Anne Sexton, "Disse a poetisa ao analista"

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Tradução: João Coles


O meu ofício são as palavras. As palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso a minha ruína pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
despojadas dos seus olhos amarelos e das suas secas asas.
Devo sempre esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra, influenciar outra, até obter
algo que pudesse ter dito...
mas que o não tenha dito.

O seu ofício é examinar as minhas palavras. Mas eu
não admito nada. Faço o meu melhor, por exemplo,
quando consigo escrever um encómio a uma caça-níqueis,
como naquela noite no Nevada: contar como o mágico jackpot veio a tilintar
com três sinos no ecrã da sorte.
Mas dissesse o senhor que isto é algo que não é,
então esmoreço e lembro-me de como senti as minhas mãos tão estranhas
e ridículas e lotadas com todo aquele
dinheiro crente.


Said the poet to the analyst

 My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees.
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget how one word is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I work with my best, for instance,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money.

Respostas: Miller a Bukowski e Bukowski a Miller

Tradução de João Coles
[Ler a primeira carta de Charles Bukowski a Henry Miller]


[Miller a Bukowski]
22 de Agosto de 1965

Caro amigo,

A única razão pela qual não lhe digo que venha de imediato cá a casa é porque ontem, depois de quase dois anos a protelar o meu próprio trabalho em benefício de outros, decidi que eu estou em primeiro lugar. E assim voltei ao trabalho, a uma peça de acto único já meio acabada – outra peça burlesca! - e não pretendo encontrar-me com ninguém até a levar a bom termo.

O tal amigo que me enviou os (3) exemplares adicionais do seu livro (o qual agora posso fazer chegar a amigos) deve ser o Bob Fink. Se ele ainda não lhe pagou, avise-me. Eu tencionava pagar, como fiz com os três primeiros, mas ele disse-me ao telefone: “já está tudo tratado!” Se ele ainda não pagou o preço total, pretendo acrescentar o remanescente. O livro vale o dobro daquilo que as editoras estão a pedir. Eu disse ao Lyle Stuart que se assegurasse de o pôr à venda na Pickwick's e na Martindale's – aparentemente não pensou nelas. Também lhe pedi mais formulários de encomenda para que os possa enviar a amigos.

Basta disto! Estou tão contente que tenha descoberto Céline. O seu primeiro livro (Viagem [ao fim da noite]) foi publicado quase na mesma altura que o [Trópico de] Câncer. Vivi mesmo ao lado da clínica dele em Clichy, mas era demasiado tímido para o procurar. O segundo livro (Morte a crédito) também é grandioso. Não deixe de o ler. Creio que saiu em edição de bolso (pela New Directions).

Espero que não esteja com as suas bebedeiras de caixão à cova! E sobretudo não enquanto estiver a escrever. É o caminho certo para matar a fonte de inspiração. Beba apenas quando estiver feliz, caso possa. Nunca para afogar as mágoas. E nunca beba sozinho! Perdoe-me por dizer estas coisas – mas porquê dar cabo da sua vida? Existe um ponto de vista, uma atitude perante a vida além daquela de Céline, acredite em mim. Ele acabou tornando-se num homem amargurado – acontece, porém, que ele era uma alma angelical genuína.

Alguma vez tentou escrever prosa? Um dos meus poetas em prosa favoritos é Jean Giono. Alguma vez leu o seu Blue Boy? Creio que significaria alguma coisa para si. Palavra de honra.

Tenho de me deter agora. Desejo-lhe tudo do melhor. Se puder servir de ajuda, diga-me alguma coisa.

Salut!
Henry Miller
 

P.S. Esqueci-me de lhe agradecer pelos desenhos. Eu persevero na pintura sem saber como desenhar. Na escola sempre fui corrido das aulas de arte. É tudo tanta bosta de cavalo feliz, não é?


[Bukowski a Miller]
Finais de Agosto de 1965

não, não sou do género de fazer visitas, e espero que não pense que pretendo impelir-me contra si. estava bêbedo quando escrevi a carta, se é que serve de desculpa. quanto às bebedeiras, se me atolam ou desenroscam a cabeça da minha criatividade, tanto pior então. preciso de algo mais para viver minuto a minuto do que para ser alguma espécie de artista criativo. o que quero dizer com isto é que preciso de alguma coisa que me dê ânimo, senão entorpeço, sou um cobarde, não quero atravessar as soleiras das portas.

livros [Crucifix] pagos, e mesmo a tempo (para mim). tive de fazer uma revisão completa aos travões do meu velho Plymouth. tenho conduzido sem travões. a mulher berrou quando viu o preço. ela acha que sou um idiota. eu sou um idiota. lá vai ela mijar e deixa a porta aberta e olho para as suas grandes pernas, mortas e inanimadas. a seguir liga o rádio. o rádio está sempre ligado. eu cirando pela casa com tampões para os ouvidos na minha cabeça perguntado-me se devia ir à rua comprar uma garrafa de vinho. tal como todos: conta do gás por pagar, conta do telefone por pagar, falésias a cair em cima da minha cabeça... não, não, raramente trabalho com prosa, principalmente porque a rejeição me mataria. toda essa energia desperdiçada. não tenho coragem para escrever um romance por medo de investir metade da minha vida nele para depois acabar sem pernas dentro de uma gaveta. houve uma vez que disse numa revista que aceitaria escrever um romance por um adiantamento de $500, em qualquer momento, em qualquer lugar. não surgiu qualquer comprador, nem surgirá. se lhe pareço ávido por dinheiro, não acredite nisso. é uma questão de energia – de vazamento. eu posso brincar com poemas sem me magoar muito e conseguir na mesma ser rei do meu próprio castelo, se é que me entende. a fedelha está agora a agarrar-se a mim – tem 11 meses e já quer dactilografar. há-de ter a oportunidade, a cabra.

vou tentar deitar a mão ao [Jean] Giono, ou pedir à mulher que trate disso. no entanto, não consigo imaginar alguém a ombrear com Céline. este homem tinha a cabeça cheia de parafusos dourados. merda, ai merda, doem-me os braços e o peito! parto amanhã para Del Mar, de comboio. estas mulheres mantêm-me sob rédea curta nestes 2 quartos minúsculos e preciso de me fazer ao largo por um momento: o céu, a estrada, o cu de um cavalo, árvores mortas, o mar, pernas novas errantes – qualquer coisa, qualquer coisa... os desenhos que lhe mandei são atrozes. uma péssima partida. estou a trabalhar num livro de desenhos que me pediram e estes 2 pu-los de parte. o editor quer muitos desenhos e uns quantos poemas – o que torna a coisa agradável: um pouco de tinta-da-china e muita cerveja e estou nessa.

Ouro Maciço

Chris Nealon
Tradução de Miguel Cardoso

 

Comecemos com 1978 –

“Whenever I Call You Friend”, talvez –

                  puro encanto –

                  ainda que escavado por dentro por 1995 – aquela cena de arrepiar no Safe em que a Julianne Moore procura convencer-se que está a divertir-se no bailarico das quartas-feiras no acampamento de redução-de-toxicidade –

                  poderá alguma arte sair viva daquilo?

– talvez enquanto forma,

                  o dueto vazio, afectado, a sua rentabilidade em causa,

e depois reemergindo como novo num belo dia de primavera no início da adolescência

*

 

                  Está um belo dia de primavera
                  Um belo dia para a variedade

                  Mas a variedade formal aborrece-me

                  Sestina / haibun / villanelle
                  Quem é que pensas que enganas

O nome a mim afixado é só um autocolante       autocolante fluorescente numa
                  página que já viraste e pode voltar ou não dependendo do
                                    que se segue

Não consigo ver o futuro mas encanta-me viver na era em que gavinha
                  a gavinha o hip-hop e o disco se tornaram amigos

O que definitivamente não é a pior coisa que alguma vez aconteceu

Embora esteja tudo tão ao monte naquelas canções!
vocal/ guest vocal/ rmx / feat.

Tipo, estão em solidariedade, são refugiados, o quê?

                  Rob: “Quem é o F Nicki Minaj”    
                  Eu: “’F’ quer dizer ‘Featuring’”
                  Rob: “Featuring Scott Fitzgerald”

Permitem-me aqui o reparo que a questão relativa à tecnologia não me parece ser a questão?
Não agora            não no momento em que estamos juntos e ao monte na variedade                               

A segurar-nos contra a violência               a perder a nossa curiosidade

Imagina chegar assim sem mais nem menos ao pé dele e dizer tipo, Ei Pitbull!

Thoreau ter-se-ia perguntado, porque é que aquela água está preta

*

Duas coisas maravilhosas na Erica –

Primeiro, ela virar-se para mim depois da aula e dizer “Na verdade não tenho assim grande experiência com mitos do Graal e sânscrito”

                  e segundo, bem,

aquele dia em que o polícia do campus se chegou ao pé de nós e disse “Eu sou só o mensageiro,”

                                    e ela, “nós também”

O que eu quero dizer é que os acontecimentos recentes alargaram a minha noção do que a poesia pode ser, e nisto não estou sozinho

“Já tinha conhecido gente com uma ampla variedade de competências, estranhas habilidades mágicas”

Andava a tentar cruzar um aeroporto com uma festa – um confronto e um grupo de leitura –

Andava a orbitar em torno da superfície do desalento de todos, mas depois apanhei uma corrente de ar ascendente e de repente fico tipo AH /

                                    Leah – 

                  Tenta outra vez

Andava a fazer testes a outra prosódia só porque sim mas a coisa entretanto tornou-se séria
                  A dureza de uma face – o varão de aço no meio da sociedade – um poema que se enrosca e enrola até encontrar a suficiência –

E sim bem sei que isto é demasiado expositivo mas conseguem imaginar se eu pusesse isto num romance?

                  “É que não posso nem por nada com aquela personagem do professor” 

*

Alguém algures em tempos fez pouco dos radicais com carreira na universidade por lerem A Dialéctica do Iluminismo à beira da piscina

Como se eu fosse lê-lo enquanto nadava

Hoje em dia há muita coisa que já se arranja em áudio
E o tipo na pista ao lado tinha daqueles tampões azuis-clarinhos nos ouvidos

O nadador-salvador também

Mas quem é que daria a sua voz a Adorno e Horkheimer no áudio-livro?
Parece que o pessoal do Harry Potter teve direito ao John Gielgud

Tanto num caso como no outro é preciso gastar muito latim e há definitivamente um Valdermort em ambos

“O cançonetista-tipo-eunuco na rádio, o mavioso pretendente da herdeira … [estes] servem de modelo àqueles que têm de se transformar no que quer que o sistema queira”

Penso nos pores-do-sol da Califórnia vistos do exílio, lá bem no cimo de Los Angeles                     

Penso na Califórnia

Quando me mudei para aqui pensava que dialéctica queria dizer beleza natural versus imobiliário

Agora acho que é imobiliário versus dialéctica

Mas durante quanto tempo mesmo se pode espezinhar as pessoas? Mais um século?
Levanta-te Califórnia! Sou professor de carreira, sou inútil, estou pronto –

Isto em 2009 – não me consigo lembrar quais as canções na berra nesse ano – agora todos os meus poemas são escritos no comboio para Baltimore

                  Com música e vídeo e livros ao colo –
E algures fora de Odenton a minha secundaridade ganha um verniz

                  A imitar os teus movimentos Darren
                  A tentar acertar com o teu sotaque Robyn
                  A enunciar cada palavra tua René Char

“Single ladies,” duh!
Mas o problema não é esse

O problema é que os dois espíritos guias que presidem a este poema não estão em paz um com o outro

*

O primeiro espírito é hostil à retórica
É até bastante bruto a este respeito

Mas muito prestável no que toca à elasticidade do tempo e do espaço

Consegue-me fazer pensar em Paris, basta dizer “pálido” e “furioso”
Incendeia-me ambos os hemisférios

A meio caminho de Baltimore sob o sol latejante – inclinas-te para o centro da carruagem e vês ambos os lados ao mesmo tempo –

                  O corredor estreito e o amplo exterior

Foi isso que ele me ensinou – ainda a centralidade – uma lírica imune ao pensamento e um pensar em nada intimidado pelo poder da lírica –

                  o que quer que isso seja –

No fim dos seus Poemas Escolhidos ele saúda o primeiro sol da primavera

E na secção final do poema em que encontra a sua amplitude maior os seus pensamentos viram-se para a guerra – estamos em 1942 –

Aqui perco-lhe o rasto

O argumento parece ser que todas as batalhas têm dois lados, e o mesmo a poesia –

                  O real e o ideal –
E os dois tipos de oposição sangram um para dentro do outro (trocadilho propositado) por via de cadências, que pulsam tanto no soldado como no poeta…

Mas será esse o verdadeiro problema, soldados vs poetas?
No fim poderás chegar à inauguração – descobrir a plenitude na contracção –
Mas não há poesia da polícia

*

É por isso que preciso do segundo espírito – 
Ela entende a polícia em todos os sentidos – 

“e estas são as forças que tinham erigido contra nós / e estas são as forças que tínhamos erigido dentro de nós” 

Vi uma flor minúscula desfazer granito entre as quatro paredes com painéis de madeira onde a li pela primeira vez

          E com ela aprendi o que nenhum outro poeta me podia ensinar – que alívio
                 é culpar as pessoas pelo seu sofrimento – aquela sensação exaltante de se ver livre
                             da responsabilidade – como se casa tão depressa com o desejo  

                                                 de justificar o mundo tal como ele é – 

Na vigilância contra este alívio reles ela continua a ser o meu guia embora se tenha provado
         impossível seguir-lhe o rasto
Tento rastrear os danos nos meus poemas e eles sucumbem à amargura – à fúria –

Mas a literatura dispensa o registo da minha irascibilidade, que é abundante
Eu gostaria antes de mostrar-vos o que pensava ser possível

Pelo que mesmo quando viro no sentido do anti-estético não o consigo evitar, vou olhando

por cima do ombro – 

E faço um pouco de batota – uso aquela poesia beatífica e solar para me assistir naquilo que temo que a poesia
        política não suporta – a defesa do amor

        “duas mulheres fora da lei” – isto talvez em 1970 – 

Em certos dias estou convencido que consigo fazê-lo– 

         Momentaneamente elevado no Patuxent em lusco-fusco
         Em voo pelo outono como se estivesse pedrado

Mas estas cenas não são para se fazer sozinho

                             * 

É difícil chegar ao fim de “A Fenomenologia da Raiva” enquanto eles tocam “Boogie Oogie Oogie” 

É praticamente impossível ler “An Ordinary Evening in New Haven” quando o tipo no lugar ao lado está a ver –
          
Mas é aqui que vivo / a zona à beira da sobre-saturação

Modernistas melancólicos! Nem tudo está perdido – 

Mesmo de pé na P Street Bridge em hora de ponta com o trânsito da Rock Creek Parkway
         a correr lá em baixo consegues distinguir o som é a água

         As cigarras levam-te até lá

Wallace Stevens | Adrienne Rich

Ainda que duvide que gostassem um do outro espero que não levem a mal que os enxerte

um no outro

Agrada-me pensar neles em diferentes aspectos do éter, a debater os méritos

das canções que por ali passam

A propósito – um último dueto –

                             * 
Toronto, 1992

As luzes acendem-se e alguém tocava “Spinning Away” – uma canção sobre uma pintura –

E o esmorecer da promessa do sintetizador cruzou-se então com a primeira doce rajada de cinema queer

Já não sei dizer se a Moog-utopia quebrada de terceira via que os miúdos hoje em dia ensaiam é nostalgia, ou se constitui uma oposição aos seus pares –

                   que andam numa tipo eu uso chinelos-de-enfiar-o-dedo porque tá tudo na boa

                   Filhos do Império!

Ao largo na água

                  Aves marinhas                    navios com nomes de poetas

Depois penso em pintar fotografias – como o Richter o faz para reestabelecer o domínio de uma arte mais antiga –

                  O invólucro dos auscultadores roça o teu lábio inferior

                  O majestoso Andrew Joron passa por ti na água

Andrew! Diz-me qual deve ser a matéria da poesia –

Tenho uma lista de nomes de bandas que anda lá perto

Uma nota nos meus cadernos diz, se os teus poemas assentarem numa visão optimista das pessoas estás fodido

Mas não acredito nisso

                  Chamo a este dístico Conhece o Teu Inimigo

O canto das cores a soltar-se debaixo dos movimentos do rodo

“Os Ricos – a quem também chamavam Marinheiros Perpétuos”

*

Em Stevens as universidades são a sede da retórica – o inimigo da concretude
Para Rich a questão era: não deveriam os porteiros poder assistir às aulas de graça? 

Não há alquimia que ponha estas duas posições em diálogo

Mas no éter pode-se borrar a contradição – 

                Ouro maciço!

Jogar pelo seguro – compromissos desconfortáveis – enganares-te a ti mesmo


        Poesia, por outras palavras

                           * 

Algures em meados dos anos 40 o jovem Pasolini escreve umas poucas estrofes breves em friulano 
         sobre o dia da sua morte 

Ele imagina meninos de escola a trotar passeio fora, caracóis nos seus cabelos louros

E tal como ele não se podia ter enganado mais eu próprio tenho de admitir que a plenitude ensolarada da música dos anos 70 foi comprada com tempo a crédito – 

Não sei bem onde isso me deixa

         A universidade tão claramente longe da clareira que imaginara –
         As canções que me ensinaram a beleza assentes em falsas premissas – 

Mas tenho esperança que estejam a tocar algo doce no dia da minha morte  – “Tiny Dancer,” talvez – 

Tenho a certeza que estarão, algures –