envuelven una neblina dulzona y centelleos que brotan al azar de la penumbra. La practicante tiene ya dispuestos en una consola metálica las pinzas, el hilo de sutura, las agujas, las toallitas, una jofaina, guantes de repuesto, los alcoholes y los desinfectantes. Pronto se inclina sobre su vientre, iluminándolo con lo que parece ser una linternita de espeleólogo. Y él, al verla, se tranquiliza, porque es evidente que esa afilada cara de ratón no puede esconder malas intenciones. Así que emplea las pocas fuerzas que tiene en sonreír. Distingue un trazo de vix vaporú, pone cara de retrasado mental y piensa:

-No ha pasado nada, todo está bien; no pasa nada, todo está bien…

*

El conductor de la ambulancia arrancó a toda velocidad y, cambiando peligrosamente de carril, driblando a los ciclistas de porcelana y a los cuchillos de las motos, derrapó en la carretera inundada y aparcó frente al piso que le habían indicado, Carrer Sant Erasme, 10, 08001, Barcelona, dando un brusco frenazo. Las balconadas se llenaron de murmullos y de paraguas, no fuera a ser que el temporal se desatara. Era ya más de medianoche, estaban en abril y pronto sería sábado. El barrio tenía la hechura y el aspecto de una conejera desguazada. Todos los tejados goteaban.

Cuando los enfermeros vinieron de vuelta, el conductor distinguió un armatoste con hechura humana, de colores negro y blanco, que no cabía en la colchoneta, y sin tiempo para extrañarse, giró la muñeca e hizo contacto. Casi corrió un rally. De vez en cuando, miraba por encima del hombro y veía a los enfermeros afanándose por detener la hemorragia de aquel gigantesco peluche, desdibujados por las rayaduras del metacrilato que comunicaba la cabina con el remolque. No se paró a pensar, simplemente enfiló el carril a más de cien y evitó dar curvas a dos ruedas.

Minutos después, cuando vio la camilla atravesar el acceso de urgencias, se le ocurrió murmurar:

-Joder, ya solo falta que venga otro disfrazado de cazador.