Obrigado! Feliz 2014!

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André Simões, Carlos Alberto Machado, Catarina Costa, Frederico Pedreira, José Pedro Moreira, Luís Ene, Maria Sousa, Miguel Monteiro, Nuno Quintas, Patrícia Lino, Ricardo Domeneck, Rodrigo Lobo Damasceno, Bruno Alves, Helena Bento, Hugo Pinto Santos, João Moita, Hugo Milhanas Machado, Paulo Kellerman, Pedro Bernardo Costa, Ricardo Ávila, Catarina Barros, Samuel Filipe, Tatiana Faia, Paulo Rodrigues Ferreira, Victor Gonçalves, João Coles, Dirceu Villa, Reuben Da Cunha Rocha, João Alves dos Reis, o nosso obrigado.

E obrigado aos nossos 7 leitores.

Para todos um feliz 2014!

Alienação

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                                                                   © sonja valentina

- Para que serve a caixa de fósforos?

Era a quarta vez que ele dormia lá em casa. E como em todas as outras ocasiões, tivera um pequeno gesto que a intrigara: colocava na mesinha de cabeceira, à distância da mão, o telemóvel e uma pequena caixa de fósforos. Desde o primeiro momento que sentira uma enorme empatia e cumplicidade com ele; mas a cada dia que passava, a cada conversa, a cada abraço, a cada sorriso, sentia que estava mais próxima de se apaixonar irremediavelmente; com ele, sentia-se acompanhada e compreendida, apoiada, mimada. Sempre receara a palavra mas, por vezes, dizia-a a si própria, baixinho, embrulhada num sorriso: sentia-se um pouco amada. Quando passavam a noite juntos, tudo corria com uma naturalidade que a inebriava; não acontecia nada de extraordinário mas sabia que a verdadeira felicidade era composta por banalidades; o que importava era que cada uma dessas banalidades fosse partilhada com a pessoa adequada; não interessava tanto o acontecimento mas a companhia. Tudo corria bem, portanto; e apenas aquela insignificante mas enigmática questão da caixa de fósforos na mesa-de-cabeceira a impedia de se apaixonar definitivamente; era um foco de incerteza mínimo e inexplicável, quase disparatado; mas que existia.

E por isso, perguntou. Tinham jantado, tinham visto um filme, tinham rido, tinham conversado, tinham feito amor. Depois, ficaram enroscados, partilhando o calor e a penumbra do quarto; tão próximos quanto possível, os corpos aconchegados e entrelaçados, escutando e cheirando a presença do outro; lá fora, chovia com intensidade, talvez se aproximasse uma tempestade. E ela perguntava-se: será demasiado cedo para lhe pedir que venha viver comigo? Perguntava-se e queria perguntar-lhe. Mas havia a presença da caixa de fósforos a perturbá-la, ali mesmo ao lado; um foco de apreensão que poderia contaminar a sua felicidade. Não resistiu a perguntar, portanto: para que serve a caixa de fósforos?

Quando ouviu a pergunta, o corpo dele não se manifestou, não denunciou contrariedade ou receio. Não viu o seu rosto mas suspeitou que talvez tivesse sorrido; e isso serenou-a.

- Não receias a escuridão? -, perguntou ele.

- A escuridão? Claro que sim.

- Eu também.

E depois explicou.

- Penso nisso muitas vezes, há muitas perguntas que me bailam no espírito. Por exemplo. Como conviver com a escuridão? Não tanto com a escuridão que nos envolve, a escuridão do mundo, mas principalmente com aquela que existe dentro de nós, que trazemos connosco, que alimentamos e perpetuamos pelo simples facto de estarmos vivos; como aprender a conviver com ela e torná-la uma presença positiva e construtiva? Penso nisso, por vezes. E preocupo-me um pouco com esse eterno duelo entre luz e escuridão, que é travado no interior de cada pessoa. Afinal, de que é feita a luz? Como se forma, como se multiplica e reproduz? De que se alimenta, como se alimenta? E, no fundo, como a reconhecemos? Nunca te interrogaste sobre isto? Nunca te perguntaste: que parte de mim é feita de luz? Nunca te perguntaste: e se um dia, sem querer, permitir que esta luz que existe em mim se extinga e desapareça? Como seria viver na escuridão? Para onde nos empurraria, de que forma nos condicionaria? Afinal, porque vivemos tão obcecados pela busca da luz?

Começou a sentir-se desconfortável com aquele inesperado discurso, quando na verdade esperara uma explicação disparatada, que a fizesse rir; escutava-o e sentia que, de repente, ele se transformara em algo diferente (no seu verdadeiro eu?), como se se esquecesse dela e falasse consigo próprio. E era desconfortável porque sentia como se estivesse a surpreender alguém que se imaginava sozinho, que fazia algo que nunca faria se se soubesse acompanhado, observado, avaliado, julgado. E escutava a sua dissertação sobre luz, sério e pomposo, quando, subitamente, se fez sentir o primeiro relâmpago da anunciada tempestade, invadindo inesperadamente o quarto com uma luz fantasmagórica durante um fragmento de segundo; e apeteceu-lhe rir, na verdade custou-lhe um pouco engolir o riso. Mas ele nem reparou na sua ameaça de riso ou no relâmpago, de tão embrenhado que estava na sua seriedade.

- Preocupo-me com a ténue fronteira que existe entre luz e escuridão; em tentar perceber onde começa uma e termina a outra. E a verdade é que não podemos fugir à escuridão, não podemos fugir àquilo que somos; e, do mesmo modo, não devemos procurar a luz no exterior mas dentro de nós próprios. Por isso, é importante conseguirmos ver para além de nós, afastarmo-nos, para nos vermos melhor, para nos conhecermos verdadeiramente. Já tentaste fazer isso? Ser espectadora de ti? É preciso perceber que a verdadeira luz reside em nós, é em nós que temos que a encontrar e, depois, protegê-la, alimentá-la, perpetuá-la. E é aqui que entra a simbologia da vela. Nunca te falei disto, pois não?

Vela? Devagarinho, o desconforto transformou-se em incómodo. Sentia-se distante e sentia-o distante, como se lhe fugisse; como se estivesse a assistir a uma espécie de alienação, a uma entrada noutro mundo. Um mundo – o seu verdadeiro mundo? – que a excluía, de que na verdade não queria fazer parte.

- É como se trouxéssemos uma vela acesa dentro de nós, que devemos cuidar como algo precioso e vulnerável; uma vela encaixada entre o fígado e o estômago e as costelas, frágil e periclitante como apenas uma vela pode ser. Consegues imaginar isto? Uma vela que nos ilumina interiormente; e se alguma vez permitirmos que se apague, extingue-se a nossa luz e seremos apenas escuridão interior. Esta vela ilumina-nos e guia-nos, se desaparecer é como se ficássemos cegos; apagamo-nos por dentro e deixamos de ver, sentir, ser. Percebes? É uma pequena luz mas, por mais minúscula que seja, faz toda a diferença na imensidão da escuridão. Basta um pequeno foco, que depois poderá sempre crescer, para aniquilar o poder da escuridão; um foco que é um início, um ponto de partida; e uma forma de resistência, também. Nunca poderemos, portanto, permitir que este foco se extinga. Este foco, esta luz, esta vela metafórica, é, no fundo, a nossa alma. Aquilo a que chamamos alma.

- E a caixa de fósforos?

- Um outro símbolo, claro. Andar sempre acompanhado por uma caixa de fósforos é um forma de nunca esquecer que a minha vela interior é frágil, exige o meu esforço e empenho permanente para se manter acesa. É uma segurança, também; lembra-me que detenho as ferramentas para me manter sempre iluminado. Enfim, tenho consciência de que tudo isto é uma coisa um bocado esotérica, um bocado simbólica. Aceito isso. Mas todos temos os nossos pequenos e inofensivos estratagemas para manter um certo equilíbrio, não é?

Ela ficou calada, sem saber o que responder. Sentia o corpo dele (o corpo iluminado dele) envolvendo o seu e pensava: isso não é uma coisa um bocado esotérica, é uma coisa profundamente estúpida; não é uma forma de manter um certo equilíbrio mas a manifestação de um enorme desequilíbrio. Pensava: é muito simbolista, este homem; ou será simplesmente doido? E de repente (é impressionante como estas coisas acontecem sempre de repente), percebeu que se tinha enganado totalmente, que se tinha iludido infantilmente; percebeu que tudo aquilo fora uma forma de fuga à realidade, uma alienação. (Afinal, a alienação é uma fuga ou uma procura?) Claro que não estava apaixonada. Como seria possível estar apaixonada por um homem que, depois de fazer amor, fala de velas interiores e caixas de fósforos metafóricas? Como fora possível percebê-lo tão mal? Na verdade – uma verdade que compreendia enquanto ele ainda a abraçava –, não houvera empatia e cumplicidade nenhuma, apenas ilusão e equívoco, fantasia; carência. E um pouco assustada, questionou-se sobre o que teria acontecido se não tivesse perguntado pela caixa de fósforos; ficariam abraçados, foderiam ao som da chuva e acabaria por lhe pedir para se mudar para sua casa. Passaria, então, a viver com um homem que oculta uma vela perto do fígado. E ao pensar isto, não quis conter o riso. Pensou: afinal, a caixa de fósforos, que para ele representa luz, fora o único ponto de dúvida, o foco de escuridão, que corroera a claridade ilusória em que me deixei envolver. E riu, riu tanto que teve um ataque de tosse; e depois da tosse passar, continuou a rir, enquanto a tempestade se aproximava. 

 

 

Entre leitores oblíquos e António Lobo Antunes

Ler como quem trabalha em pergaminhos nebulosos, rasurados, várias vezes reescritos. Em camadas de palimpsestos que se foram apagando, mas mantêm a força irrevogável da insinuação. Contra as leituras lineares, acariciar as curvas que levam, por vezes aos solavancos, em direcção a sentidos impossíveis, insistentemente escondidos (única forma de se revelarem sem cair nos esgotos da praça pública). Os leitores oblíquos têm de ser aventureiros, ainda cheios da coragem ingénua de quem nunca errou. Precisam de campos abertos onde parecem buscar súbitas fontes de verdade textual, não dessa que alisa o mundo com o rolo compressor dos dogmas e quer durar uma eternidade, antes a certeza frágil que faz emergir vida, ainda experimental, vida gasosa que se esvai alegremente através dos metros cúbicos que compõem a atmosfera. Os leitores oblíquos buscam um clarão que não seja a apropriação definitiva do sentido, a petrificação do texto em coordenadas definitivas, estagnação de morte. Lêem o texto, às vezes num rigor hermenêutico sobre-humano (era esse o desejo de Nietzsche quando dizia que só havia interpretação), mas é neles que tudo acontece, só eles se rasgam até à morte. Paradoxalmente, o leitor oblíquo está sempre em vias de morrer, explodir num entusiasmo dionisíaco depois de descobrir a origem do universo em si.

 

Ao autor resta escrever livros, fazê-lo como “quem joga a vida” (Lobo Antunes, entrevista à Revista Visão, n.º 1085, 19-25 Dezembro 2013, p. 112-122), escrevê-los com o próprio sangue (Nietzsche), num cinzelar constante, obsessivo (“não há talento, há bois, pessoas que marram e marram e marram...”, Lobo Antunes, idem), até que o braço doa de tanto gatafunhar, resmas de páginas que não servirão para nada, a não ser levar o leitor oblíquo a voar imperfeitamente sobre abismos.

Lobo Antunes não gosta de Robert Musil ou Thomas Mann (eu gosto tanto!), mas sabe que “são bons” (idem), porque marraram horas sem fim contra gigantescos edifícios de frases feitas e no fim construíram, com os fragmentos da destruição, palácios que o leitor pode visitar, descobrindo os magníficos brilhos que saem de si mesmo. O leitor canibaliza o autor, apropria-se dele, reescreve-o, banaliza-o ou engrandece-o. Por isso, Lobo Antunes já não se refere a eles como os jovens, medianamente jovens, escritores à espera de reconhecimento e dinheiro (na entrevista são a ausência mais surpreende e necessária). Lobo Antunes escreve para ele, realiza a mais alta de todas as promiscuidades estéticas, a máxima espiritualização do onanismo: ele é um autor-leitor. Sem obliquidades contudo, neste estádio a serpente morde o seu próprio rabo e traça mais um círculo, reafirmando o poder da ortodoxia geométrica. É com tristeza, mas sem me afastar do dever estético de reconhecer que Lobo Antunes é uma das mais belas “estrelas dançantes”, que o vejo “rapar o fundo do tacho” na entrevista da Visão. Como se estivesse com presa de regressar aos livros que continua a escrever, como se não quisesse desviar-se deles e por isso tenha ficado na pele da vida, que neste caso não é a "máxima profundidade”, como pretendia Paul Valéry.

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Indisciplina moral

As pessoas são estúpidas. Daniel atirou a frase ao espelho, criando um círculo ao exalar o fumo e atirando a cinza para o chão. Tão Estúpidas. As pessoas são más, acrescentou Joana e deu um passo em frente, o vestido verde claro, cor de bicho quando foge, a flutuar-lhe em redor dos joelhos. As pessoas são estúpidas e más, resumiu Rafael assertivamente, acenando três vezes com a cabeça. E Clara sentenciou pesadamente: Roberto é um cafajeste. 

Roberto, dramaticamente, retorquiu: Je suis rien, je comprends rien.

E logo a seguir, adivinhando-lhe a silhueta escondida atrás do padrão japonês do biombo, o cigarro segurado alto, uma perna longa subida até à curva dos seios, como num estudo de Francis Bacon, não estava lá o corpo, só o movimento surpreendido subitamente, incompreensível, completamente intraduzível:

Il faut que je disparaisse, tu comprends?

E depois, em voz baixa:

Além disso, sinto-me sozinho e estou farto de tratar da merda do jardim.

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Catarina, mulher sem língua

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Este foi o pior natal, repito a mesma ladainha todos os anos, mas este foi mesmo o pior. Começou com o aparelho de karaoke instalado na sala e com o António, meu cunhado e comparsa, o mesmo que me auxiliou a tratar do sarampo a duas anafadas estrangeiras num pinhal, espalhando alegria pelo lar com borrifadas de oh oh oh de pai natal. A presença da sogra contribuiu para o meu desalento. A bruxa não fecha a bocarra por nada, sempre a envenenar o meu sagrado matrimónio. Esforcei-me para não estragar a festa. Cantei Tony no karaoke, puxei a mulher para dançar. Jurara que não seria eu a entornar o caldo. Calei-me, após cotovelada da esposa, quando a filha, minha única cria, criatura para a qual tinha tantos, tantos planos (nenhum incluía cursos de cabeleireira), deu entrada com um artolas de argola na orelha. "Que se danem os filhos", pensei. Que se tramassem os espermatozoides saídos de mim. Tratar os filhos como os espermatozoides embrulhados nos guardanapos de todas as manhãs. "Lá estás tu", respondeu-me a mulher, após educada tentativa de descobrir se o argolinhas tinha emprego. Não se pode dizer nada às mulheres, amuam, fazem filmes, só se dão bem entre elas. No prostíbulo do Justino elas bem fingem: uma garrafita de whisky para aqui, umas danças com apalpadelas no rabiosque para ali. Todas elas, ucranianas, brasileiras, portuguesas, sabem que o que conta é o carcanhol.  Fingem interesse pelos nossos desabafos, metem-se debaixo de nós, mas não se dão a conhecer.  Vejo como as meninas do Justino cochicham nos corredores, a intimidade que têm umas com as outras. Elas só nos toleram por condescendência. É como eu com a minha sogra, carrego-a há vinte e tal anos devido a um qualquer amortecimento de coração que me faz ser uma espécie de manteiga derretida andante. Se não a sustentasse, sobreviveria à custa de esmolas. Na noite de natal não aguentei. Quando contou à filha que me avistara dias antes de cigarro na beiça encostado à porta do cortiço do Justino, nem pensei, acertei-lhe com o jarro de sangria na nuca. Tendo perdido os sentidos e desfazendo-se em sangue, a velha foi logo encaminhada para o hospital. Visitei-a ontem. Poderia estar pior, isto é, morta. Não fala por causa da pancada, dizem os especialistas. A minha opinião é outra. A cobra perdeu o pio por ter mordido a língua. O que a calou foi o próprio veneno.