Grilo Falante

Lembras-te daquela tarde quente, sentado no muro de pedra entre o lameiro
E o souto, enquanto as vacas pastavam, apanhavas grilos, que esmagavas um atrás
Do outro, misturando-os, misturando os corpos pequenos numa massa
Informe de grilo, duas pedras planas, uma maior, uma mais pequena,
E os grilos entre elas, esmagados, polpa de insecto, raspavas tudo para cima de outra
Pedra lisa e misturavas aquilo com uma pauzinho e saliva, saías da sombra, voltavas
Ao lameiro, apanhavas mais uns quantos e continuavas a chacina,
Distraído da crueldade do mundo, calmo como só as crianças conseguem
Quando estão no seu mundo, as pedras a bater uma na outra e menos uma vida,
Tu só querias que todos fossem um, sentias um estranho sentido erótico
Naquilo, algo que não compreendias, um orgia de polpa, patas, antenas,
E eras todo calma enquanto as vacas pastavam, também  distraídas
De tudo, como sempre, todos nascemos vacas e psicopatas, alguns encontram
A culpa, afogam-se em moral, perdem-se, outros fecham o livro que estavam a ler
Porque sentem que um monte de pasta de grilos lhe está para sair pela boca fora,
Como nas noites em que se come pouco e se bebe demasiado, em busca
Da serenidade das tardes quentes em muros de granito, esmagando segundos
Como grilos e vice-versa, fecham o livro e correm para o papel e vomitam
Tudo, não há inspiração, só urgência, não há imaginação, só memórias
Misturadas, rasgadas, uma pasta de memórias, memórias de grilo,
Não te sentes culpado, sentes inveja da liberdade que um dia,
Da perversidade inocente que trocaste pela maldade forçada da experiência,
Agora volta para o livro, onde não estás, esconde-te, és um monstro que cresceu,
Tens a alma amaldiçoada desde que não morreste quando nasceste fora do teu tempo.

 

Turku

 

23.06.2014

Adjectivo

A proximidade do adjectivo revela, por vezes, que por baixo da sua singela roupagem, as suas costas são profundamente tortas.

O adjectivo decifrado num palco feito de usura quotidiana, não se intimida, e oferece gentilmente a sua fragilidade - um interior habitado de memória.

Adjectivar é, como sempre foi, uma coreografia sempre refeita. Uma tecnologia mais-que-perfeita. Ou melhor, um corpo em plano inclinado para a direita. 

Com novas vitórias venceria a fama antiga

 Três, quatro chávenas cheias, por mais que me encharcasse de café,  a boca deslizava para a latrina e o corpo pesado aguentava viagens não superiores à distância entre o vale dos lençóis e a casa de banho. O café afugenta o sono e limpa o sangue do meio litro de bagaço vertido em garganta a profetizar a regurgitação, eis o que me contaram certa vez com tamanha confiança que nem tentei comprovar, a não ser através de múltiplas carraspanas, a veracidade deste pedaço de sabedoria. Claro que é mentira, os amigos mentem-nos e isso entristece-me tanto que desconfio que não é boa ideia conciliar a vida com o pensamento ou conciliar o sentimento com o pensamento. Nem com seis cafés o macho alfa, semi-gorila, latagão daqueles de levantar barras de ferro de cento e tal quilos para cima, abre a pestana para bulir. Sentei-me para trabalhar, se considerarmos trabalho a escrita de três parágrafos de duzentas palavras, e encostei a testa ao tempo da mesa e, mal a pele contactou com a madeira, adormeci. Sonhei que entrava num portal do tempo que me transportava de volta a mil novecentos e noventa e nove, para um tempo em que o meu passatempo preferido consistia em educar-me para a vida adulta, roçando-me em ninfetas de traseiro nutrido que me entregavam a língua e me auxiliavam na tarefa de olvidar (momentaneamente) que em casa (qual casa?) me aguardavam o ávido vazio e gente repleta de não quero saber, não me interessa, estás na idade de trabalhar, dás mais gasto do que proveito. O vazio pintava-me as olheiras de preto, destruía a minha melhor parte, a que sorria, com guinchos de rato e paredes de pedra caiadas, bolorentas e repassadas de humidade. Mil novecentos e noventa e nove virou fumaça, o calendário mostra o dia vinte e seis de Março de dois mil e quinze, vinte e sete, oito, não tocamos em tempo algum, vivemos múltiplos sonhos, como aquele que me levou para a boca da gorda das pastilhas de morango girando em torno da sua e da minha língua. Mil nove nove nove, ano em que se iniciaram as paixões avassaladoras por meninas anafadas, de buço descolorado por água oxigenada, e as erecções de quatro, seis horas que originavam as piores dores. Ano em que o acabou, a partir de hoje seremos apenas amigos trovejado pela Raquel me deixou na lama, tão na lama que até ao virar do século, até ao dia da minha morte, só me enamorei por decalques da dita - ainda me comove dizer o nome - Raquelita. Pastiche aqui e ali, os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo rabiosque, como descrevê-lo, meio metro de largura, algo estratosférico. Duas nádegas giganteas, dignas de adensarem o acne daqueles que nem com um dedo lhes tinham tocado e daqueles que, já lhes tendo tocado, nunca mais as veriam. Sonhei longas horas com aquele ano e com a Raquel, até que fui despertado pela Raquel, não pela mesma Raquel finissecular mas por outra igualmente bem alimentada, de cabelo preto liso a dar pelo cóccix, como a crina de um cavalo. Outra cópia. A minha história é circular. Conheço mulheres parecidas umas com as outras, bebo a mesma bebida todas as noites, bagaço e moeda de cinquenta chapada no balcão, vivo nos mesmos caixotes de papelão cobertos por estuque a que dão o nome de estúdio remodelado em zona histórica, escrevo o mesmo livro, publiquei sete e disto não passo. Deus largou-me nesta terra e esqueceu-me. Ontem enfiei-me num táxi e o taxista não reparou em mim, apenas quando falei, uns dez minutos depois, o homem se virou para trás com cara de fantasma e perguntou para onde queria ir, e respondi para lado nenhum, ele aumentou o volume do rádio e, sonolentos, deixámo-nos levar para outros sonhos, outros mil novecentos e noventa e nove.  

Quando morreste

Quando morreste, Helder,
Orpheu fez cem anos de moderno.
Nem assim te pouparam,
todos te louvaram, poeta,
e tu continuas morto.

E as manchetes disseram também
cento e cinquenta cadáveres.
Pulverizados. Voavam. 

O diabo fala como a carne,
e nós sabemos que sem esses deuses
somos apenas isto que sobra. 

Tu e eu. 

Desabrigados, desunidos.
Datas que se cruzam.

Mas depois virá a chuva. 

Sim, ela vem sempre,
vulnerável,
e há-de acabar,
como acabam os nossos filhos.