Elogio da moderação e do feminino

Votos simples de bem-aventurado 2016, a parcimónia evita a chatice da ambiguidade.

I

Digamo-lo desde já: a moderação é uma forma de elegância. Intelectual e física, quem é moderado pensa, fala e age de maneira distinta do fanático, histriónico e grosseiro. Refiro-me, bem entendido, ao fanatismo religioso, mas também ao espírito do tempo baseado no consumismo, apesar da prosperidade actual (nunca os humanos tiveram tanto “poder de compra”, expressão que nos fará corar de vergonha dentro de algumas décadas), o sistema consumista tornou os humanos seres impacientes sem redenção. Procurar a felicidade através do consumo é como encher de água um tanque furado. Recuperando a ética aristotélica, vejo na moderação uma tranquilidade e um contentamento que resulta da saciedade provocada pela satisfação genuína com aquilo que se tem e se é (um ser-se em permanente transfiguração). A moderação aponta para o justo valor das coisas, a sobriedade voluntária cura a ansiedade que o desejo de acumulação, coisas supérfluas em geral, alimenta, libertando o humano para o bom prazer, a afirmação inovadora, a descoberta da beleza, a solidariedade dentro e fora da sua espécie. Um novo tipo de hedonismo que se afasta da moderação estóica, como quando Séneca diz: “Prefiro moderar as minhas alegrias do que reprimir os meus sofrimentos.” (Da Vida Feliz).

II

O lúcido texto de Tatiana Faia sobre a lei do piropo revela o libidinismo sexista que preenche muita mente pacóvia e, sobretudo, uma tradição machista que se manterá mesmo depois de se esvanecerem, por medo, os “piropos” de rua. É injusto que o feminino continue a ser esmagadoramente e constantemente subordinado, quando devia ser celebrado, elevado, pelo menos, à condição de igualdade com o masculino. Basta ver como na adversidade e na precariedade o feminino é superior ao masculino, nas sociedades mais e menos complexas. Ele está vocacionado para proteger em vez de destruir, perseverar em vez de resignar, amar em vez de odiar. Além disso, é mais belo.

Não um “belo como esplendor da verdade” (Platão) ou símbolo do bem moral (Kant, ligeiro desvio da também sua universalização da beleza desprovida de conceitos ou finalidades), menos ainda traçado a escopo a partir do pin-up model ou assente na ideia de “bizarro” de Baudelaire (“O belo é sempre bizarro”), ainda que, refere o poeta francês, um bizarro ingénuo, involuntário e inconsciente. Talvez tenhamos de regressar à beleza clássica, canónica, capaz agora de superar a banalidade para onde foi despejada por séculos de má repetição (imitar sem acrescentar). Um cânone que incorpore a irregularidade ou a discordância, como defendia Francis Bacon (“There is no excellent beauty that hath not some strangeness in the proportion”), onde, aliás, o autor de Les fleurs du mal se inspirou.

Mas talvez o significado de beleza mais adequado ao que disse sobre o feminino esteja em Stendhal: “La beauté n’est que la promesse de bonheur” (a beleza não é mais do que a promessa de felicidade).[1] Um “impulso para” firmado no comprometimento de que pela beleza emerge um mundo novo de felicidade sem apocalipse. Assim se compreende que Nietzsche tenha citado Stendhal contra Kant e Schopenhauer (Para a Genealogia da Moral), tenha confirmado que na beleza existe a possibilidade de uma felicidade ateia, materialista, ancorada neste mundo, na Terra. Uma felicidade que se busca num work in progress em vez de numa elevação miraculosa em direcção ao para lá deste mundo.

Que o feminino, o eterno feminino (Goethe), seja a beleza, e por ela a promessa de uma felicidade sóbria, inscrita sem astúcias na vida das coisas e dos seres. Bela como queria Racine: “[…] Belle, sans ornement, dans le simple appareil / D’une beauté qu’on vient d’arracher au sommeil […]” (Bela, sem ornamentos, no simples aparelho / De uma beleza que acabamos de arrancar ao sono; Britannicus, II).

 

[1] Proust, para retirar ainda mais a substancialidade à beleza, atacou esta palavra “promessa”, diz em “La Prisonnière” (À la recherche du temps perdu), depois de citar Stendhal, que o prazer pode ser um começo da beleza (“On dit que la beauté est une promesse de bonheur. Inversement la possibilité du plaisir peut être un commencement de beauté”)

A lei do piropo

NOTAS SOBRE O PORTUGAL PROFUNDO (E O PORTUGAL SUPERFICIAL TAMBÉM)

As reacções que se podem ler nas caixas de comentários dos jornais portugueses sobre essa lei com um nome tão castiço, acabada de ser promulgada (Lei do Piropo), se uma lei promulgada em Agosto pode ser descrita deste modo, são todo um documento sociológico, e não parecem ser um vindo de um país particularmente evoluído. Fiquemo-nos por um jornal com fama de mais ou menos civilizado, mau grado as crónicas de Henrique Raposo (de quem, escusado será dizer, aguardamos reacção). Bem entendido que trolls abundam na internet, e de todos os géneros. Mas, na verdade, talvez que o tipo de comentários que se lêem a esta notícia (para mais algo normalmente tão desinteressante como a aprovação de uma lei - who cares, really?) não esteja inteiramente desligado do facto de ser possível uma pessoa sentar-se durante 12+5/6 anos (secundário+licenciatura+mestrado) em salas de aula do sistema de ensino público português sem ouvir muito regularmente expressões como "igualdade de género". Portugal não é herdeiro, e as pessoas não precisam de ser convidadas a reflectir, sobre coisas como por exemplo aquelas que são capturadas impecavelmente neste vídeo escrito por Ricardo Araújo Pereira, no qual talvez caiba uma explicação do tipo de postura intelectual (ou falta dela) de que as nossas atitudes para com questões de igualdade de género são herdeiras. Mas a ignorância traz a felicidade, lá se diz, e nós portugueses apreciamos isso como ninguém. A nossa atracção por esse tipo de postura intelectual é persistente e difícil de explicar, como implícito, diria uma certa casta de perigosos alienados, na aprovação tão tardia de uma lei para sancionar uma prática tão inofensiva como esta.  

"Igualdade de género" é uma expressão não tão ouvida como necessário, porque, como sabemos, reflectir sobre esta expressão nunca levou a uma reflexão séria sobre nenhum aspecto vital da estrutura de uma sociedade, da igualdade e liberdade conferida aos seus cidadãos (e toda a gente sabe para além disso que estas coisas não precisam de ser examinadas, é uma questão velha, a ficar cada vez mais ultrapassada). Para mais, Portugal é uma sociedade impecavelmente saudável. 

"Piropo", no entanto, essa palavra que designa uma série de expressões que (como não?), toda a mulher se devia sentir honrada de ouvir, é, no entanto, passível de ser ouvida em toda a parte. Ora, por exemplo, se vocês nunca foram uma menina de 12 anos de idade, que no caminho para a escola tivesse de atravessar por um prédio em obras, recomendo-vos a experiência. Mas tem de ser no corpo de uma menina de 11 ou 12 anos, porque se não, não é possível apreciar totalmente o efeito da arte deste grupo de poetas tão negligenciado e agora tão injustamente criminalizado (talvez não fosse tanto o caso de aprovar uma lei para matar a dita arte, mas antes de compilar os melhores ditos, ou talvez que a compilação dos melhores ditos, agora uma vez posta por escrito, tenha levado à morte da arte pela lei, com as tradições orais é sempre difícil de dizer). Mas o piropo permitia à mulher ter acesso a um primeiro inventário para expressões nunca antes ouvidas e isto vai-se perder (como por exemplo "casaco de cuspo" e outras uns furos mais abaixo), proferidas por todo o macho numa escala etária entre os 13 e os 70 (é um país de tanta virilidade). Aos 18 anos olhando as meninas de 11 fazer o mesmo percurso, muitas destas raparigas já mais ou menos conformadas a este aspecto tão rico da nossa cultura, restava-nos desejar a estes espécimes do homo sapiens que tivessem filhas. Aos 22, uma rapariga entende que não. Aos 22 anos, uma rapariga imagina todo o tipo de coisas, por exemplo, pode entender melhor o arrepio de nojo que certas expressões lhe causam (num país a caminhar a passos largos para produzir a geração mais bem preparada que alguma vez teve, há a forte probabilidade de uma rapariga nunca ouvir este tipo de expressões a um namorado, ou de ouvi-las apenas se houver um mútuo consentimento - questão mais ou menos acessória no que envolve mulheres, dirá um certo tipo de poeta), e uma rapariga nessa faixa etária pode imaginar a educação que estes homens tiveram, pode mesmo perguntar-se se o piropo é sintoma de alguma coisa (claro que não, apenas uma brincadeira inocente). E pode imaginar que tipo de educação estes poetas podem perpetuar nos seus filhos e filhas, e só pode mesmo sentir-se agraciada e agradecida por ver-se objecto de um tal destaque, afinal é tudo uma brincadeira, e é isso o que uma rapariguinha, como sublinhado por estes machos lusitanos em caixas de comentários que vão do Expresso ao Correio da Manhã (sem grande distinção entre o que imaginamos ser o tipo de leitor que frequenta ambos os jornais), devia sentir. Esqueçamos a discussão sobre se é lícito um indivíduo ter o direito de decidir modelar noutro o que é uma resposta adequada a determinada situação (o que fazer se não aceitar o tão inofensivo piropo?), ainda que contra a auto-determinação deste. Toda a gente sabe que deste impulso básico só têm saído benesses sociais: todas as que habitam o espectro que vai dos inofensivos miúdos bem comportados até quarenta anos de salazarismo. Evidentemente que isto é um exagero, para mais sobre uma coisa tão inofensiva como o piropo.

Ora, desde tempos imemoriais que o piropo é uma arte assiduamente cultivada, quase uma tradição, que é uma pena perder-se, só para que o mulheredo desse país, de resto acostumado por anos de prática, agora se possa revoltar. Possa, como as rapariguinhas de 11 até às mulheres de 50 sempre imaginaram, fazer alguma coisa sobre isso se se sentir profundamente insultada (violada psicologicamente?, por amor de deus, toda a gente sabe que isso é parte do que especialistas na questão têm designado por "a grande conspiração das mulheres") por determinado tipo de comentário. E num país que não melhora só por si, talvez o hábito de legislar para proteger o seu corpo de cidadãos venha - imagine-se! - a revelar-se um exercício saudável de reflexão para ambos os géneros.

Em tudo o resto, desejo-vos filhas, um mulherio que possa caminhar respeitável e livremente pelas ruas das cidades desse país. Evoé, como diriam as Bacantes nos seus delírios, celebremos 2015, em que Portugal parece ter finalmente deixado de ser um país do século XIV, entre outras coisas porque esta lei permite que práticas de assédio sexual, apenas abrangidas pelo código do trabalho, estejam agora também abrangidas pelo código penal. Em Portugal, o assédio sexual não era entendido como um crime de prisão? Porquê? Porque não há evidentemente nada de traumático em uma menina de 15 anos ver-se perseguida por um simpático senhor com idade para ser avô dela, que apenas deseja informá-la que lhe comia a cona toda. Só faz bem começar a ouvir isto desde cedo, ainda que de modo não solicitado (não solicitado? como é que ela estava vestida?). 

Importa aqui explicar que a lei não visa sancionar o inofensivo piropo, mas antes aquilo que nele e noutro tipo de comportamentos verbais, não apenas exercidos sobre mulheres, possa cair na definição de assédio sexual. Sem dúvida, algures há aí um desses poetas que sentirá falta de declamar as suas poesias para rapariguinhas de 11 anos (não que para mulheres de 30 seja melhor, mas em certas coisas convém ser o mais explícito possível), e que se poderá queixar que num só ano Portugal se tornou num país onde os paneleiros não só se podem casar como ter filhos (vai ser só pedofilia, já se sabe), onde as mulheres podem abortar legalmente, e agora um homem se vê ainda mais diminuído nos seus direitos.

Mas tudo isto nos devia dar uma fezada neste Portugal dos anos de crise, jardim à beira mar plantado, a tentar caminhar na direcção certa muitas vezes pelos motivos errados (há aí uma porção de gente que diria, havia outros debates mais urgentes), mas que se lixe, rapariguinhas de 11 anos desse país, e o mulheredo ingrato que não aprecia um elogio bem mandado, agradecem-vos, com o sentimento de que a febra finalmente terá a brasa que sempre mereceu, poupando as ditas mulheres de ter de proferir outra expressão que é todo um outro tratado sobre questões de igualdade de género e o modo como elas recaem sobre o sexo oposto, "vão para o caralho, seus grandes filhos da puta". Com esta lei, Portugal dá um passo difícil em direcção a uma não-questão, a igualdade de género. Extremamente improvável para Portugal. Sem dúvida a esta catástrofe não é alheio o facto de se ter atascado a Assembleia da República de mulheredo, mulheres com quem não gostaríamos de casar (embora agora, promulgada a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, se quiséssemos, pudéssemos). Mais um assalto bem-vindo aos valores da nossa sociedade. Elena Ferrante escreve no primeiro volume da trilogia napolitana, a propósito de Dido e Eneias, que se o amor é exilado das cidades, a sua boa natureza transforma-se numa má natureza. O amor, escreveu Anne Carson algures, só funciona se houver igualdade. Este não é um passo acessório porque é um passo nessa direcção. E conta sobretudo como um passo que chama a atenção para uma das muitas formas em que esta falta de igualdade se expressa.

Evoé! 

Despeço-me com uma elegia norte-americana aos poetas de piropos deste mundo. Para quem possa ter duvidado que estamos a lidar com uma arte cosmopolita.

Ser alfarrabista pode ferir de morte

O inferno dos alfarrabistas não deve ser muito diferente disto. Um alfarrabista chamado senhor Fernando, anafado feirante que nada percebe de livros para além dos preços, despido da cintura para cima a construir um monte de papel com o auxílio de uma cerveja média e uma pá de pedreiro. A cena teve lugar numa das inextinguíveis tardes de quarenta graus oferecidas pelo verão, no armazém de um carroceiro que dá pelo nome de Adérito, um carroceiro que, munido de não mais de uma nota de cem para gratificar viúvas, limpa as casas dos finados da região. 

Antes de abrir uma livraria, acreditava, néscio, que alguns dos alfarrabistas que me habituara a ver pelas ruas de Lisboa tinham qualquer coisa do velho Mendel, o alfarrabista judeu vienense criado por Zweig. Poucas semanas (o tempo que levei a frequentar alguns dos locais por onde andam esses homens) me chegaram para perder qualquer visão romântica. Quando não está a esvaziar apartamentos ou a engrupir o transeunte com as suas fabricadas raridades, o senhor Fernando, ou os senhores Fernandos (que não são todos os alfarrabistas), podem ser encontrados na tasca a emborcar cerveja e a arrotar historietas versando ora sobre o cliente embarretado com um livro de cem euros, ora sobre o alfarrabista rival, que, em consequência de não ter nascido a chamar-se senhor Fernando, nunca percebe nada de nada, nem presta para o negócio. Quem presta? Quem compra bibliotecas de pelo menos quatro mil livros por valores nunca superiores a uma notita, quem obtém lucros exorbitantes com livros adquiridos ao quilo. Como haverá quem pergunte se não é legítimo ser senhor Fernando, viver da trapaça, orgulhar-se de passar a perna e de não ter precisado de ler um livro para levar a vida avante, esclareço que não há mal, que tudo é legítimo, que ser senhor Fernando é actividade louvável, ainda mais na África da Europa, onde a simples existência de livros parece milagre. Abri uma livraria a precisar de lavar a alma, a suspirar por civilização, e é com essa necessidade ainda mais acentuada que, dois anos depois, encerro actividade. A FNAC, que tantas e justas vezes é criticada pelos apreciadores de livros, pelos que não se limitam a suspirar pelas novidades ou pelo que é promovido pelos suplementos culturais, aparece-me ultimamente como um dos últimos bastiões civilizacionais de uma terra condenada à selvajaria. Perdido na multidão, entre as mil estantes recheadas de livros novos, não sinto o peso da provinciana maledicência, do sorriso enganador do senhor Fernando, sinto-me mais próximo de ser quem sou, alguém que lê. 

Privei, durante a licenciatura, com um alfarrabista com muito de Mendel. Ausentava-se da sua livraria por dois motivos: para almoçar e jantar no restaurante do prédio ao lado ou para uma consulta médica. Admirava-o pelo desprezo com que tratava os imberbes estudantes que lhe tiravam os livros do sítio ou que se passeavam às risadas dentro da sua livraria. Lembro agora, não sem imensa nostalgia, um dos livros que esse alfarrabista me ofereceu, A Cultura Integral do Indivíduo, de Bento de Jesus Caraça. Uma leitura que antecedia outras leituras que me tornariam mais Homem. Com esse alfarrabista aprendi que, se não desejamos ser confundidos com primatas, é importante beber o chá, apertar a mão aos amigos, ler o jornal. Presumo que respeitar o espaço dos outros, o mundo dos outros, uma livraria, nos distancie da brutalidade animal. Presumo ainda que é a nossa força, uma força cada vez mais educada, aclimatada à palavra escrita, que nos permite perceber que os senhores Fernandos fazem parte de um caminho, quiçá errado, mas essencial para ser maior.

Mensagem de solstício de Inverno

Já quase todos repararam que o Natal é a forma cristã de celebrar o solstício de Inverno, recuperando ritos antigos de júbilo pelo início do contra-ataque ao domínio da Noite. A partir daqui, o Dia vai, lenta mas inelutavelmente, ganhar terreno à obscuridade, o Sol vencerá a Lua, a Luz as Trevas. Tudo retornará, é verdade, mas por enquanto estamos felizes pelos pequenos ganhos diários da claridade.

Este ciclo astronómico tem inúmeras similitudes, por exemplo na dicotomia Romantismo (noite) / Classicismo (dia), espaço rural (noite) / espaço urbano (dia), mentira (noite) / verdade (dia). Talvez grande parte das relações dialécticas encaixem nessa primeira evidência de contraste que os pais fundadores da humanidade, vivendo-a mais do que reflectindo sobre ela, tomaram como paradigma de uma vida que quis ser, na Terra, polifónica, alimentada por dissensos insolúveis.

 Nesta época, talvez reverberando o que acabo de expor, temos por hábito criar mais uma dialéctica: o que repetiremos no próximo ano civil / o que extinguiremos nesse mesmo período de tempo. Ficará o que julgamos iluminar-nos, desaparecerá o que julgamos obscurecer-nos. Claro que os enganos e os incumprimentos fazem legião. Mas fica a intenção, no limite o ser humano é um ser de intenções, derrotado como sempre será pela morte (noite).

Quero, contudo, deixar uma vontade de nova moralidade, que é como quem diz: destacar o que mais nos encanta. Faço-o citando o ateu evangélico (um dia explico esta quase-contradição) Friedrich Nietzsche:

 “buscamos aqueles cuja existência é para nós uma alegria e encorajamo-los, enquanto fugimos dos outros – eis a verdadeira moralidade![1]

Aproximação (dia) / afastamento (noite). Mas apenas à noite podem brilhar as estrelas, e, ainda com Nietzsche, a vida só vale a pena se houver a intenção de criar uma "estrela dançante".

 

[1] “wir suchen die aus, die uns Freude machen und fördern sie und fliehen vor den Anderen — das ist die rechte Moralität!” (FP 1880, 6[23])

O fogo do verso

À hora em que se lava o chão dos talhos
da bílis que sobra da morte
e no céu se rasgam dores
a que as estrelas hão-de dar cautério, penso
na melancólica carne que despes
diante de mim como um fato de tumulto
Penso na tua pele vertida e no brilho
inverso, nas cores que desbotam
nas montras como alguma
há muito tempo exposta
natureza-morta

Sei que amar-te tem que ver com isto:
O camião atravessando à noite a auto-estrada
com os lívidos espíritos de porcos
que se precipitam na cinta das cidades
A polpa triste de um beijo
a acender o coração, cansado
de ser metáfora

Amar-te tem que ver com esta imagem mansa
do terror, contemplada
à distância e a alguma velocidade. Aproxima-se
da desolação da prosa e não,
como se salvaria o mundo, do fogo do verso