A cabeça

Hans sentou-se à secretária. A secretária ficava em frente à janela, que dava para a rua. Em frente ficava uma igreja e uma fila bem construída de casas térreas. Estava a chover e um exército de mães passava com os filhos pela mão, as crianças de uniforme, debaixo dos chapéus de chuva negros. Naquela semana, tinham-lhe encomendado um artigo sobre poesia para sair no jornal Kuntsprache. Hans passara a semana a ver vídeos de jovens poetas, que comentavam os seus poemas, e falavam de como entendiam a poesia na sua geração. Uma jovem de cabelos louros fitava a câmara com um olhar melancólico e baço e declarava, a poesia para mim é o lugar zero, o sítio negativo. Outro dizia, não consigo ler tudo, que há coisas muito más. Vai acabar, dizia um rapaz borbulhento com uma fedora posta. Hans suspirava e o olhar começava a subir para a janela, como um homem atirado para um poço que de repente olha para cima. Havia o vídeo de Joachim.

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Saint-John Perse, «Amers», Estrofe-III-2

Saint-John Perse, Amers, Estrofe-III-2

Tradução: João Moita

«Mas erguemos ainda os braços em honra do Mar. Na axila açafroada toda a especiaria e o sal da terra! – alto relevo da carne, modelado como uma virilha, e ainda essa oferenda da argila humana de onde irrompe a face inacabada de deus. 
«No hemiciclo da Cidade, onde o mar é o palco, o arco tensoda multidão ainda nos sustém na sua corda. E tu que danças a dança da multidão, elevada fala dos nossos pais, ó Mar tribal na tua charneca, serás tu para nós mar sem resposta e sonho mais longínquo que o sonho da Sarmácia?
«A roda do drama gira na mó das Águas, esmagando a violeta negra e o heléboro nos sulcos ensanguentados da tarde. Cada vaga ergue para nós a sua máscara de acólito. E nós, erguendo os nossos braços ilustres, e voltando-nos ainda para o Mar, na nossa axila alimentando os focinhos ensanguentados da tarde,
«Por entre a multidão, em direcção ao Mar, nós nos movemos em multidão, com esse amplo movimento que emprestam à ondulação as nossas amplas ancas de camponesas – ah! mais telúricas que a plebe e que o trigo dos Reis!
«E também os nossos tornozelos estão pintados de açafrão, de múrice as nossas mãos em honra do Mar!» 

Como um relógio cuco quando apita a hora

Como um relógio cuco quando apita a hora — hora e meia, não sei? — 
a língua — que é todo um investimento — está capitalizada em um lugar nenhum. 
Dinheiro? Que me dêem mais do que é preciso & que assim eu fique bem. 
É o credo dos tempos, não disse?, E haja quem puder abnegar o deus 
dizer três vezes que não necessita, ir viver entre os pauzinhos 
de uma cabana ou amassar o próprio pão — respeito-os todos. 
A roda dentada não para de morder, entretanto não tenho paraíso 
fiscal para fugir. É toda vez isso: a conta no negativo, 
e mais e mais e mais. Em retribuição escarro em mim 
a dívida do mérito, vácuo que rege a fé em todos os supermercados, 
estacionamentos, eleições de municípios e se camufla 
em latifúndios de uma gente sem esperança, só com resultados 
mortes de índios, helicópteros empilhados num hangar, 
vez ou outra é só uma imensidão de queda 
vez ou outra é só um hemisfério inteiro 
que padece de fome, de frio, e morre. 

25 de Abril, Indigência Reflexiva e Rendimento de Existência

Como é natural, muito se tem falado do 25 de Abril de 1974, discursos cheios de uma nostalgia amplificada pela actual crise social, económica e ambiental. Os historiadores profissionais sabem bem que ainda não estamos suficientemente distantes para interpretar com objectividade esse acontecimento, as releituras assentam sobretudo na selectividade e exacerbação emocional (a velha “idade de ouro”, o “antigamente é que era bom”), e um pouco de um cálculo político, que ele há gajos para tudo, e a vidinha está difícil.

Eu era muito novo para guardar memórias da data (a recordação emotiva vive de intensidades mais do que de evidências), não consigo limpar a opacidade do que recupero. Mas não esqueço a festa (é provavelmente isso que melhor distingue as ontologias das revoluções de esquerda das de direita, nestas uma seriedade de chumbo, tenebrosa e mortífera captura as comunidades), a ideia de que finalmente se podia “dizer tudo” e, vivendo em Bragança, ser possível emigrar à vontade. Havia poucos cravos, a Primavera é mais tardia em Trás-os-Montes, mas as bocas e os corações riam, pelo fim de qualquer coisa mas principalmente pela esperança que brotava de uma demiurgia acima da realidade, de um futuro que parecia conter, sem discriminações ou entraves, todos os possíveis (embora o “fascismo nunca mais”).

É por isto que não tenho o direito integral, mais fisiológico do que moral, de me apropriar do 25 de Abril, limito-me, sem pressupostos de menoridade, a seguir o que outros mais velhos dizem, pensam e sentem sobre essa festa. Mas não se passa o mesmo quanto aos futuros que podem ser projectados, também a partir dele: aí tenho direitos e deveres, tantos como os demais. Se alguns podem ser guardiões especiais do passado, concedo-o, o mesmo não se passa em relação ao futuro, que, este sim, a todos pertence. E é sobre o futuro que quero aqui deixar um horizonte de possibilidade, seguindo de perto Christian Arnsperger e o que diz no artigo “Revenu d’existence et promotion de la sociodiversité”.

Este economista alemão radicado na Bélgica, pensador inteligente sobre o pós-capitalismo (não, não se trata de voltar à velha dicotomia esquerda/direita, mas de governementalidade na idade de uma profunda crise ambiental, onde muitas coisas têm de mudar, não ao ritmo de slogans mas de uma existência mais frugal e muito menos antropocêntrica), alimenta a sua proposta de um “rendimento de existência” tendencialmente universal ligado ao incremento da diversidade social através da ideia de que não há qualquer determinismo sócio-económico, e por isso é possível criar “através da decisão colectiva um sistema no qual a pobreza de alguns não seja a contrapartida sistemática da opulência de outros.” Para o alcançar, devem desenvolver-se outras vias existenciais, sem buscar mais uma vez a famigerada, e perigosa diga-se, essência (da vida humana), mas experimentar formas de viver em liberdade, porque quer os actuais "ricos" quer os "pobres", por razões diferentes no entanto, vivem alienados, em indigência reflexiva; e os problemas ambientais graves a isso nos obrigam. Estas experimentações, ainda que vividas na primeira pessoa, necessitam de uma “colectividade de experimentação”, tudo em Arnsperger se distancia de neo-individulismos. Actualmente, vivemos “num capitalismo caracterizado […] por um produtivismo e consumismo focados na clara valorização maximalista dos capitais.” Isto e os constrangimentos suplementares ligados às dívidas soberanas e aos imperativos de crescimento restringem quase totalmente a experimentação colectiva. A força do capitalismo é tal que todas as perspectivas, que não passam disso mesmo, presas aos défices e à forma de os superar, parecem condições sistémicas auto-realizadoras (maneira de pensamento e acção únicas). Ajudadas, diz Arnsperger por uma “indigência reflexiva”, carência crítica partilhada pelos materialmente ricos e pobres. A luta contra a pobreza material se não for acompanhada de uma luta contra a “indigência reflexiva” pode, aliás, reforçá-la. A “lógica da monocultura” capitalista não permite “experimentações existenciais” excêntricas, inovadoras. Na verdade, a liberdade das democracias avançadas deve não apenas permitir exprimirmo-nos sem o espectro da censura, mas também conduzir a reais possibilidades de organizar a vida económica e social de outra forma, em colectividade.

Ora, é aqui que entra o “revenu d’existence” (rendimento de existência), com ele pretende-se tornar os rendimentos mais igualitários e dar aos pobres materiais as condições de sobrevivência para que possam realmente questionar o modo de vida dominante e substituí-lo por outro, “fazer a experiência vivida de uma outra existência.” Arnsperger justifica a bondade desta proposta por analogia com o universo ecológico: “tal como a biodiversidade é crucial para a manutenção de um sistema ecológico são, a sociodiversidade é essencial para a manutenção de um sistema económico e político são.” O rendimento de existência permitiria a todos, mesmo aos desempregados voluntários, experimentarem novas formas de vida. Mas para criar este rendimento e para abrir a sociedade à experimentação e à mudança é necessário repartir equitativamente o produto gerado por uma comunidade. E é aqui que surgem as resistência mais fortes, à esquerda e à direita do campo político: como se pode dar o mesmo a quem não quer trabalhar e a quem o faz diligentemente? Sobretudo, depois de se abrir o mundo à livre concorrência, quando o trabalho é cada vez mais extenuante, tornando os trabalhadores hipercríticos em relação ao dolce fare niente.

Arnsperger traz um novo argumento que, mitigando e transformando o statu quo moral e económico, torna mais plausível esta distribuição igualitária. Temos vindo a esgotar rapidamente os recursos naturais mais baratos e importantes (para o nosso estilo de vida), sobretudo os combustíveis fósseis, e ao mesmo tempo provocamos um aquecimento global difícil de controlar. Isso projecta-nos para a necessidade de uma frugalidade a que não estávamos habituados. Portanto, vamos entrar num decrescimento económico involuntário (imposto pela rarefacção das energias fósseis e por disrupções naturais) a nossa e as próximas gerações têm a necessidade de desenvolver “modos de vida frugais”. É, pois, necessário exercer a nossa liberdade para procurar formas de vida distantes da opulência capitalista, esta será, diz Arnsperger, a “grande tarefa cultural das próximas décadas.” E quem pode experimentar estes novos ways of life serão os materialmente mais pobres (mas não totalmente desprovidos, se houver rendimento de existência), os que quiseram ou tiveram de viver à margem da festa capitalista.

Assim, a constituição de novos comunitarismos engtrelaça a) reformas educativas radicais que permitam lutar contra a indigência reflexiva; e b) um rendimento de existência permitindo ao máximo de cidadãos de se desconectarem realmente e por bastante tempo dos sistemas sócio-económicos que julgam insustentáveis. As duas medidas só funcionam em conjunto: uma força e inovação reflexiva sem condições materiais mínimas geraria uma revolta aguda e estéril; um rendimento sem reflexão criaria um “sub-proletariado pauperizado e frustrado” por viver nas margens do poder, sem real influência nas linhas de desenvolvimento económicas e sociais. Trata-se, pois, “de ao mesmo tempo lutar dentro do capitalismo contra uma pobreza material que não cessa, nem cessará, de se engendrar. Mas também, e sobretudo, de lutar para que a diversificação das experimentações sócio-económicas aconteçam apoiadas num rendimento de existência, acompanhadas pelo acesso à saúde e a uma reforma.”

Entrevista a um talento nunca publicado

Encontrámos o escritor numa tasca suburbana de boca colada ao gargalo da garrafa de cerveja e a atirar tremoços ao empregado de mesa — animal em vias de extinção conhecido pelo farto bigode, pela sovaqueira suada e por um linguajar cravejado de anedotas e de salpicos de asneirola. Conversava-se sobre o Benfica. O escritor, adepto do Porto, assume-se como um exilado. Um azul no meio de vermelhos, como diz.

Antes de mais, obrigado por nos ter recebido. É uma honra podermos falar consigo. Permite que gravemos a conversa?

 Permito, permito. O prazer é todo meu. Não estou nada habituado a dar entrevistas. Não gosto de aparecer em público. Não gosto do público. Nem de jornalistas. Nem de nada. Para ser sincero, só aprecio cerveja, putas e este dinossauro farfalhudo (aponta para o empregado de mesa). Mas quando recebi o seu telefonema, senti que não poderia recusar. É daqueles sentimentos que não consigo explicar. A última vez que fui acometido por um destes sentimentos foi na semana passada, dentro de uma discoteca, quando esmurrei um sujeito que se roçou em mim na pista de dança.

É uma notícia em primeira mão. O escritor frequenta discotecas.

 Não me interprete mal mas está a fazer confusão. Eu não frequento discotecas. Detesto discotecas. Detesto tudo. Só estou aqui porque um homem precisa de sair à rua.

Mas acabou de afirmar que esmurrou alguém numa discoteca.

 Esmurrei, pois. Estava com uma febre. Não vou a discotecas. Vou só àquela. Gosto de ler no meio da confusão. Ou melhor, detesto ler. É tudo medíocre. Detesto mediocridade. Não leio nada. Mas costumo ler o jornal na discoteca.

Lê autores contemporâneos?

Por quem me toma? Só leio clássicos. Esses valteres hugos mães e tordos não me dizem nada. A literatura está morta. E está morta há muito tempo. Antes ainda havia tipos com classe. Há uns anos atrás. O pessoal acha que os antigos eram todos estúpidos mas isto era muito melhor. Há uns vinte anos atrás ainda se dizia umas coisas sobre livros. Havia textos interessantes nos jornais. Agora não há nada. É tudo lixo.  Mas isto vem ainda mais de trás. A literatura acabou com a morte de Homero. Depois de Homero o dilúvio. Sabia que Homero era cego?

O pessoal acha que os antigos eram todos estúpidos mas isto era muito melhor. Há uns vinte anos atrás ainda se dizia umas coisas sobre livros. Havia textos interessantes nos jornais. Agora não há nada. É tudo lixo. Mas isto vem ainda mais de trás. A literatura acabou com a morte de Homero.

Há quem diga que Homero não existiu...

Tolos, todos uns tolos. Então quem escreveu a Ilíada? Fui eu? Foi a menina? Sejamos sérios. Se for para brincadeiras, vou-me já embora. Tenho mais que fazer. O Porto joga às sete e ainda tenho a patroa toda a escaldar, à espera que o gelo lhe esfregue o lombo (coça os testículos e pigarreia).

Que autores mais o influenciaram?

 A minha maior influência sou eu. E este povo. O povão. Não esses pavões do governo, gatunos. Choro no meio desta malta. Esta cerveja inspira-me mais do que essa malta das políticas e das letras. Até me cheira a ranço só de pensar em certas aves raras. O primeiro-ministro, já reparou nele? Passou ao lado de uma grande carreira de actor, ao lado do La Féria. La Féria. Que nome de pardal. Agora que penso nisso. O mundo está perdido. Sabe o que lhe digo? O verdadeiro escritor não se pode perder em leituras. Esses mandarins premiados. É tudo treta e mediocridade. Já leu Beckett? Aquilo é uma mistela.

 Não lê nada para além da sua própria obra?

Leio, leio. As notícias. Leio o jornal todo o santo dia. O Correio da Manhã. Nos dias mortos, entretenho-me a fazer palavras cruzadas ou a traduzir certas notícias para francês. É importante manter o cérebro activo. Esta trampa (olha para a garrafa de cerveja) não presta, não tem vida, é como a cultura portuguesa, não tem vida. O povo é que me impressiona. Então não é que houve um gajo que matou a família e anda a monte. Se um gajo desses me aparece à frente, nem sei, olhe, derreto-o ao murro.

Também escreve ao murro?

Bem, se é para brincar, o artista sai já de cena. Escrevo com as ferramentas mais actuais. Tiro notas de tudo. O meu método é muito simples. Escrevo em guardanapos, em bilhetes de autocarro. Já escrevi em notas de cinco euros. Depois passo tudo para o computador.

Revê muito?

Ai se não revejo. Revejo tanto que ainda não tenho qualquer obra publicada. Sou um escritor sem obra e orgulho-me disso. Quis ser famoso, sou. Nem preciso de publicar. Quais Gonçalos Tavares ou Lobos Antunes. Eu escrevo e apago. Ainda lá tenho uma mão cheia de manuscritos mas preciso de relê-los. Sei que acabarei por apagar o que escrevi. Odeio tudo. Não há solução. O melhor seria morrermos. Cair um meteorito. Acabar com a Terra. A vida não presta.

Mas aquele manuscrito que nunca foi lido por ninguém tem fama de ser promissor.

Ai,  temos azar. Sobre os meus manuscritos ninguém fala. Não os dou a ler a ninguém porque ninguém os saberia ler. Mentira (esboça um sorriso). Esse tão badalado manuscrito foi lido por uma puta ucraniana. Não é que a tipa não me disse que não sabia ler português? É como lhe digo, já não se pode confiar. Estamos ali e não estamos. Uma miséria.

Diz-se que a Penguin anda atrás de si. É verdade?

 (Encolhe os ombros) Querem artista, paguem. Os carros bebem gasolina, eu bebo cerveja. Tudo isto é pago. Para si faço de borla. A menina é bonita. Quer performance? Atente (o escritor aplica uma bordoada na nuca de um cliente sentado não muito longe, recebe um soco e cai no chão. É reanimado com um copo de whisky que, segundo se diz, é a única coisa capaz de tirá-lo do mundo dos mortos). Gostou? Sou capaz disto e muito mais. Depois venham-me falar do Hemingway.

A sua fama de arruaceiro vem de longe. Lembra-se do momento em que enveredou por esta via da devassa?

Foi em 1996, com o chapéu do Poborsky ao Baía. Bebi tanto, tanto que, não sei, parece que descobri Deus. O Deus da bebida e da cigarrada. A minha vida mudou por completo. Comecei a frequentar bordéis. Ia para a cama com tudo o que mexia. Pratiquei cunnilingus com uma senhora de setenta anos. Vê a profundidade disto? Uma senhora de setenta anos sem a dentadura metida. Isto é como Herman Hesse encontrar Buda. Acontece uma vez em mil anos. E a mim aconteceu-me muitas vezes. Ou seja, fartei-me de ver budas desdentados.

Pratiquei cunnilingus com uma senhora de setenta anos. Vê a profundidade disto? Uma senhora de setenta anos sem a dentadura metida. Isto é como Herman Hesse encontrar Buda. Acontece uma vez em mil anos. E a mim aconteceu-me muitas vezes. Ou seja, fartei-me de ver budas desdentados.

Onde escreve?

Em qualquer sítio. Prefiro sítios cheios de gente, como esta tasquinha. Também escrevo no sossego do quarto. Escrevo no cinema. Escrevo nas pernas das mulheres. Nos seios das meninas do striptease. No papel higiénico. Nos meus braços. Escrevo onde for preciso. Escritor que é escritor não se deixa embaraçar.

Porque escreve?

Escrevo porque é tudo uma merda. A escrita é a minha religião. Os burgueses têm o trabalho, eles são como gado e precisam do trabalho senão desorientam-se. Eu tenho uma vocação superior. Eu tenho uma religião, que é a escrita. É na escrita que me elevo e é na escrita que me realizo. Mas você é uma jornalista, nem sei para que é que estou a falar disto consigo. Você não percebe nada de escrever, do que é o processo criativo. Você é uma burguesa. As dores do parto. O que eu sofro. Você não faz ideia do que eu sofro. (O autor esconde a cara entre as mãos. Emite um som que parece ser o de um soluço, ou talvez o de uma assoadela vigorosa.) Ai que eu sofro tanto! (O artista acaba a cerveja que tem no copo e diz para o empregado:) Traz aí mais uma que estou a sofrer!

Falou em trabalho. Exerce alguma profissão?

A vida não se ganha, vive-se. Já lhe disse que sou um artista e que vivo para escrever. Antes tinha a ilusão de que um tipo podia ter o seu trabalhinho e depois vir para casa escrever – também já tive as minhas ilusões. Mas depois percebi que isto é uma profissão de tempo inteiro. Mais do que uma profissão, é um sacerdócio. Não tenho tempo para mais nada, tenho de ser escritor sempre, a cada momento do dia. Até a dar uma à patroa sou escritor, ouviu? Tou ali em cima dela a fazer um poema. É assim que me vem muita da minha poesia. E o chuveiro, então, é o melhor que há para a poesia. Às vezes tenho de interromper o duche porque me vem um poema, e quando volto vem logo outro de maneira a que tenho de sair logo outra vez. A minha mãe vê-me a sair esbaforido da casa de banho a pingar e pergunta-me se a botija já acabou. Ela não compreende. Já tentei pôr um caderno ao lado da banheira, mas aquilo molha-se tudo... Ninguém me compreende. A minha mãe quer que eu arranje um trabalho. Mas eu não tenho tempo para ter um trabalho. Preciso de tempo para escrever, e para escrever preciso de ler, e para ler é preciso tempo...

Não tenho tempo para mais nada, tenho de ser escritor sempre, a cada momento do dia. Até a dar uma à patroa sou escritor, ouviu? Tou ali em cima dela a fazer um poema. É assim que me vem muita da minha poesia. E o chuveiro, então, é o melhor que há para a poesia. Às vezes tenho de interromper o duche porque me vem um poema, e quando volto vem logo outro de maneira a que tenho de sair logo outra vez. A minha mãe vê-me a sair esbaforido da casa de banho a pingar e pergunta-me se a botija já acabou.

A leitura é então importante para si? Há pouco dizia-nos que...

A leitura é essencial. Essencial, ouviu!? Só esses escritores de hoje em dia é que não lêem. Antes os escritores eram homens de letras, agora são macacos tatuados que vão à televisão. Eu leio tanto. Às vezes sinto que tenho a tola a rebentar com tanta informação. O meu cérebro parece uma locomotiva a devorar carvão. Pimba Homero, pimba Dante, pimba Saramago. A minha mãe bem me diz para eu não ler tanto, mas eu sou assim, aos três e aos quatro de cada vez. Depois tenho de ir à discoteca, claro, não porque goste da discoteca, mas porque é preciso deitar o fumo cá para fora de alguma maneira, senão a locomotiva rebenta. Mas eu odeio discotecas, apesar de achar que as discotecas têm uma vocação social, a saber, manter-nos a salvo de adolescentes com cio, eles vão todos para a discoteca e podemos andar na rua seguros. Sim, as discotecas são essenciais… Mas onde é que eu ia?

Estava a falar de leitura...

Sim, sim, eu leio muito. Mas na maioria das vezes dou comigo a pensar “Isto afinal é uma merda. Será que estou maluco e isto é muito bom ou que é toda a gente estúpida e eu estou certo?” Leio uma página ali para o Gervásio (O artista aponta para o empregado que nos sussurra que, para que fique registado, se chama António), ainda noutro dia fiz isso. Li-lhe um poema de Herberto Helder e disse-lhe “Houve lá, não achas que isto é uma merda?” Ele olhou para mim com este olhar de palerma. Mas ele não é palerma nenhum. Eu li o poema outra vez. “Então, diz lá o que achas?” Ele tentou safar-se a dizer que tinha de ir tirar uma cerveja, mas eu não o deixei ir. “Queres apanhar nos cornos? O que achas?” “Desculpe mas não percebi nada”. Aí está! O povo é que é detentor da verdade, já Tolstoi dizia, e Tolstoi não era parvo nenhum. Aquilo não se percebe nada! O povo! A minha esperança está no povo. No olhar do Gervásio (“É António”, sussurra-nos o Sr. Gervásio) eu vi que afinal tinha razão. Os académicos enlouqueceram nas suas bibliotecas, porque se afastaram do povo e deixaram de ser gente a sério. As aranhas fizeram a cama nas suas cabeças. É triste chegar a esta conclusão, mas, no fim de contas, toda a gente é estúpida. Andam todos a ser enganados. Ali o Gervásio também é estúpido. Mas esta gente simples está ligada a uma inteligência colectiva que não se engana. Como as formigas, está a ver? Ou as abelhas, ou as manadas de búfalos a correr, a correr na pradaria. A inteligência da espécie de que Schopenhauer fala. A menina leu Schopenhauer?

Bem, li o…

 Não leu nada! A juventude de hoje não lê nada, são todos estúpidos.

Planeia publicar um livro em breve?

 Oiça, isso não depende de mim. Eu sou o artista, eu escrevo. Quem quiser publicar que venha bater à minha porta. Mas publicar não é coisa que me interesse. Publicar é estúpido. Mas aí a culpa é dos editores. Antes os editores eram gajos com classe, gajos que liam e escreviam. Agora é só badamecos que não sabem nada. Capas medonhas. Livros para analfabetos. Putanhices coloridas. Nem gramática sabem. Só querem explorar o artista. Mas a mim é que ninguém explora.

Antes os editores eram gajos com classe, gajos que liam e escreviam. Agora é só badamecos que não sabem nada. Capas medonhas. Livros para analfabetos. Putanhices coloridas. Nem gramática sabem. Só querem explorar o artista.

Já pensou em publicar os seus livros próprios livros? Hoje em dia é bastante fácil com as novas tecnologias. Podia, por exemplo, começar um blogue…

 Não me fale em blogues! Quando oiço falar em blogues dá-me logo a volta à tripa! Isso é tudo uma merda, isso tudo o que se faz, isso é tudo para encher a vista. Conheço uns tipos que escrevem e que têm um blogue. Mas aquilo é medonho. Só choraminguices confessionais, poemas que nunca mais acabam. E depois aquilo é feio. Não se consegue ler bem. Acha que um escritor a sério escreve num blogue? Está a ver o Saramago a escrever num blogue? Isso da internet é uma moda que passa. Sabe onde está o futuro? O futuro está na rádio. Na rádio, sabia? A menina é muito bonitinha mas não percebe como isto tudo funciona. Estou a ver que tenho de lhe dar umas lições. Tenho o carro estacionado nas traseiras, não quer ir um bocadinho comigo para o banco de trás?

Não me fale em blogues! Quando oiço falar em blogues dá-me logo a volta à tripa! Isso é tudo uma merda, isso tudo o que se faz, isso é tudo para encher a vista. Conheço uns tipos que escrevem e que têm um blogue. Mas aquilo é medonho. Só choraminguices confessionais, poemas que nunca mais acabam. E depois aquilo é feio. Não se consegue ler bem. Acha que um escritor a sério escreve num blogue? Está a ver o Saramago a escrever num blogue?

Não acha que está a ser simplista? Esta entrevista é para um blog e…

 O quê?! Ai isto não é para um jornal a sério? Está a gozar com a minha cara? Então você não é do Público?

A entrevista será publicada num blogue chamado Enfermaria 6...

 Nem do Expresso?

Não. A Enfermaria 6 é...

 Nem do Jornal de Negócios?

Não. A…

 Nem mesmo do Jornal da Região?

Não...

Foda-se, está-me a enganar, a menina está-me a enganar! Eu logo vi que era uma medíocre. Você bem que me tentou seduzir com esse decote mas eu vi logo que era uma medíocre. A tentar aproveitar-se de mim! Eu aqui a perder o meu tempo consigo! Tudo decadência e podridão! (A gritar:) O artista não é respeitado. O artista é atraído para fora da sua caverna, onde é feliz, com mentiras, só para ser humilhado em público! (O autor levanta-se) A menina veio aqui só para gozar comigo!

Nisto vimo-nos na necessidade de dar por concluída a entrevista. Exaltado, o entrevistado bateu violentamente com o punho na mesa, e de seguida agarrou-se à mão e, entre urros, lá o ouvimos gemer «Gervásio, traz o gelo! Já fodi outra vez a mão!» O Sr. Gervásio, perdão, António, abordou-nos junto à porta, quando nos tentávamos pisgar dali o mais rapidamente possível, e confessou-nos que o episódio não era invulgar, que era, aliás, «certinho sempre que o Porto perde». «Mas não se preocupe», acrescentou, «daqui a uns dias ele já está bom. Sabe, ele até que não é mau rapaz, mas tem estas manias…»