Confissões no Comic Cosmic Cafe

I.

Aqui me sento, engolindo a golos lentos a vida fria,
Lendo as paranóicas páginas de Kerouac, enquanto todos se riem
Em inglês e francês à volta das suas mesas, longe de imaginarem
Que a sete palmos do balcão eu me questiono:
Porque é que algumas mulheres me tentaram meter o dedo no cu?
Geralmente estou dentro delas, mas o que elas querem é entrar-me dentro,
Como se fosse uma vingança por todas as vezes em que morreram com o olhar
E um abraço apressado. As cervejas caminham à minha volta e as gargalhadas aumentam.
Se calhar, estou a pensar alto em dedos finos que me tentam violar,
Coisas do último tango e cerveja cor-de-laranja e a vida engole-se
E a porta abre-se e fecha-se e mais gente entra no copo sempre cheio,
Cada vez mais difícil de aguentar, sorrisos de joelhos à espera de um orgasmo
Aos oito anos de idade, seco, no palheiro de alguém,
Há mil e mais anos atrás, antes da invenção da palavra orgasmo.
Riem-se os olhos azuis que me tentam penetrar com as meias negras
E a saia demasiado curta antes do fim das nádegas,
Rio-me eu na caneta, porque ninguém acredita que perdi a virgindade na primavera
Dos meus oito anos nos bancos traseiros de um Mini branco abandonado numa eira,
Com o irmão dela no lugar do condutor a ver se alguém vinha
E vim-me eu, mais um orgasmo seco (veio-me o gosto)
Seguido de uma dor que acompanhava cada nova entrada e saída
E ela a dizer para não parar ou nunca mais e eu não consegui mais e nunca mais.
E Kerouac, perdido no seu Big Sur, olha-me com chamas nos olhos de Humphrey Bogart
Com os meus olhos no reflexo amarelo do copo de cerveja, enquanto a vida me bebe
E só a morte é inevitável, a vida não.

II.

Tanta gargalhada com um copo quase vazio,
Um velho hippie olha-me com os seus óculos oleosos
E eu longe, em Moçambique onde está a irmã do meu amigo Pete,
Que me fez rir às gargalhadas quando me disse que eu era
O homem mais bonito que ela já viu ao vivo, exagero de quem me podia
Ter metido o dedo no cu, mais uma, da idade da minha irmã,
Não fosse eu sentir-me ainda culpado por ejaculações
Em faixas negras, faixas brancas e sofás alheios em salas desconhecidas,
Por isso jogamos poker pela madrugada fora, enquanto a cerveja passava
Para o lado onde moram os antepassados, até a vontade ser de dormir
Com ela ao lado, com medo de mais uma vez eu todo língua e dedos
E ela toda um calor viscoso à minha volta. Aposto tudo,
Acabo com a cerveja num último golo gigantesco e espero
Que a promessa nunca dita naquela noite se cumpra
Em explosões azuis nas curtas noites do verão do norte.
Mais uma mão cheia de alguém que não poderei ser, nem ter, além de três
Ou quatro orgasmos, que depois se tornarão em adiamentos de derrota.
Tudo é uma mentira que se conta com seriedade e braços cruzados
Num café com uma cerveja à frente e a distância segura
Do que se é atrás da retina longínqua do tempo.

III.

Uma madrugada igual a tantas outras e eu com o mesmo passo
Apressado de Rimbaud e a (quase) mesma fome de experiências
E vida, até que um amigo de um amigo se senta no meu colo bêbado,
Me abraça como mais uma e me pergunta se eu quero que ele me chupe
E que ele costuma fazer isso com os amigos e álcool forte
E eu sinto-me impotente na impossibilidade de me dissolver no sofá
Até deixar de me sentir numa fobia que desconhecia, culpa da forma
Como todos na terra são machões ou simplesmente não era o meu tipo
E muito obrigado mas não obrigado, afinal há experiências que ainda não,
Que nem sei, o inferno já é meu, os mapas são inúteis neste lugar onde sou,
Mão no queixo e olhar vazio de intelectual, enquanto o sol ameaça pôr-se
Antes de um Domingo sem igrejas, hipocrisia e pão do que se cola ao palato,
O mesmo que provou o meu esperma embriagado,
Sangue de uma multidão de perdidos.

IV.

Os The Smiths, apesar de ter deixado de acreditar no amor
Desde grandes fogueiras, continuam a perseguir-me,
Abençoados e noites longínquas em cidades de estudantes,
Eu, um eterno, sempre armado em mestre de esfomeados por morte
E razões para continuar, sentidos injectados como doutrinas pouco sólidas,
Mais valem uns dedos além meias húmidas, sedentas de sumo quente
E doente enquanto a música se asfixia na sua impossibilidade
E um dia confesso-te o porquê do meu inferno, a razão pela qual nunca
Me poderás amar e não interessa, enquanto eu continuar a beber a vida,
Longe daquele verão dos dezasseis anos, de Hemingway e dos aviões
A tornar a realidade demasiado real contra torres longe de Tolkien.
Não pedi nada disto, não fiz nada por isto, nem mereço seja o que for,
Por minha culpa, minha tão grande culpa, não peço, mas desespero,
Por outra noite a olhar o tecto esburacado numa manhã de Domingo
Aos sete anos e meio, pouco antes do fim do mundo.


14.04.2011
Turku

Haikus Coreanos

Dormem os cavalos
nas estepes -
esqueceu-se o medo.[1]

Escorre por entre os dedos
a areia dourada -
goza a queda.

Depois do Verão
regressam
a palidez e a escuridão.

Tem que chegar o Outono
para a folha
poder viajar.

A fruta que apodreceu
à sombra
cumpriu com a doçura.

Nar´yan-Mar
tão desconhecida
quanto o vermelho próximo.

Escrevo da Sibéria -
distância e frio
em vez de palavras.

Cresce-se -
prémios tornam-se
como aniversários.

Conseguir ser só
num país de solidão -
o absoluto.

Da violência
nascem impérios -
só eles terminam.

Da violência
nascem impérios -
só ela persiste.

A neblina cobre
as estepes -
acende-se o horizonte.[2]

Sabes-me ao nevoeiro
de Novembro
no campo geado.

O Mestre disse -
não é a distância
mas a ausência.

Olha a Lua -
os meus olhos
os teus.

Podias construir
um império no coração
mas não.

Um último salto
da ponte -
todas as vezes.

Um vizinho
louco -
quem não?

Ter a pele salpicada
com a ausência
dos teus lábios.

Dos antigos
nem uma memória
dos seus olhos.

À estrada do hotel
despedidas
e esquecimento imediato.

Quantos olhos
as mesmas
Histórias.

Montanhas de sonhos
e tantos outros
abismos.

Esse ponto de encontro
da humanidade -
a miséria.

Nada está completamente
perdido
se houver dor.

Na dor
a certeza
da possibilidade.

E quando as cinzas
arrefecem
e se continua vivo?

Tudo oxida
mesmo
em segredo.

Facilmente as mãos
se esquecem
de ser vazias.

Leva-se sempre
a montanha
para as distâncias.

Habitua-te
ao amargo -
o Verão é breve.

Estranha o ar pesado
aquele que veio
da montanha.

Sobre o musgo
sempre
em casa.

Descer do monte
reparar
que anoiteceu.

Encher vazios
antes
do vazio.

Ar-Seul

 


 

[1] Sobre a Mongólia

[2] Sobre a Mongólia.

Tio

Morreu-me um tio, não o via há mais de 25 anos,
Dele lembro-me do carrinho de corrida vermelho
Com um escorpião desenhado
E dos olhos tristes da minha mãe,
Dele lembro-me da pantera cor-de-rosa do ovo kinder
Que lhe enviei e ele guardou como uma relíquia
E dos olhos tristes das minhas tias,
Dele lembro-me das cadeiras brancas
Em casa dos meus avós
Onde a família toda nunca reunida
E dos olhos tristes dos meus tios,
Dele lembro-me dos gelados esmeralda
E dos olhos tristes dos meus primos,
Dele lembro-me do luto da minha avó
Que se tornou mais luto
E dos seus olhos tristes,
Morreu no Brasil, pensei que sempre teria o Brasil,
Afinal não.

Sala De Espera

Quando é que os dias se tornaram numa sala de espera bafienta, escura,
Com mobília dos anos 70, onde zumbe já faminto o caruncho dos ossos,
Esperando que a porta se lhes abra e seja chamado o nome
À consulta kármica, para se receber um frasquinho com meia dúzia de dias felizes,
Depois deste volte cá e espere, a porta da rua está sempre aberta,
E lá fora ninguém, nada, a saída definitiva para um dia infinito e vazio,
Quando é que todas as revistas se tornaram sobre vidas desinteressantes,
Como espelhos ou então exemplos de todos os fracassos que se acumularam
Em nome de te tornares no que hoje és, algo afundado num sofá
Com as mãos sobre os joelhos, procurando encontrar em que linha te despistaste,
Como quem perdido num dia de chuva, procura encontrar o caminho
De volta, com um mapa ao contrário de uma outra cidade,
Quando é que surgiu esta vontade de saltar por cima de bocados enormes de vida,
Estações inteiras, companhias decentes, a fruta quase toda para o lixo
Na esperança de uma gota destilada de um Sol que se sinta tocar
Algo que enterramos há muito, bem fundo, só porque não se sabia, como nada se sabe
E por cima de toda a ignorância, erguemos este castelo de certezas e esperamos.

Turku

Savon de Marseille e Fósforos Azuis

Este sabão trazido de Nice, savon de Marseille, pur vegetal, de fabricação artesanal,
Que passo sobre a pele deste dia e que cobre o vapor de perfume
E me traz de volta àquelas peles de noites quentes, antes da vontade além cueca,
Aquelas emigrantes bem lavadas que regressavam à companhia dos galinheiros e das couves,
Aquelas peles demasiado brancas para o calor da procissão, deixando um rasto de perfume
Que se seguia atrás da cruz, este sabão laranja de jasmim que me traz aquelas manhãs
Em que as mulheres da aldeia se juntavam para fazer sabão azul em caixas de madeira
Forradas com plástico e na aldeia toda o cheiro da roupa lavada no estendal da eira
Com aquelas cuequinhas e cueconas a acender e apagar sonhos e vontades,
Este sabão para turista que me abre a porta de um banho à hora da sesta em verões
Com menos pêlos e lava tanto o sangue das mãos do que mata como do que salva
E me traz a caixa de fósforos de Paterson e todo o potencial das coisas pequenas
Para abrir portas e acender vidas na nossa, na nossa pele que todos tocam e nunca é a mesma.

Turku 10.06.2017